Por: Jéferson Ferreira Rodrigues | 25 Novembro 2016
A experiência eclesial, iniciada no Concílio Vaticano II, não marca o início da igreja católica propriamente dita, mas permite-a uma nova forma de perceber-se diante de si mesma e das exigências do mundo moderno. Nesse processo, a iniciativa foi de revisitar suas fontes, não com um saudosismo nostálgico de um passado mórbido, mas percebendo nelas a tensão profética, de um presente prenhado de futuro, que permite uma nova interpretação para a mesma tradição, em cada tempo e lugar.
O Concílio Vaticano II foi/é um marco importante. Ele não inventou a roda, mas colocou-se na dinâmica de encontrar elementos fundamentais, que antecediam aquela experiência eclesial contextualizada e dispor-se para um diálogo fecundo com o seu próprio contexto. É significativo como os padres conciliares vão progredindo no conhecimento mútuo e na experimentação daquilo que realmente é importante. E descobrindo-se como protagonistas de uma nova história/caminhada eclesial.
Não assumem fórmulas prontas, mas buscam vivenciar cada momento. Sem colocar barreiras de contenções, mas deixando que as pautas surgissem e tomassem corpo, no encontro e confronto das diversas urgências que a experiência interna e externa da igreja estava solicitando e provocando. Não há mais lugar para anátemas. Mas, busca-se discernir os “sinais dos tempos” para melhor entender(-se) na dinâmica do Mistério e na resposta concreta a Ele.
A ousadia de João XXIII, quando convoca e dá as diretrizes ao concílio, não apenas corresponde a disposição de escutar bispos e peritos do mundo inteiro, mas coloca a igreja em outra marcha. Nela as distâncias são diminuídas. A misericórdia torna-se o princípio propulsor de uma nova relação com aqueles(as) que são diferentes. E nessa nova postura, surge a coragem de “elogiar” e dizer aquilo que é significativo para aqueles(as) que vivem e pensam diferentes.
Essa mudança vai dificultar a recepção. Não seria fácil para uma igreja acostumada com as fórmulas prontas e sentenças absolutas. Se antes era claro, pois na firmeza e na delimitação dos “anátemas” sabia-se bem por onde caminhar, agora será preciso discernir os sinais de cada tempo, enraizados nas diversas culturas, para sempre mais perceber a centelha que faz as pessoas progredirem na fé. Isso não se configura um “acidente de percurso”, mas a oportunidade de uma “mudança axial”.
Sim, um “novo tempo” se abriu na/para a igreja. E não somente, pois se analisarmos a realidade, como um todo, vamos perceber que existe a irrupção de uma mudança, não apenas circunstancial, mas profunda dos processos e das mentalidades de/em determinados contextos. Ela atinge as múltiplas dimensões da pessoa. E estamos apenas percebendo seus primeiros sinais. Isso exige discernimento e desconforto diante de novas lógicas.
O que vai acontecer, e já está acontecendo, será um evento inédito e original (hapax), que remodelará as consciências. De fato, será preciso um salto qualitativo, de uma sociedade agrária, para uma sociedade urbana/global/virtual, e aqui os adjetivos poderão multiplicar-se, mas o fundamental é que isso moldará substancialmente nossa forma de pensar e de agir. E nesse caso, como a igreja se pensará e se permitirá?
Não estamos afeitos a mudança. A tendência é ensimesmar-se, permanecendo na pseudo-certeza de sua infalibilidade e não se percebendo como “seguidora” de Jesus de Nazaré, o Filho. Isso exige renunciar privilégios. A igreja ficou grande demais que não cabe no Evangelho. Sua centralização impede que o reinado de Deus, na vida das pessoas, aconteça na liberdade que lhe é devida. Por que uma igreja tão poderosa? O que isso nos aproxima de Deus?
No Evangelho, Jesus encurta as distâncias e promove espaço para todos, no espaço aberto em/de Deus através do seu reinado. A narrativa de Lucas é muito sugestiva. Nela Jesus está a caminho. Ele é um aventureiro, nos caminhos humanos, anseia pela hospitalidade humana para nela oferecer a hospitalidade de Deus. Não teme encontrar-se com as pessoas, de todos os níveis e situações. É verdade, que tem uma preleção, por aqueles(as) que são esquecidos(as) pela religião e pela sociedade de seu tempo.
O encontro se dá no espaço da mesa. Nele aprende-se a compartilhar o pão e a vida. Nele opta-se pela ética da reciprocidade e não da sobreposição. Nela a dinâmica não é da purificação, mas da responsabilidade e da liberdade. O “ser-com” abre caminhos para respeitar as diferenças. Todos(as) estão nivelados(as) pela “mesa”, mas num nível que possibilita a mesma altura e dignidade, embora não garanta a mesma correspondência de opções e intenções. Isso é parte integrante da condição da existência.
A revolução iniciada por Jesus desde a mesa, não é sumária e irrelevante, pois ao aproximar-se daqueles(as) “desqualificados”, anuncia e denuncia que em Deus há espaço para todos(as) e que possuem direitos de/para viver dignamente. Neles as desigualdades podem ser superadas, sobretudo quando ousarmos circular a vida e o pão. E lamentavelmente, o pão não é realidade na mesa de muitos. Essa pedagogia desconsertadora faz com que coloquemo-nos na busca para compor um mundo diferente, sem poderes e privilégios sempre a começar pela igreja.
Não obstante pode-se alimentar o medo da novidade. Não se permitir “viver” o novo, com tudo aquilo que possibilita, na sua exuberância e na sua estranheza. Nele nutre-se uma fé de muitos nãos e uma incerteza negativa. Não é aquela que nos abre um futuro, mesmo que incerto, mas nos aprisiona num passado obsoleto e embolorado de certezas absolutistas. Não se cria espaço de busca humana e religiosa desde as bases eclesiais e das fronteiras da existência. São fronteiras fluidas e interativas, não sendo assim, obstáculos para a vida e para a fé.
Diante de tais situações, não será oportuno afirmar a “inflação” de nossas mediações, mas seu esvaziamento, para que possam ser uma resposta criativa em cada tempo. É preciso levar a sério essa transição que nos afeta, correspondendo com grandeza e dignidade, não criando desculpas e culpados, mas assumindo as consequências desses tempos e daqueles que estão por vir. Não podemos nos dar ao luxo de deixar perder a oportunidade de radicalmente (re)pensar nossa fé.
As respostas não estão prontas. Será preciso aprender a lidar com os medos e aprender “novas regras”, na aventura de ser gente humana e de fé, num cotidiano tão conturbado e encantador. Será preciso experienciar e deixar fluir... hoje não sabemos, mas amanhã compreenderemos (esperamos!). Mas, no momento, o que precisa ser feito é não barrar os fluxos e os processos, humanos e religiosos, e neles/com eles se perguntar: o que a igreja tem a perder?
Contudo, será preciso compreender-se melhor, na busca pelo Mistério, através de um conhecimento não centrado em dogmas e formulações, mas na dinâmica da incompletude que nos faz companhia. Não sabemos tudo. E aqui não é uma falsa humildade. Mas, sempre é preciso abrir-se, num horizonte de futuro, para enriquecer mais a própria compreensão de Deus. Por isso, quando Lumen Gentium fala da igreja, inicia entendendo-a como/no Mistério, para ganhar carne e rosto, na compreensão da mesma como Povo de Deus, onde a verticalidade horizontal faz sobressair uma pluralidade de expressões e possibilidades no interior da comunidade de fé.
Tal feito coloca a igreja numa permanente busca. E aqui será preciso ativar a potência do Concílio Vaticano II, que foi neutralizado na sua recepção, não permitindo que dessem plenamente seus frutos. Não é suficiente um Vaticano III, mas aproveitar esse “novo tempo”, onde a igreja terá a oportunidade de repensar suas estruturas à luz de novas lógicas. Não se encontrará mais lugar para a arrogância de julgar-se detentora da verdade e juíza de todos os fatos.
Talvez seja preciso um “abalo sísmico” das estruturas obsoletas. Pra que numa crise profunda, reative suas expectativas de futuro e abra-se para novas oportunidades desde as suas fontes e no encontro/confronto com o novo que interpela. Será preciso desfazer os “ídolos”, que acabamos construindo, em nossa caminhada humana e de fé. Deixar Deus ser Deus, e a Igreja como testemunha dessa presença, não outorgar para si, um privilégio que não lhe pertence.
As resistências são muitas. Há 50 anos iniciou um processo. Ele encontra ressonância, no ministério do papa Francisco, que assume com ousadia as consequências de uma igreja, no espírito do Concílio Vaticano II. Não se preocupa em cumprir a letra conciliar, mas coloca-o em prática, atualizando os documentos, no encontro encarnado, aproximando-se da vida das pessoas, de suas dores e esperanças. E não é por acaso, que muitos(as) de seus irmãos(ãs) na fé, acostumados com o lugar tranquilo das certezas e dos anátemas, ficam desconcertados(as) e agitados(as).
Em Francisco, o Concílio Vaticano II ganha nova cadência e novo ritmo, sendo muito curioso, que é o primeiro papa que não participou da “elaboração” conciliar, mas apenas da sua recepção. Não é um papa “do Concílio”, mas gestado no/pelo espírito conciliar, que nos seus gestos e palavras deixa acontecer o que foi iniciado, há um tempo não muito distante de nós. É a abertura generosa, e não espetacular, de uma igreja que não quer perder-se em si mesma, mas encontrar-se no rosto do outro, que lhe dá a oportunidade de aprofundar, amadurecer e enriquecer nas/com suas diferenças.
A primavera interrompida do Concílio Vaticano II, por um gélido inverno, agora pode ganhar seu pleno vigor, no “aquecimento” do verão, proporcionado pelo papa Francisco, para que em breve conheça seu outono e dê seus frutos. E virão os invernos, mas que eles sejam tempos de discernimento, para que o esplendor da vida humana e de fé, desde nossa experiência eclesial, retome o seu ritmo e sua dignidade.
Enfim, no Concílio Vaticano II, irrompe um “novo tempo” de oportunidades para a igreja (re)interpretar-se desde as suas fontes. E para aprofundar os aspectos centrais dessa categoria, através de uma reflexão ampliada (planetária), seguimos na companhia de José Maria Vígil, que no Cadernos Teologia Pública, edição 76, analisa a epistemologia religiosa, nos seus limites e na sua relação com o Vaticano II, percebendo-a num processo de profunda mudança. O autor utiliza o método ver, julgar e agir, tendo como lugar-fonte de sua reflexão, aqueles(as) que buscam um horizonte de sentido, e que muitas das vezes não se veem contemplados na própria igreja.
O texto está organizado nos seguintes tópicos:
1. Tempo de Mudanças
2. Ampliação do conhecimento
3. Novas Semânticas e novas significações
Para acessar o texto: clique aqui
José Maria Vigil, teólogo espanhol naturalizado nicaraguense, é padre claretiano, tem formação em Teologia pela Universidad Pontificia de Salamanca. Na Universidade de Santo Tomás de Roma, licenciou-se em Teologia Sistemática. Em Salamanca, Madri e Manágua estudou Psicologia. É doutor em educação pela Universidade La Salle de San José, Costa Rica.
Algumas publicações do autor
Teologia do pluralismo religioso. Para uma releitura pluralista do cristianismo (São Paulo: Paulus, 2006).
Vivendo o Concílio (São Paulo: Paulinas, 1987).
Descer da cruz os pobres: cristologia da libertação (São Paulo: Paulinas/ASET/EATWOT, 2007).
Por los muchos caminos de Dios V. Hacia una teologia planetaria (Quito, Equador: Abya-Yala, 2010).
Por uma teologia planetária (São Paulo: Paulinas, 2011).
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Vaticano II, um novo “tempo axial” para a Igreja? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU