30 Setembro 2019
O Pe. David W. Tracy , da Arquidiocese de Nova York, é pesquisador e professor conhecido e estimado internacionalmente. Já palestrou em 55 faculdades e universidades nos EUA e ao redor do mundo, incluindo a Universidade de Edimburgo, onde proferiu a prestigiada Gifford Lectures em 2000.
A entrevista é de Kenneth L. Woodward, autor de Getting Religion: Faith, Culture, and Politics from the Age of Eisenhower to the Era of Obama (Deckle Edge, 2016), foi o editor de religião da revista Newsweek por 38 anos, publicada por La Croix International, 25-09-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa. A entrevista foi publicada originalmente na Commonweal Magazine.
Tracy é amplamente conhecido como um dos teólogos mais criativos e influentes da segunda metade do século passado. Hoje com 80 anos e detentor do título de Professor Emérito pelos serviços prestados à Universidade de Chicago, onde lecionou por 38 anos, assina quatro livros como autor e cerca de duas centenas de ensaios.
Além do doutorado em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, Tracy possui quatorze títulos honoríficos e trabalhou nos conselhos editoriais de oito publicações acadêmicas. Em 1982, foi eleito para a Academia Americana de Artes e Ciências, um dos poucos padres a receber a honraria.
Neste ano a editora da Universidade de Chicago publicará dois volumes com ensaios escritos por ele, após 25 anos desde a última publicação.
No começo deste ano, Tracy palestrou nas universidades de Viena e Zagreb, o que é um sinal de que a sua saúde, por vezes debilitada, voltou. E o mesmo acontece com a sua produção acadêmica. Então, a mim pareceu ser essa uma boa hora para conversar com Tracy e buscar captar o seu pensamento e saber sobre o aquilo que ele chama de “o grande livro”.
Ao adentrar o seu espaçoso apartamento em Hyde Park, cidade localizada no estado de Nova York, moradia que divide com o seu irmão, Alan, a primeira coisa que chama a atenção é uma Nossa Senhora com o Menino Jesus em madeira que lembra as produções do século XIV, objeto a adornar o ambiente sobre uma mesa. O local é amplo e aconchegante, com móveis do tipo empalhado, confortáveis, que acolhem quem chega.
Como o falecido John Updike, Tracy usa uma escrivaninha para preparar suas palestras, escrever seus ensaios, livros ou trabalhar em algum outro projeto. Suas leituras ele as faz em geral até as 4h da manhã. O dia seguinte começa cinco horas mais tarde.
David, a editora da Universidade de Chicago está prestes a lançar dois livros seus, os primeiros, dizem, depois 25 anos. São coleções de ensaios, alguns deles escritos no ano passado. Para citar uma frase de Yeats [William Butler Yeats, poeta, dramaturgo e místico irlandês], “A palavra após longo silêncio; certo é”. O volume I intitula-se “Fragments: The Existential Situation of Our Time” [Fragmentos: a situação existencial do nosso tempo]. Por que fragmentos, e qual a situação existencial do nosso tempo a que eles se referem?
“Fragmentos” é uma categoria que desenvolvi anos atrás. Começou como uma grande categoria pelos românticos alemães no fim do século XVIII. E é evidente que acabou se tornando muito popular com os modernistas literários e mais ainda com os escritores pós-modernos que geralmente escrevem de uma forma fragmentária. Eu a defendo como um modo de romper as totalidades, fragmentar todos os sistemas de totalidade e abri-los à infinidade, que se torna em uma importante categoria para a minha obra.
A meu ver, todas as nossas tradições estão em fragmentos. Figuras como T.S. Eliot e outros consideravam uma infelicidade. A famosa frase desse poeta é: “Com estes fragmentos escorei minhas ruínas”.
Não penso os fragmentos desse jeito. Às vezes, é claro, a fragmentação pode ser negativa. Mas, na verdade, as tradições – em filosofia, teologia, nas artes – sempre estiveram em fragmentos.
Por exemplo?
Ora, ninguém usa a Bíblia inteira. Ninguém usa a filosofia grega inteira. Dado o nosso temperamento, ou nossas necessidades ou as necessidades da nossa cultura, todos escolhemos fragmentos particulares das grandes tradições que consideramos serem excepcionalmente valiosas no momento.
Eu, portanto, considero os fragmentos uma categoria muito valiosa que ajuda as pessoas, especialmente na teologia, a entender que podemos ser conhecedores da (ser e fiel à) tradição cristã fundamental, mas também a perceber que não é de fato possível fazer a tradição inteira. Creio que levaria cerca de sete ou 8 vidas para se fazer toda a tradição cristã – ainda que somente a parte teológica dela.
O que quer dizer com “fazer” a tradição inteira?
De fato absorver, apropriar-se da, articular toda a tradição. Mas isso não é necessário.
Me parece que essa abordagem é, em certo sentido, a da forma que se adequa ao conteúdo.
Isso. Está certo.
Em “Depois da virtude”, Alasdair MacIntyre lamentava, como Eliot, o fato de que tudo o que temos disponível são fragmentos das tradições morais anteriores que aparecem nas salas de aula como artefatos antigos que os arqueólogos não conseguem remontar. Claramente MacIntyre não gosta muito de fragmentos.
Gosto muito da obra de MacIntyre. Considero ele um dos melhores pensadores cristãos vivos. Mas ele próprio não está fazendo a tradição inteira. Ele inclusive diz [em “Três versões rivais da investigação moral”] que existem tomistas demais. Ele tem trabalhado estes aspectos do tomismo que considera particularmente valioso para os nossos problemas atuais. E isso é o que acho que todos fazem, quer percebam ou não.
Então, ao enfatizar, como faço, e desenvolver a noção de fragmentos, penso que ofereço uma nova forma de olhar para as nossas tradições, e uma forma libertadora. Não para escorar as nossas ruínas, mas para desfazer as ruínas e encontrar novos recursos.
Por exemplo, produzi um trabalho sobre a teoria da recepção e sobre os quatro evangelhos. Para os cristãos do primeiro século, Mateus era o evangelho mais importante, porque é o que diz a uma comunidade nova como ser uma comunidade, como ter novas leis. É o mais judaico dos evangelhos.
Lucas/Atos é o evangelho que apela especialmente para os cristãos de hoje preocupados com a justiça social, de uma outra forma para os pentecostais focados nos dons do Espírito Santo, e ainda de uma terceira forma aos cristãos comuns, do dia a dia. Ele conta como viver uma vida cristã sensível.
Marcos, que era considerado o mais simples dos evangelhos, é, na verdade, hoje considerado por muitos pensadores pós-modernos como o mais fragmentário dos evangelhos.
Como assim?
É o evangelho que não termina exatamente. É o evangelho (de Mateus) que tem uma interrupção radical no meio com as passagens apocalípticas do Capítulo 24. E, diferentemente de Lucas, onde Jesus é um profeta que as pessoas basicamente entendem, especialmente os discípulos, em Marcos os discípulos não parecem entender coisa alguma.
Ele é entendido pelos pobres, pelos marginalizados e pelos demônios. É um evangelho incrível. E João permanece sendo o grande evangelho dos filósofos, teólogos e místicos.
Como disse Agostinho e com razão: João é o evangelho do amor. Para ele, para Tomás, Eckhart , Schleiermacher, Hegel, [Karl] Rahner, [Bernard] Lonergan, João é o evangelho preferido.
Tudo isso significa que temos sorte como cristãos por haver quatro evangelhos. Na realidade, deveríamos acrescentar Paulo como o quinto, por ser ele é tão influente.
E cada um deles é, em certo sentido, um fragmento do Novo Testamento. E dentro de cada um existem certos fragmentos. Precisei inventar um neologismo, que me arrependo, para dizer que certos fragmentos se tornam “frag-eventos”. Eles se tornam eventos que rompem a totalidade, negam a totalidade, fragmentam-na, e abrem-se a nós…
O que há de errado com a totalidade?
A totalidade encerra. Não permite a abertura e dinamismo que acho ser uma exigência de toda grande tradição. Ela tenta fechá-la. Aqui, me baseio na teoria dos sistemas modernos em que os sistemas são compreendidos como abertos. “Sistemas” não significa o que costumava significar na distinção de Whitehead, entre montagem, que é só uma coleção, e sistema, que é uma totalidade fechada. Ela não é um ideal hoje, certamente não para mim. O ideal é, evidentemente, o todo, mas o todo não como uma totalidade, e sim como infinito, dinâmico, aberto.
Mencionamos T.S. Eliot. Como crítico, Eliot geralmente invocava “a tradição”, mas como poeta podemos dizer que escrevia em fragmentos, o que no início dificultou a quem quisesse entendê-lo.
Sim, Eliot é famoso por escrever “A terra devastada” em puros fragmentos. Este talvez seja o poema mais fragmentário do século XX. Mas mesmo os “Quartetos” são fragmentos, e não só fragmentos cristãos, mas fragmentos budistas (a piscina no primeiro “Quarteto”), fragmentos neoplatônicos, fragmentos aristotélicos, fragmentos hindus. E diferentemente do que ocorre em “A terra devastada”, nos “Quartetos” Eliot pôde, a meu ver, dar um tipo de expressão sistemática dos fragmentos. Uma das coisas mais belas nos “Quartetos” encontra-se no terceiro “Quarteto”, onde se fala de um “momento desatendido, el momento fuera y dentro del tiempo” – em outras palavras, “fragmentos”.
The wild thyme unseen, or the winter lightning
Or the waterfall, or music heard so deeply
That it is not heard at all, but you are the music
While the music lasts.
These are only hints and guesses,
Hints followed by guesses; and the rest
Is prayer, observance, discipline, thought and action.
The hint half guessed, the gift half understood, is Incarnation.
(Nota de IHU On-Line: eis a tradução espanhola:
El invisible tomillo silvestre o los relámpagos de invierno
O la catarata o la música tan profundamente escuchada
Que no se escucha en absoluto, Pero somos la música mientras dura la música.
Estas son nada más sugerencias y conjeturas,
Sugerencias que engendran conjeturas; lo demás
Es oración, observancia, disciplina, pensamiento y acciones.
La sugerencia medioadivinada, el don semientendido, es la Encarnación.)
Jamais li uma expressão fragmentária melhor do coração do cristianismo, a Encarnação.
Voltando à segunda parte do título de seu primeiro volume, o que quer dizer com “a situação existencial do nosso tempo”?
Para os filósofos e teólogos, creio eu, é o niilismo. A sensação de não haver sentido. O senso da absurdidade e a falta de sentido da vida. Mesmo que não se elevam ao nível teórico, quando as pessoas vivem sem religião, a meu juízo, elas eventualmente acabam levando uma vida niilista, às vezes sem o saber. É essa a situação intelectual.
A situação existencial mais importante, eu penso, continua sendo o sofrimento massivo mundial que os seres humanos enfrentam – tanto como culturas e grupos inteiros quanto, evidentemente, como indivíduos. A salvação cristã, afinal, tem a ver fundamentalmente com uma resposta ao sentido profundo da transciência – que nós somos transcientes e que tudo o que possuímos ou amamos é transciente, inclusive as nossas culturas, as nossas tradições. E, claro, a morte e o enfrentar a morte, que permanece sendo uma grande questão existencial para todo o ser humano.
Chamo esse tipo de questão de questão “limite”, experiências limite, situações limite. Questões ulteriores que qualquer ser humano pensante acaba se fazendo. E essa é a nossa situação existencial.
O seu segundo volume de ensaios lida com grandes pensadores, desde Agostinho, Lutero e Erasmo aos modernos como Rahner, o seu orientador Lonergan, Paul Tillich, Reinhold Niebuhr, Iris Murdoch e Simone Weil. Como estes ensaios se relacionam com o grande livro, a obra magna em que o senhor está trabalhando?
Eu relutei em publicar estes ensaios, mas o meu editor e uns bons amigos me incentivaram e, para a minha surpresa, esta edição acabou por ajudar no grande livro em que tenho trabalhado, porque, em vez de precisar dedicar, digamos, um capítulo inteiro sobre Agostinho, que é central para o meu pensamento, posso dizer “leia estes ensaios” em nota de rodapé e, então, trazer apenas um resumo, e o mesmo com todas as demais figuras importantes.
Corre uma lenda de que o motivo pelo qual o “grande livro” em que o senhor tem trabalhado não foi publicado ainda é porque, cada vez que o senhor pega um livro novo para ler, acaba repensando o seu projeto.
Não são todos os livros, não. Pensei em publicar as Gifford Lectures, palestras que dei em 1999 e 2000, em formato de livro. Concluí essas palestras com duas ideias que eu ainda tenho no “grande livro” que estou escrevendo. A primeira é a ideia do Deus Incompreensível, especialmente como a encontramos em Dionísio, o Areopagita, e aquela tradição toda de teologia negativa ou apofática. A segunda é a noção do Deus Oculto, especialmente como a encontramos na obra profundamente cristã de Lutero, onde Deus revela o eu de Deus através de contradições – a vida através da morte, a sabedoria através da loucura, a força através da fraqueza. E, por sua vez, estes se enriquecem com a tradição apocalíptica do cristianismo.
Apocalíptica?
Sim, eu não creio que possamos entender o Novo Testamento – e, portanto, o cristianismo – sem a sua forte tradição apocalíptica. E não só textos apocalípticos como a Epístola de Paulo aos Tessalonicenses, Mateus 24, quase todo o livro de Marcos, e especialmente o poder tremendum et fascinans do Livro do Apocalipse. A Bíblia Cristã inteira acaba com este clamor lamentoso: “Vem, Senhor Jesus”.
Sem essa dimensão apocalíptica, propriamente desliteralizada, é claro, o cristianismo transformar-se-ia em uma religião sem o sentido do ainda não e sem o sentido existencial de que a Segunda Vinda, como a nossa própria morte, pode acontecer a qualquer momento.
Por que não publicou as suas palestras em forma de livro?
Percebi que ainda necessitava de algo para iniciar a discussão, algo que eu chamaria de uma teologia filosófica. Algo que permitisse outros além dos fiéis cristãos entrarem na discussão sobre Deus, especialmente do Deus Incompreensível ou do Deus Oculto.
E esse algo foi…
Uns dez anos atrás, me deparei com a noção de infinito. É uma noção, afinal, da matemática, da física e da cosmologia. E, portanto, ela abre a discussão sobre Deus a outras áreas, que eu sempre gostei, especialmente a matemática. O grande livro vai trazer uma compreensão ampla do infinito, porque agora tive todos estes anos para traçar, ao longo da história do entendimento, o infinito na filosofia e na teologia.
Por exemplo, Platão e Aristóteles não chamariam de infinita a realidade última porque ela é sem forma. Deus deve ser a perfeição, e para a perfeição não é preciso forma. Então, para Platão ela se torna a forma do bem além do ser; para Aristóteles, o motor imóvel. Plotino é o primeiro grande filósofo a falar do infinito como a realidade última, junto com uno e o bem. E assim podemos remontar através da história por que alguns usam esta noção e outros não.
Até onde sei, Gregório de Nisa é o primeiro grande teólogo cristão a dizer que o infinito é o nome primário de Deus, e dele todos os outros nomes – ser, o bem, etc. – decorrem.
Então, podemos esperar três volumes sobre Deus, Cristo e o Espírito?
Dois, eu acho; a maior parte desse assunto já está escrito. O que tento hoje fazer é me mover da categoria de infinito, explicando-a em sua relação com o espaço, o tempo e com o número, com o infinito absoluto – distinção que Aristóteles já fazia – que, claro, é Deus. E, então, tento mostrar como a noção filosófica de infinito pode se mover, através da Revelação, para a noção de ser, inteligência e amor infinito – a Trindade. É um argumento difícil de se fazer, mas essa é a sua estrutura.
Então o senhor repensou o projeto todo?
Sim, repensei. Porque, sabe como é, tão logo nos deparamos com uma ideia importante, nesse caso o infinito, precisamos repensar todo o projeto.
Fale da sua experiência de três anos em que participou de um diálogo budista-cristão. Que tipo de budistas eram?
Principalmente japoneses – zen e terra pura. Havia um ou dois budistas teravadas, mais alguns ocidentais, particularmente da Califórnia. O diálogo foi organizado por John Cobb e Masao Abe, que foram criados como budistas terra-pura e que acabaram virando zen budistas.
Esse diálogo deixava de ser sereno quando os budistas zen e terras-pura discutiam uns com os outros. Era como os velhos debates entre protestantes e católicos que agora, felizmente, em grande parte já foram superados. Nós cristãos representavam as nossas próprias teologias, não a de alguma igreja, e estávamos de fato tentando ser desafiados pelos budistas.
Éramos todos do tipo abstrato, teólogos filosóficos. Queríamos debater imediatamente Deus versus o Vazio como os nomes para a realidade última. Abe e Cobb diziam: “Não, só podemos debater isso no terceiro ano”.
No primeiro ano debatemos “Qual o problema com os seres humanos?” Os budistas debatiam “Qual a ignorância primordial, Avidyā?” Os cristãos debatiam “O que é pecado, como orientação básica?”
No segundo ano, debatemos “Qual a resposta a este problema?” Os budistas, é claro, debateram “O que é iluminação?”
Os cristãos – e eu forneci um dos textos escritos – debateram “O que é redenção ou salvação?” Só no terceiro ano é que foi possível discutir o que todos queríamos. Mas os organizadores acertaram em nos fazer aguardar até que abordássemos estas questões antropológicas, antes de debater o Vazio e/ou Deus.
O que o senhor aprendeu?
No final do terceiro ano, todos deveriam dizer o que achavam que tinham aprendido. Disse que uma das coisas que mais aprendi, como ocidental e como teólogo cristão, foi como compreender por que alguém chamaria a realidade última de “vazio”, u “impessoalidade radical”.
Além disso, todos admitimos – e essa é a grande importância do diálogo inter-religioso – que também aprendemos mais sobre a nossa própria religião.
Uma outra coisa que observei: os budistas, diferentemente de mim e dos demais cristãos, tinham uma maneira de incorporar as suas práticas meditativas em suas metafísicas. Eu não sabia como fazer isso, mas eles me ajudaram e, agora, estou melhor nesse sentido.
Há tempos o senhor defende que o teólogo cristão se dirige a três públicos: a academia, a igreja e o público em geral dos intelectualmente curiosos. Mas enquanto ouço o senhor, me pergunto: ao longo da segunda metade do século XX havia um grande público geral, entre eles muitos leitores da Newsweek, que lia artigos sobre teologia. Mas hoje os livros sobre religião, sem mencionar sobre os de teologia, raramente ganham destaque nas resenhas dos jornais e outros meios de comunicação seculares. Como o teólogo pode se dirigir a um público que não parece prestar nenhuma atenção?
Infelizmente a época, digamos, de Reinhold Niebuhr e Paul Tillich, em que a teologia estava no centro de boa parte da discussão pública, acabou. Mesmo o ambiente do Concílio Vaticano II, quando Karl Rahner e Bernard Lonergan, Hans Küng, Edward Schillebeeckx, Johann Baptist Metz e Gustavo Gutiérrez eram todos amplamente lidos e debatidos, acabou. Devo dizer que lamento isso.
Todos nós.
Parte do que tento fazer com a noção de fragmento em relação a todas as tradições religiosas, não só a cristã, é alertar as pessoas de que elas têm fragmentos dos quais não têm ciência e que eles são um verdadeiro recurso para as suas vidas e para o seu pensar.
E a noção de Deus como infinito permite uma discussão pública da categoria “o infinito”, que as pessoas possam se interessar. Há um grande interesse público em ciência, menos em matemática, as a ciência é também matemática.
Espero que haja um interesse suficiente nessa categoria que permita ela se desenvolver naquilo que tento apresentar ao responder à pergunta: “Por que nomear Deus com o termo ‘infinito’ – ao invés de, digamos, o vazio, o aberto, o ser, ou o bem?”
Como se descreveria enquanto teólogo?
Eu me descreveria como teólogo cristão com um centro católico de gravidade. Sou obviamente católico e, ao mesmo tempo, tenho tentado não ser somente ecumênico, o que talvez seja uma palavra fácil demais, mas verdadeiramente aprender com as muitas tradições protestantes e com as tradições ortodoxas gregas e russas.
O que diria a alguém que perguntasse: “David Tracy, o senhor acredita que Cristo é o caminho da salvação?
Para mim, Cristo é o caminho decisivo. E Jesus de Nazaré é a pessoa insubstituível, que é o Cristo, e Jesus Cristo é Deus e homem. Agora, isso significa que não podemos honrar outras tradições religiosas? Certamente que não. Porque se cremos que Jesus Cristo é a manifestação decisiva de Deus, precisamos honrar isso e pedir que os demais honrem isso como aquilo de que se trata o cristianismo, o que eu acho que é.
Então, quando entramos no diálogo inter-religioso, os diálogos dos quais falei como sendo tão importantes, não acho que devemos imediatamente dizer “pluralismo”. Sou pluralista em muitas coisas, exceto no que considero ser muito mais sutil, matizado e difícil. Se consideramos como tradicional, o cristianismo calcedoniano considera, como eu também, a centralidade de Jesus Cristo, então é mais o tipo de um cristianismo inclusivo.
Somos abertos às demais tradições e, de certo modo, Cristo inclui, acolhe. Não acredito no cristianismo exclusivista.
Exclusivista?
“Exclusivista” significa que só o cristianismo tem o caminho da salvação e revelação. Não acho que isso seja verdade. Ele tem sido para mim o caminho decisivo, definitivo, mas há outros caminhos. Não é o caso de que os judeus, muçulmanos e budistas não tenham um caminho, seja um caminho de salvação nas tradições monoteístas, seja um caminho de iluminação nas religiões mais misticamente inclinadas como o budismo e o taoísmo.
Acredito que os taoístas e os budistas são iluminados. E com iluminação vem a compaixão, muito semelhante aos cristãos com a salvação, que também inclui iluminação.
Não vejo dificuldade em afirmar as outras religiões. Mas vejo sim dificuldade em dizer, como acho que muitos dizem: “Bem, são tudo a mesma coisa. São só caminhos diferentes para subir a mesma montanha”. Isso é fácil demais, simples demais. Especialmente se levarmos o cristianismo a sério em sua compreensão central do papel decisivo, insubstituível de Jesus Cristo.
Nos anos desde que escreveu “The Analogical Imagination” (Nota de IHU On-Line: publicado no Brasil com o título A imaginação analógica, pela Editora Unisinos, 2006, na Coleção Theologia Publica), muitos escritores e pensadores católicos passaram a igualar a imaginação analógica com a imaginação católica. Estão certos?
Eu não faço isso.
Isto provavelmente remonta ao seu amigo Andrew Greeley.
Ele era uma pessoa maravilhosa, mas aqui a gente sempre discordou. A imaginação católica é uma imaginação analógica, mas não é a única. O protestantismo progressista, distinto do protestantismo de Karl Barth, é analógico. E o mesmo acontece em grande parte na teologia anglicana.
O que gera uma dúvida em mim: há algo como uma imaginação ou sensibilidade protestante?
Teologicamente, é a sensibilidade derivada de uma noção da soberania completa de Deus e uma sensibilidade onde a Providência se torna predestinação. A para muitos calvinistas hoje, especialmente entre os batistas do sul, esta se torna uma predestinação dupla. A de que Deus não apenas predestinou alguns para serem salvos, mas predestinou outros para serem condenados também. Honestamente, acho isso teologicamente repulsivo.
Mas ainda encontramos essas ideias?
Ah sim. Estão inclusive no Agostinho tardio, temos que admitir. Certamente estão lá em Calvino. Menos em Lutero, mas também estão aí. Karl Barth fez algo grandioso dentro da teologia protestante ao desafiar essa proposta, para a fúria de muitos dos seus companheiros calvinistas. Ele desafiou fazendo de Cristo o predestinado e, portanto, tudo deveria ser compreendido com estando centrado em Cristo.
Isso rompeu a infeliz noção de dupla predestinação. Para mim, é sempre interessante: quando um sistema se enfraquece ou mesmo acaba, a sensibilidade muitas vezes perdura. E, na sensibilidade calvinista, a predestinação foi substituída, em artistas como Melville e Hawthorne, por algo mais como o destino, o destino estoico.
E quanto à influência do sentido protestante de pecado?
Sim, uma influência profunda. Aquela grande distinção entre teologia da Reforma clássica e teologia católica clássica é que a teologia católica clássica – incluindo a minha própria – sempre se baseia no entendimento da relação entre natureza e graça.
Aquino tem uma máxima na qual acho que a maioria dos pensadores católicos acredita, eu com certeza: “A graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa”.
A Reforma, desde Lutero, passando por Calvino até Karl Barth, não concorda com isso.
Acreditam no pecado-graça. Ou, mais exatamente, é graça-natureza-graça versus graça-pecado-graça. Porque, como corretamente viram Kierkegaard e Dostoiévski, não podemos entender o que dizem os cristãos por pecado se não entendemos o que querem dizer por graça. Por pecado, não se quer dizer falhas morais individuais. Quer-se dizer toda uma orientação que está distorcida, ou como brilhantemente declarou Lutero: “O eu sempre se volta sobre si mesmo”. Não conseguimos escapar. Eis o que é o pecado. É como a noção budista de avidyā, ignorância primordial.
Não significa “se pudéssemos pensar com um pouco mais de clareza, estaria tudo certo”.
Não, existe uma ignorância primordial. O significado é que existe este problema primordial dos seres humanos – o de que, para dizer claramente, somos todos problemáticos.
Agora, o quão problemático somos é a questão. Fico com figuras como Aquino e outros católicos, mas não com o Agostinho tardio. O primeiro Agostinho, sim, aquele que veio com o valioso pensamento de que “Estamos feridos”, tanto no intelecto quanto na vontade. Mas não estamos totalmente corrompidos, totalmente errados, como Lutero e Calvino tendiam a achar.
Se lidarmos com o paradigma pecado-graça dos protestantes como o paradigma central para compreender o ser humano, será bem diferente de se lidarmos com a natureza-graça como o paradigma. Eu acredito que a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa.
Falamos de literatura acima, e têm algumas coisas sobre o senhor que a maioria das pessoas desconhecem, que é que o senhor lecionou Shakespeare, e outros autores, também história. Poucos teólogos fazem isso. Nem todos são capazes de fazer. Entendo que o senhor aponte, como faz em “Analogical Imagination”, para a literatura e outras formas de arte quando desenvolveu a ideia do “clássico”. Mas o que a experiência de ensinar as peças de teatro de Shakespeare, ou os períodos de história (outras áreas que não a hermenêutica, digamos), traz à sua obra de teólogo?
Digamos da seguinte maneira. A Universidade de Chicago é uma universidade incomum. E uma de suas características incomuns, que passei a gostar, é que, além dos departamentos e faculdades comuns como a Faculdade de Teologia, ela também tem estes comitês para os três graus de ensino, onde alguns professores de diferentes disciplinas são convidados a se juntar. Eu participava de dois deles.
O primeiro, hoje não mais existente, se chamava Comitê para a Análise de Ideias e Métodos. Foi fundado por aqueles eram conhecidos como os Aristotélicos de Chicago – Richard McKeon, Wayne Booth e outros – e era realmente maravilhoso. Era uma grande formação, continuando a formação clássica que recebi na juventude.
Onde obteve a sua formação clássica?
No seminário júnior em Nova York. Latim, grego, filosofia, teologia. Na época havia muitos padres, diferentemente de hoje, e muitos tinham uma ótima formação adquirida em importantes universidades, daqui e do exterior.
E o outro comitê?
O outro era mais interessante ainda. Chamava-se Comitê para o Pensamento Social. [O falecido sociólogo] Robert Bellah, um dos membros, chamava de o “Salon des Refusés” – inspirado nos pintores impressionistas que não tinham permissão para participar das feiras importantes, mas que realizavam os seus próprios eventos. Era um grupo incomum com figuras de diferentes disciplinas: Leszek Kołakowski, Saul Bellow, Allan Bloom, Wendy Doniger.
Os debates sobre os ensaios dos alunos eram de fato maravilhosos. Todos davam a sua opinião – havia vários seguidores de Lévi-Strauss, por exemplo –, mas ninguém insistia na própria opinião quando discutíamos os trabalhos dos alunos.
Posso lembrar dessas coisas ainda hoje. Por exemplo, os debates sobre Tucídides. Eram simplesmente ótimos, e eram poucos alunos que podiam participar do programa.
Chegou a lecionar através do Comitê para o Pensamento Social?
Sim, um dos cursos que dei foi para o Comitê. E por quinze anos foi com o meu maravilhoso amigo e orientador, o brilhante classicista David Grene, tradutor de muitas das tragédias gregas e de Heródoto.
Lecionamos as tragédias gregas e alguns dos diálogos de Platão, além de Shakespeare, para a revista e Donne. Outro participante foi o grande poeta Mark Strand.
Ele e eu demos um curso sobre Emily Dickinson durante um ano, e outro sobre Wallace Stevens no ano seguinte. Foi uma alegria enorme ver como um poeta pensa, como um poeta lê. Em minha opinião, ele era o sucessor de Wallace Stevens, que foi um grande poeta.
Pelo que me lembro, Stevens sugeriu o título de um dos seus livros, “Blessed Rage for Order”.
De fato. Mas adivinha o que Mark não lia? Ele não lia o meu poeta favorito, Yeats. E por bons motivos. Ele dizia: “Não posso ler Yeats. Ele iria me influenciar demais”. Acho que é verdade para os teólogos também. Eu sempre fiquei nervoso ao estudar certos teólogos, como o Mestre Eckhart, com medo de que me influenciariam demais. Como agora, estou finalmente escrevendo sobre Eckhart e simplesmente acho ele incrível.
Pelo que lembro também, a Faculdade de Teologia incentivava o estudo em grupo.
Sim, a maior parte dos meus cursos aconteceram na Faculdade de Teologia, onde lecionei teologia e filosofia da religião. Lecionei hermenêutica e teologia por muitos anos com Paul Ricœur. Ele estava escrevendo o seu livro sobre a metáfora quando eu estava escrevendo o meu sobre a imaginação analógica. Metáfora e analogia combinam bem.
E, depois, Martin Marty e eu trabalhamos dois ou três anos juntos ensinando para os principais pensadores religiosos americanos. Ninguém mais neste país conhece cada religião cristã como Marty. Ele acompanha todos estes jornais que as comunidades produzem; é fantástico. Dar aulas junto dele todos estes anos foi uma formação. Eu não conhecia a história religiosa americana. E agora acho que conheço.
Durante a sua carreira, quais tarefas teológicas o senhor acha que foram essencialmente cumpridas? E quais restam ser feitas?
No momento, posso pensar duas coisas. A primeira é, creio eu, ou pelo menos espero, que a minha geração seja a última a falar de teologia cristã apenas em termos de uma das grandes tradições cristãs.
Adquiri uma compreensão realmente muito boa da tradição católica em meus quatro anos na Universidade Gregoriana. Só mais tarde, depois que vim para a Faculdade de Teologia protestante da Universidade de Chicago, é que aprendi uma boa parcela da tradição protestante e, nos últimos oito ou dez anos, da tradição ortodoxa.
A segunda, penso eu, é que estamos vivendo em um mundo novo onde, espero, as velhas divisões entre conservadores e progressistas venham a diminuir cada vez mais. Agora o que precisamos é dialogar uns com os outros e trabalhar em união.
Por exemplo, aqui na Universidade de Chicago um dos meus melhores amigos é Jean-Luc Marion, presidente da Communio enquanto eu estava no Concilium. Brincamos que participávamos de um movimento ecumênico intracatólico de duas pessoas somente, pois somos tão bons amigos e debatemos as nossas diferenças.
Tarefas a fazer?
Uma coisa a fazer é expandir, de fato aprender tanto quanto possível com as demais tradições religiosas. Os cristãos medievais – Aquino, Eckhart, todos eles – se envolviam muito mais, e estavam muito mais dispostos a aprender, com a tradição dos os judeus, especialmente Maimônides, e com a tradição islâmica, especialmente Avicena. Os medievais se destacavam muito nesse sentido. E é isso o que devemos fazer.
Houve também alguns medievais que conseguiram produzir obras magníficas, como Chartres e a Catedral de Notre Dame.
Sim! Uma das coisas que os teólogos esquecem – muitos, infelizmente – é que, em certos períodos, são os grandes artistas da tradição que apresentam a melhor teologia.
Por exemplo, na teologia que Michelangelo expressa, em seu afresco do Juízo Final na Capela Sistina e em suas esculturas inacabadas, há uma grande teologia, muito maior do que a dos teólogos oficiais desse período, como Cajetan, que foi um comentador muito bom de Aquino. Uma pessoa muito inteligente, mas não era Michelangelo. Da mesma forma, Rembrandt expressa o gênio do calvinismo sobre a soberania de Deus e do caráter atribulado dos seres humanos, especialmente em seus maravilhosos autorretratos, melhor do que fez o Sínodo de Dort dos calvinistas, que se reuniu no mesmo período.
Onde colocaria Dante?
Dante, ele é incomparável. Penso que a coisa mais bela no cristianismo que já li está na última linha de “A divina comédia”: “L’amor che move il sole e l’altre stelle”. O amor que move o sol e as outras estrelas. Isso, para mim, é o coração do cristianismo.
Depois do grande livro, pensa em escrever mais?
Talvez sobre Maria. Sabe como é, só recentemente percebi que nunca escrevi nada sobre Maria.
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Em homenagem aos fragmentos. Entrevista com David Tracy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU