11 Dezembro 2019
A recusa em considerar a sinodalidade como parte essencial da resposta da Igreja à crise dos abusos é uma falha da imaginação eclesial.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanona University, em artigo publicado por La Croix International, 10-12-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se você piscou, provavelmente perdeu. Mas, no domingo passado, foi o 150º aniversário da abertura do Concílio Vaticano I.
Foi no dia 8 de dezembro de 1869 que o Papa Pio IX convocou o concílio que ficaria conhecido pelas suas declarações sobre o primado e a infalibilidade papais. Ele seria o símbolo de um catolicismo assertivo que buscava deter a modernidade liberal.
O missiólogo católico Robert Schreiter observou que o Vaticano I abriu o caminho para um “período de certeza” dentro da Igreja.
Mas a crise dos abusos sexuais colocou essa avaliação de cabeça para baixo e destruiu todas essas alusões a uma suposta certeza. Os católicos agora estão questionando muitas suposições sobre o seu passado, incluindo o significado e os efeitos tanto do Vaticano I (1869-1870) quanto do Vaticano II (1962-1965).
Como a doutrina católica, incluindo o seu ensino conciliar, pode coexistir com aquilo que ficamos sabendo sobre a crise dos abusos sexuais – um fenômeno que claramente não começou apenas nos anos 1960?
Em vez de um período de certeza, a Igreja está passando por um período de incerteza paralisante, algo muito diferente da incerteza libertadora que marcou os primeiros anos após o Concílio Vaticano II.
Os efeitos contínuos da crise dos abusos sexuais, na realidade, estão condicionando a recepção e/ou a rejeição da Igreja em relação a elementos-chave do Vaticano II.
A crise pode se tornar uma linha de demarcação – um antes e um depois – na história da recepção e da aplicação desse concílio mais recente.
Devemos procurar entender a relação entre a crise dos abusos sexuais e o Vaticano II – como esse abuso e o seu padrão de encobrimento puderam continuar durante a implementação e a recepção do Concílio.
O fato preocupante é que o fracasso do período pós-Vaticano II em enfrentar esses crimes horríveis não é nenhuma novidade. Se olharmos para o Concílio de Trento (1545-1563), também podemos ver que havia uma desconexão entre os seus ensinamentos sobre a reforma e o modo como ele era aplicado à vida real da Igreja.
Estudos sobre o período tridentino verificam que era extremamente raro que padres e religiosos acusados de atos criminosos (especialmente crimes sexuais) enfrentassem a justiça, seja nos tribunais eclesiásticos ou na justiça do Estado.
Os historiadores falam sobre uma “justiça negociada”, na qual muitos fatores e atores diferentes intervinham na proteção dos clérigos.
No período seguinte a Trento, a ascensão da diplomacia papal teve um papel importante na proteção de clérigos criminosos. Os núncios e delegados papais em missões diplomáticas frequentemente defendiam os ordenados dos tribunais estatais, assim como dos esforços dos bispos locais de levar à justiça os membros do próprio clero.
Era típica desse período uma fragmentação entre diferentes sistemas judiciais: a justiça do Estado, que tinha interesse em processar esses crimes, e o sistema judicial separado ao qual o clero católico tinha direito (o chamado privilegium fori).
Mas também havia uma fragmentação dentro da Igreja: a autoridade dos bispos locais; a autoridade das ordens religiosas (isentas da jurisdição dos bispos); e a autoridade de Roma, que tinha interesse em manter boas relações com os bispos, com os religiosos e com os Estados.
A preocupação primordial do papado era manter o poder do Estado à distância e evitar toda possível interferência secular nos assuntos da Igreja.
Essa história pós-Trento pode nos ajudar a entender melhor como a Igreja de hoje enfrentou a crise dos abusos sexuais – não apenas em termos de fragmentação de jurisdições, mas também no modo como a crise é comunicada ao público, incluindo os próprios membros da Igreja.
Nos séculos XVI e XVII, assim como nos nossos dias, havia uma grande preocupação em não divulgar as razões pelas quais um membro do clero “renunciava” ao seu ofício. Tal sigilo, de fato, faz parte da tradição e da estratégia jurídicas da Igreja ao lidar com crimes do clero, especialmente os de natureza sexual.
Dentro dessa tradição, o clero recebia um tratamento especial quando se tratava da sua sentença. Alternativas à prisão (e à tortura) estavam amplamente disponíveis para membros condenados do clero. A justiça tendia a ser altamente simbólica e não tão severa quanto a aplicada aos leigos que cometiam os mesmos crimes.
Também há outras semelhanças entre o período tridentino e hoje. Mesmo o mais inflexível aplicador da ortodoxia, Pio V (papa de 1566 a 1572), não estava disposto a renunciar aos privilégios do clero quando se tratava de proteger os clérigos da justiça secular.
Além disso, nos séculos seguintes a Trento, foi considerado mais importante travar a luta contra a heterodoxia do que contra o clero criminoso. De maneira semelhante, alguns católicos contemporâneos continuam delineando a crise dos abusos como um produto do levante social e cultural dos anos 1960 e 1970.
O fracasso da Igreja tridentina dos séculos XVI e XVII em lutar contra o clero criminoso, incluindo os culpados de crimes sexuais, também se devia a uma luta intracatólica pela supremacia entre o papado e seus diplomatas, os bispos, as ordens religiosas e as elites católicas leigas.
No século XVIII, a incapacidade da Igreja de lidar com o seu clero criminoso levou as autoridades seculares a intervirem de forma mais agressiva em seus assuntos.
Esse é um conto de advertência. Assim como as falhas de Trento levaram ao agressivo “jurisdicionalismo” dos Estados seculares há três séculos, a atual incapacidade da Igreja de implementar a eclesiologia do Povo de Deus do Vaticano II provavelmente levará a uma nova onda de intervenção do Estado nos assuntos eclesiásticos.
O que vimos até agora é apenas o começo.
Para o Estado-nação moderno, a segurança das crianças e das pessoas vulneráveis nas instituições religiosas supera de longe qualquer deferência tradicional ao poder da Igreja. Essa se tornou uma questão de saúde e de segurança públicas. A lista de recomendações da Comissão Real à Igreja Católica da Austrália [disponível aqui, em inglês] é um exemplo muito bom disso.
Em termos institucionais, a Igreja Católica hoje continua se assemelhando ao sistema eclesiástico tridentino e pós-tridentino, e não ao sistema previsto pelo Vaticano II.
No entanto, houve mudanças importantes. Uma é histórica e diz respeito às relações Igreja-Estado. Na era anterior, a acusação dos crimes do clero era percebida por ambos os lados como uma questão menor em comparação à luta pelo poder entre eles.
Outra mudança é que, no passado, os crimes sexuais do clero apenas raramente provocavam protestos das comunidades locais e dos fiéis leigos. Quando havia protestos, era porque o padre não estava dando ao povo o acesso ao sagrado.
Havia uma nítida separação entre as expectativas dos fiéis sobre como o padre desempenhava as suas funções sagradas e como o clérigo levava a sua vida privada.
Agora, vivemos em uma época em que os fiéis católicos e o mundo inteiro esperam que as lideranças da Igreja sejam testemunhas, e não meramente proclamadores do Evangelho. A linha de separação entre o privado e o público foi praticamente eliminada.
Mas a maior mudança de Trento até hoje diz respeito à eclesiologia. Os católicos têm uma ideia teológica sobre a Igreja que não está mais dominada pelas elites e pelas hierarquias. Pelo contrário, ela se situa em comunhão com o Povo de Deus. Essa é uma mudança eclesiológica que poderia desempenhar um papel-chave na luta contra os abusos sexuais e os abusos de poder na Igreja.
A história nos diz que seria um erro jogar a culpa pela crise dos abusos totalmente sobre o sacerdócio.
A impunidade do clero foi o fruto ruim de uma ideia ainda pior – que o clero estava acima da lei secular. Mas também se deveu ao fato de que duas hierarquias – uma clerical e outra secular – coconspiraram na corrupção (política, social e econômica).
É por isso que a ênfase do Papa Francisco na sinodalidade é tão importante. Da Cúria Romana ao sistema diocesano e paroquial, a estrutura institucional da Igreja no atual período pós-conciliar ainda é bastante tridentina. Mas a eclesiologia católica do Vaticano II não é.
A sinodalidade é essencial para superar a crise dos abusos, porque – como Francisco disse em um importante discurso em outubro de 2015 – ela enfrenta o mal que “entrega o destino de populações inteiras nas mãos ávidas de grupos restritos de poder”.
Esse discurso papal sobre a sinodalidade marcou um momento-chave na história da recepção do Vaticano II. E também deveria marcar um ponto de passagem no modo como a Igreja deve enfrentar a crise dos abusos.
Os melhores exemplos disso hoje no catolicismo global vêm de Igrejas que iniciaram um processo sinodal local ou nacional. De modos diferentes e com nomes diferentes, todas incluíram a articulação de políticas específicas para enfrentar com a tragédia dos abusos sexuais.
A alternativa é esperar passivamente, com vergonha e desgosto, enquanto os ciclos de notícias trombeteiam as sórdidas atividades deste ou daquele prelado e publicam o último relatório devastador de um grande júri ou de um procurador-geral.
Na ausência de um modo eclesial adequado para reagir ao escândalo, a nova conscientização emergente sobre a crise dos abusos sexuais está destinada a causar uma maior perda de confiança na Igreja entendida como uma comunhão. Por fim, levará a um abandono em massa da fé.
A recusa em considerar a sinodalidade como parte essencial da resposta da Igreja à crise dos abusos é um fracasso da imaginação eclesial. É também uma traição ao Povo de Deus.
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Sinodalidade e crise dos abusos: a Igreja ainda está parada em Trento. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU