10 Janeiro 2020
Craig Shepard e eu temos algo em comum: estivemos trabalhando na crise de abuso sexual na Igreja Católica e tornamos isso um ponto focal do nosso trabalho criativo. Craig desde 2014, eu desde 2018. Ele é um compositor, eu sou produtor de podcasts. A primeira vez que ouvi sua meditação musical, chamada “Broken Silence” (Silêncio rompido) foi no calor opressivo de agosto, mas agora, em tarde fria, escura e tempestuosa de dezembro, nós finalmente nos encontramos em uma cafeteria no Brooklyn para discutir este projeto, de cinco anos em construção.
O comentário é de Maggi Van Dorn, criadora e produtora de "Delivery Us", publicado por America, 03-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
“Broken Silence” é uma contemplação musical de 75 minutos que “ajuda os que ouvem a se envolver com o texto extraído de depoimentos proferidos em tribunais ligados ao escândalo em curso na Igreja Católica”. Mais especificamente, o conjunto de violão acústico de cordas de aço e o saxofone é composto com base na carta, de 1982, escrita por Margaret Gallant e enviada ao Cardeal Humberto Medeiros. [1]
Em suas quatro páginas, escritas à mão, vemos Gallant repreender o cardeal por não impedir o Pe. John Geoghan, que molestou sete meninos da família Gallant e, como viria mais tarde ser descoberto pela equipe do jornal The Boston Globe, outras 150 crianças no total.
A carta é inspiradora; lembro-me bem dela a partir de uma pesquisa que eu mesmo fiz. Gallant escreve na qualidade de católica devota, esforçando-se para balancear o seu amor à Igreja com a agonia pessoal que sua família vivenciou e com uma obrigação de proteger outras crianças. Até mesmo sobre o padre abusador ela escreve: “Honestamente, o meu coração dói por ele e por ele eu rezo, porque sei que [o que fez] deve despedaçá-lo também; mas não posso permitir que a minha compaixão por este padre obscureça o meu juízo em agir pelo Povo de Deus e pelos menores”.
Um sentimento de traição, raiva e desgosto na carta é palpável. E os problemas que Gallant sublinha permanecem conosco ainda hoje: os danos causados por continuarmos silentes, a falha de algumas lideranças eclesiásticas a agir com clareza e determinação, a persistência do clericalismo e a necessidade de uma corresponsabilidade na Igreja.
A carta de Gallant foi usada em relatórios investigativos e em depoimentos nos tribunais, mas também está escrita com a força moral de Santa Catarina de Siena, ou São Tomás More, repreendendo aqueles em cargos de poder por “ficarem sentados” e admoestando-os a proteger o Corpo Místico de Cristo.
Agora, Shepard apresenta a carta como um texto sagrado para que contemplemos: “O texto por si só é maravilhoso. Para mim, é um texto inspirado”.
Craig Shepard é familiarizado com textos sagrados. Quando estudou na Northwestern University, pediram-lhe que fizesse uma composição em contraponto renascentista e músicas sacras. Assim, enquanto tomo o meu café, interrompo Shepard para uma rápida lição em teoria musical. Ele explica pacientemente o que é um contraponto com uma música de Ariana Grande:
“Se lembrarmos as missas de antigamente, que são cantadas com múltiplas vozes, o contraponto significa apenas que existe mais de uma melodia se desenrolando ao mesmo tempo”.
No começo, Shepard não gostou da ideia de estudar música coral renascentista porque isso significava tentar criar dentro de regras preestabelecidas. Mas, segundo ele mesmo, estas regras também produzem “alguns dos exemplos mais belos em música”. E se ouvirmos as obras de Palestrina, perceberemos o contraponto e veremos que essa experiência pode ser completamente transcendente.
Através do estudo da música renascentista, Shepard acabou versado em textos sagrados. A maior parte da literatura vinha diretamente das Escrituras, mas uma parte veio dos místicos medievais, como Hildegard de Bingen. Hoje ele acrescenta a carta de Margaret Gallant à lista de textos sagrados para a contemplação.
Essa carta é lida em ritmo lento e contemplativo por Shepard e acompanhada por cinco músicos reunidos em um círculo: Erin Rogers (saxofone tenor), Kristen McKeon (saxofone alto) e Dan Joseph, Dev Ray e Alex Lahoski (violonistas). A música é esparsa, aumentando e diminuindo para sustentar as palavras pronunciadas. Um único tom é introduzido e passado entre os músicos; então, como um contraponto, tons diferentes se unem para criar uma ressonância impressionante.
No entanto, com toda essa beleza musical, poderíamos nos perguntar, por que alguém iria querer se sentar e contemplar uma carta cheia de dor? É uma pergunta parecida com a que ouvi quando produzi “Deliver Us”: Por que produzir um podcast em 12 episódios sobre este tema agonizante?
“Primeiro temos de ouvir o que aconteceu antes de nos movermos através da carta”, explica Shepard. Isso vale não só para a Igreja Católica, mas para qualquer governo ou instituição que precisa acertar as contas com uma história de violência e corrupção. E vale para cada um de nós. Não podemos nos mover através da crise sem primeiro ouvir o que aconteceu.
O segundo grande insight que Shepard compartilha é que “quando nos reunimos, podemos fazer aquilo que ninguém de nós conseguiria fazer sozinho”. Ele quer dizer tanto em sentido místico quanto em sentido científico. No sentido espiritual, ele se volta ao Evangelho de Mateus: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles” (Mateus 18,20). Neste encontro de corações e mentes, que guardam espaço para a angústia das palavras de Margaret Gallant, algo mais se torna possível.
A outra forma como Shepard olha para aquilo que está acontecendo é através das lentes da terapia da experiência somática. Mais uma vez, peço que explique a ideia.
“A terapia da experiência somática é uma modalidade criada pelo doutor Peter Levine. A sua eficiência serve para todas as formas de traumas. A ele ocorreu a ideia de que o trauma não está no evento, mas sim no sistema nervoso e que todo sistema nervoso tem uma capacidade de cura”.
Em resumo, quando as forças são grandes demais (como acidentes de carro ou um combate militar) ou quando o sistema nervoso não se desenvolve plenamente (como com crianças que sofrem abuso), “o corpo fica preso e incapaz de completar a resposta natural ao trauma e voltar ao funcionamento normal”. Com a ajuda de um profissional treinado em experiência somática, a pessoa pode processar por completo ou “completar o trauma” e, então, sintomas como a ansiedade, a depressão ou o estresse pós-traumático geralmente desaparecerão.
Shepard deixa claro que “Broken Silence” não é terapia. No entanto, após três anos de formação em terapia somática, diz que esta abordagem influiu na composição musical.
Vejamos o próprio arranjo espacial dos músicos. Eles, todos altamente treinados em seus instrumentos e tendo certo tipo de prática espiritual, sentam-se em um círculo ao centro. O público fica ao redor deste círculo, e espalhadas entre o público estão pessoas que já meditaram sobre esta carta várias vezes antes e que desenvolveram uma capacidade de prestar auxílio a quem necessitar. Elas chegam meia hora antes de as portas abrirem para “aquecerem a sala”. Essa prática foi tirada do culto Quaker, mas também se baseia na ideia de ressonância desenvolvida na experiência somática. Ressonância é um conceito que diz que o nosso sistema nervoso pode entrar em sincronia com aqueles que estão ao nosso redor. Assim, acrescentamos dez sistemas nervosos na sala que já passaram um tempo em harmonia com o material, criando um ambiente diferente dentro do qual ouvimos a carta.
Quanto a Shepard, ele conduz, como regente, mais do que palavras e a música. Constantemente ele anda pela sala, observando como a plateia responde e se adapta à velocidade da música para melhor sustentar o que acontece ao redor.
Para mim está claro que “Broken Silence” é mais que um concerto. É uma meditação musical sobre um texto inspirado que mergulha diretamente no cerne do trauma coletivo humano e aumenta a nossa capacidade de nos movermos nele.
Ao final de nossa conversa de duas horas e meia, Craig Shepard e eu cobrimos muita coisa, desde o contraponto renascentista à experiência somática, passando pela forma como podemos aspirar vida nova para dentro de uma igreja traumatizada.
Ele não precisa me contar do valor que há em contemplar coisas difíceis. Na verdade, o simples fato de sentar aqui e conversar sobre a nossa luta comum com a crise de abusos já me conforta. Não porque tudo se resolveu, mas porque posso começar a ver caminhos de cura, onde antes só havia escuridão.
Falar dos males sociais por si só é desmoralizante e pior ainda com o nosso consumo frequentemente solitário das mídias. Somos bombardeados por frases de efeito, distraídos por notificações e atormentados pelo desespero que vem quando não conseguimos resolver problemas complexos do dia para a noite. Nada disso nos faz bem, não são nenhum pouco construtivos.
Mas aqui temos algo que Craig Shepard e eu descobrimos: quando nos distanciamos ou tentamos silenciar o nosso trauma, as coisas só pioram. Sempre que reservamos um tempo e espaço para contemplar a nossa dor e sempre que confrontamos os nossos demônios em nossa comunidade com os demais, saímos com uma sensação duradoura de esperança.
É como Shepard diz: “Quando nos reunimos, podemos fazer aquilo que ninguém de nós conseguiria fazer sozinho”. Então, para aqueles que estiverem se debatendo com esta crise, dentro ou fora da Igreja, eu recomendaria “Broken Silence”. A obra estreia na cidade de Nova York nas noites de 6 a 8 de janeiro. A entrada não é cobrada; no entanto, o número de lugares é limitado.
[1] Disponível em inglês sob o título “Read the Original Letter That Helped Expose the Scandal in Spotlight”.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
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Em ‘Broken Silence’, o compositor traz uma nota de esperança à crise de abuso sexual na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU