17 Janeiro 2018
Confrontado pela estreita analogia entre a revolução copernicana e a revolução iconográfica com que Michelangelo impõe um Cristo-Apolo no centro do Juízo Final na Capela Sistina, Charles de Tolnay escreve que Michelangelo "alcança uma visão do universo, curiosamente precursora daquela de seu contemporâneo Copérnico. A ideia da composição de Michelangelo precede de sete anos a publicação do astrônomo de Thorn (que foi publicada em 1543)".
A reportagem é de Antonio Rocca, publicada por La Repubblica, 15-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Faltam documentos para atestar uma relação direta entre o astrônomo e o artista, portanto Tolnay é obrigado a usar o termo "curiosamente", mas a ligação é evidente e com a intenção de preencher tal lacuna empenhou-se Valerie Shrimplin. A pesquisadora britânica reconstruiu o quadro que combina os dois, salientando a importância de um episódio de 1533. Em junho, Clemente VII convida Albert Waldstadt para que, nos jardins do Vaticano e diante a um restrito círculo de cardeais, ilustre o modelo de Copérnico.
Aquela visão heliocêntrica, disposta na esteira do neoplatonismo florentino, apaixonou o Médici que doou a Waldstadt um manuscrito precioso. De acordo com Shrimplin o papa amadureceu então a decisão de realizar o Juízo Final.
A encomenda de Buonarroti foi concretizada já no fim do verão de 1533 e a morte do pontífice não interrompeu o projeto, que foi imediatamente retomado por Paulo III, Farnese.
A memória dos processos de Giordano Bruno e Galileu Galilei parece lançar uma sombra sobre a possibilidade que estes dois papas tivessem podido conceber a realização de uma colossal declaração heliocêntrica no coração do cristianismo; no entanto, precisamos lembrar que estávamos na década de 1530 e que a defesa do sistema de Ptolomeu só se imporia no século seguinte. O De Revolutionibus Orbium Coelestium foi colocado no Índex em 1616. Uma aversão inclusive discutível, por quanto demonstrado pelas simpatias por Galileu do cardeal Barberini, mais tarde Papa Urbano VIII, e o afresco de Andrea Sacchi no palácio Barberini, que alude ao heliocentrismo.
Hipótese antiga, a heliocêntrica, que havia conhecido uma fase de virada com a publicação do De Sole de Marsilio Ficino.
Vamos retomar a história a partir deste momento, observando-a na perspectiva dos protagonistas do nosso episódio, na ocasião apenas três jovens. É o ano de 1493, Copérnico tem vinte anos e estuda astronomia em Cracóvia, o De Sole é seu livro texto; Michelangelo usufrui da proteção de Piero de Medici, a quem o De Sole é dedicado; Alexandre Farnésio, discípulo de Ficino, está prestes a se tornar um cardeal.
O tratado expressa poucos conceitos com grande clareza: o sol, a imagem de Deus, ocupa uma posição central no universo e representa a justiça divina.
"A justiça, rainha de todas as coisas", escreve Ficino, “difunde-se por toda parte a partir do trono do Sol, e tudo dirige, como fosse o Sol a guiar todas as coisas".
Copérnico procurou então encontrar uma maneira de alinhar matemática, astronomia e platonismo. Durante duas décadas de trabalho não conseguir resultados decisivos porque seus cálculos foram prejudicados por axiomas internos ao platonismo. Assim, apesar de todo dado empírico, o polonês jamais teve a intenção de renunciar à perfeita circularidade das órbitas planetárias.
Conceitos pitagóricos que Copérnico ensinava em suas lições romanas de 1500, às quais parece também participassem Michelangelo e Alexandre Farnésio. Sabendo o que viria depois, sabendo que Paulo III seria o adquirente final do Juízo e que a ele foi dedicado o De revolutionibus, somos levados a crer que desde então, desde o início do século, entre os três tivessem se estabelecido relações diretas. Os círculos eram próximos demais na Roma agostiniana e neoplatônica, para imaginar que semelhantes personagens não se conhecessem, contudo o que nos interessa aqui é observar como o artista, o cientista e o homem da Igreja, foram capazes de dar vida a conceitos abstratos aprendidos na juventude.
Tendo-se tornado com a idade homens bem-sucedidos, o Farnésio, Michelangelo e Copérnico trabalharam os princípios ficinianos, atribuindo-lhes substância e criando um panorama cultural coerente. Enquanto isso, porém, tudo havia mudado. O Juízo e o De revolutionibus estavam desatualizados, já nasceram velhos ou carregados de um futuro que os tornaria incompreensíveis. Ao apresentar o seu trabalho, Ficino escrevera que o livro devia ser lido de forma alegórica e anagógica, não dogmática. A tradução em imagem daquele texto vinha à luz no momento em que a Igreja de Roma empenhava-se em banir modelos de leitura figurativa, em prol de uma precisa representação dos dogmas formulados em Trento.
O conflito era inevitável, tanto no plano formal como no mérito. Michelangelo tinha colocado entre os beatos uma mulher que exibia um arranjo de cabeça no estilo judaico, dois índios e um casal de infiéis, amarrados por um anjo através de um terço de cem contas, típico dos muçulmanos. Definitivamente demais para Paulo IV, o Papa do gueto, do índice dos livros proibidos e da Inquisição.
Felizmente o afresco permaneceu intacto, apesar de ter sofrido alguma limitada intervenção de censura.
Integro, mas mal compreendido, tornado opaco e criticado por católicos pedantes e pelas fábulas protestantes de uma Roma pagã, onde os deuses gregos tinham tomado o lugar de Deus. Afinal, o que poderia apreciar um homem como Lutero, vagamente iconoclasta e adversário de Copérnico?
Mas o que mais causou dano foi a Modernidade, ou melhor, a reconstrução apologética das origens da Revolução Científica. O progresso científico e o anticlericalismo com o tempo começaram a tornar-se quase sinônimos.
Reconstruiu-se a narrativa de um complicado e constante retorno para a luz obtido através da luta contra o obscurantismo católico, feito de livros proibidos, processos, abjurações, torturas e condenações.
Episódios reais, mas colocados sobre um percurso unilinear onde são esquecidos o heliocentrismo do Bispo Nicolau de Cusa, do sacerdote Ficino e a ortodoxia do canônico agostiniano Copérnico. Todos eles, como o dominicano Bruno, observavam a abóbada celeste porque, como recita o Salmo 18: "Os céus proclamam a glória do Senhor". Além da Modernidade, depois de se despedir dos mitos solares de todo o Iluminismo, é mais fácil reconhecer que o Juízo Final não é uma exaltação incongruente de beleza pagã e que Copérnico não era um precursor do livre pensamento. Lemos no De Revolutionibus: "A máquina do universo foi criado para nós, pelo melhor e mais perfeito artífice (...) E no meio de tudo está entronizado o Sol. Neste belíssimo templo, poderíamos colocar este luminar em alguma posição melhor, da qual ele pudesse iluminar o todo imediatamente? Ele é corretamente chamado a Lâmpada do mundo, a Mente, o Governante do Universo. Hermes Trismegisto chama-o de Deus Visível, a Electra de Sófocles aquele que vê todas as coisas. Então o Sol senta-se em um trono real, governando seus filhos, os planetas, que circulam em tono dele". A Capela Sistina, que tem as mesmas dimensões do templo de Jerusalém, é este templo.
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Michelangelo precursor de Copérnico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU