Por: Patricia Fachin | 28 Setembro 2017
Apesar de haver uma certa euforia em torno da 4ª Revolução Industrial, ela “ainda é uma promessa”, diz José Eustáquio Alves à IHU On-Line. Por enquanto, pontua, é possível afirmar que a revolução que de fato transformou o mundo em termos econômicos e sociais foi a segunda. “A 2ª RI foi a mais importante em termos de acelerar o crescimento econômico com inclusão social e redução das desigualdades, garantindo cerca de 100 anos de acelerado avanço da produtividade do trabalho e do bem-estar global da humanidade”, avalia.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador comenta as possíveis implicações da 4ª Revolução Industrial no mundo do trabalho, na área genética, no desenvolvimento de novos armamentos, na continuidade da espécie humana e na transição energética. “Creio que a transformação mais significativa da 4ª RI será a mudança da matriz energética, por meio da transição do uso generalizado de combustíveis fósseis para a predominância das energias renováveis (solar, eólica, geotérmica etc.). Não tenho dúvidas de que teremos uma revolução imemorial, que representará uma mudança de época, desde o tempo em que os nossos antepassados começaram a usar o fogo para aquecer e cozinhar”.
Sobre as mudanças no âmbito do mercado de trabalho, Alves frisa que a automação e a robótica não representam um risco significativo para os trabalhadores, porque até o momento os países que mais aderiram à 4ª Revolução Tecnológica mantêm altos índices de emprego. “Dados do banco Credit Suisse, de 2016, mostram que os três países com maior uso de robôs em relação à força de trabalho manufatureira, no mundo, são a Coreia do Sul, com 531 robôs para cada 10 mil trabalhadores, Cingapura com 398 por 10 mil e Japão com 305 por 10 mil. Dados da Organização Internacional do Trabalho - OIT, também para 2016, mostram que o desemprego era de 3,5% na Coreia do Sul, 3,1% no Japão e 2,1% em Cingapura. Assim, o nível de robotização não está correlacionado com perda de emprego nestes três países”, informa.
Nesse sentido, sustenta, “não há mágica que consiga eliminar a importância do trabalho humano. Evidentemente, o velho trabalho industrial, próprio da 1ª e da 2ª RI, já está sendo eliminado, ou melhor, transformado. Assim como os empregados dos parques gráficos substituíram os copistas e os operadores de máquinas agrícolas substituíram aqueles que usavam arado e enxada, os trabalhadores da Revolução 4.0 vão substituir os ‘gorilas domesticados’ do regime fordista. Mas continuarão a ser trabalhadores gerando valor, ou não haverá realização da produção”.
José Eustáquio | Foto: Unicamp
José Eustáquio Diniz Alves é doutor em Demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que comparações estabelece entre a 2ª e a 4ª Revolução Industrial? Por que, na sua avaliação, a 2ª Revolução foi a que teve o maior impacto na produtividade e no bem-estar global?
José Eustáquio Alves - A 4ª Revolução Industrial - RI ainda é uma promessa. Por enquanto, o que podemos avaliar, com base em evidências concretas, são as três primeiras revoluções. Como escreveu Robert J. Gordon no premiado livro “The Rise and Fall of American Growth: The U.S. Standard of Living since the Civil War” (2016), a 1ª Revolução Industrial foi caracterizada pelos seguintes principais marcadores: ferrovias, energia a vapor (com base no carvão mineral), ferro e indústria têxtil, abarcando o período de 1770 a 1870; a 2ª RI foi marcada por massificação do acesso à eletricidade, petróleo e gás natural, aço, motor a combustão interna, petróleo, gás natural, automóveis, eletrodomésticos, produtos farmacêuticos, plásticos, água encanada, banheiros, saneamento básico, aquecimento dentro de casa, telefone fixo, avião, abarcando o período de 1870 a 1960; a 3ª RI foi marcada por telecomunicações, computadores, energia nuclear, internet, celulares, abarcando o período de 1960 até o início do século XXI.
Segundo Gordon, a segunda RI foi a mais importante em termos de acelerar o crescimento econômico com inclusão social e redução das desigualdades, garantindo cerca de 100 anos de acelerado avanço da produtividade do trabalho e do bem-estar global da humanidade. Ele argumenta que este evento excepcional é único no tempo e não vai se repetir novamente. Nos debates que mantém com os tecnófilos cornucopianos da 4ª RI, ele costuma perguntar, provocativamente, para a audiência, o que preferem numa situação de emergência: ficar uma semana sem água no banheiro ou sem Internet. Em geral, as pessoas escolhem a segunda opção.
A revista britânica The Economist, de 12/01/2013, fez uma capa sensacional colocando a imagem do pensador de Auguste Rodin sentado em um vaso sanitário com a seguinte pergunta: “Será que vamos inventar algo tão útil novamente?”
De fato, o vaso sanitário e o saneamento básico possibilitaram a redução da mortalidade infantil e o aumento extraordinário da esperança de vida ao nascer. As pessoas pararam de morrer precocemente, “como mariposas”. O aumento da sobrevivência dos filhos viabilizou a queda das taxas de fecundidade, que, por sua vez, possibilitou a mudança da estrutura etária e o surgimento de uma janela de oportunidade demográfica que foi fundamental para o aumento da produtividade econômica e para o bem-estar dos indivíduos e das famílias. O saneamento básico também tem o efeito de minimizar o impacto degradador da atividade fisiológica humana sobre o meio ambiente. Essa conquista histórica está relacionada com a 2ª RI e é um evento único e não replicável.
IHU On-Line - Ainda em comparação à 2ª e à 4ª Revolução Industrial, o que ainda é possível esperar da 4ª RI em termos de bem-estar global?
José Eustáquio Alves - Do ponto de vista da produtividade e do bem-estar, até o momento, a 4ª Revolução Industrial tem feito muito barulho por quase nada. Nos Estados Unidos, a produtividade total dos fatores de produção, no período compreendido entre 2004 e 2014, é a mais baixa desde a Guerra de Secessão (1861-1865). Estudo da consultoria McKinsey mostra que a proporção de famílias com renda real estagnada ou em queda, entre 2005 e 2012-14, atinge mais de 60% do total das 25 economias mais avançadas do mundo.
Creio que a transformação mais significativa da 4ª RI será a mudança da matriz energética, por meio da transição do uso generalizado de combustíveis fósseis para a predominância das energias renováveis (solar, eólica, geotérmica etc.). Não tenho dúvidas de que teremos uma revolução imemorial, que representará uma mudança de época, desde o tempo em que os nossos antepassados começaram a usar o fogo para aquecer e cozinhar. Abandonar os hidrocarbonetos é essencial para a descarbonização da economia e para evitar o Pico do Petróleo (Pico de Hubbert).
Mas temo que a efetivação da revolução energética chegue tarde demais. Recentemente, uma equipe de pesquisadores, liderada pelo engenheiro ambiental da Universidade de Stanford, Mark Jacobson, lançou um roteiro efetivo para que 139 países (os maiores do mundo) possam alcançar a meta de 100% de energias renováveis até 2050. Esse roteiro ousado e ambicioso está sendo torpedeado pela indústria fóssil e pelo presidente Donald Trump. Porém, mesmo que o plano do professor Mark Jacobson seja colocado em prática, pode vir muito tarde, pois o nível de CO2 na atmosfera já ultrapassou 410 partes por milhão (ppm) e deve chegar a cerca de 500 ppm até 2050 (o nível seguro é 350 ppm). Caminhamos para o nível mais alto do efeito estufa em 20 milhões de anos. Além disso, temos a liberação do metano da pecuária e do permafrost da região ártica. O gás metano é de 20 a 30 vezes mais poluidor do que o CO2.
Artigo publicado no periódico científico Palaeoworld (Uwe Branda et. al., dez 2016) traz uma afirmação preocupante: "O aquecimento global provocado pela liberação maciça de dióxido de carbono pode ser catastrófico. Mas a liberação do hidrato de metano pode ser apocalíptica".
IHU On-Line - Quais são, na sua avaliação, as promessas da 4ª Revolução Industrial, especialmente no que diz respeito às questões socioeconômicas e de reengenharia biológica? Como estamos nos comportando em relação a essas promessas?
José Eustáquio Alves - A Revolução 4.0 promete muita coisa nas áreas de robótica, Internet das Coisas, veículos autônomos, impressão 3-D, nanotecnologia, biotecnologia, armazenamento de energia, ciência de materiais, computação quântica, tecnologias de edição de genoma, como CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) etc. O empresário Klaus Schwab, no livro “The fourth industrial revolution”, considera que as transformações 4.0 não representam apenas um prolongamento das RIs anteriores, pois “a velocidade dos avanços atuais não tem precedente histórico”. Não temos espaço nesta entrevista para pormenorizar todos esses vetores de transformação. Indubitavelmente, o impacto será amplo, geral e irrestrito. Só não há certeza se os resultados finais serão benéficos para a maioria da população e para o meio ambiente.
Abordemos aqui, como exemplo, apenas uma das promessas da RI 4.0, que é absolutamente transformadora, para o bem ou para o mal. O biogerontologista inglês Aubrey de Grey considera que o envelhecimento é uma doença que pode ser curada. Ele propõe uma terapia para rejuvenescer o corpo humano, a partir de um conjunto de técnicas chamadas de "Estratégias para Programar um Envelhecimento Mínimo" (SENS, em inglês). De Grey considera ser possível prolongar, indefinidamente, a longevidade humana.
Já o cientista Raymond Kurzweil defende a possibilidade de se alcançar a vida eterna. Ele prevê o desenvolvimento de três grandes revoluções sobrepostas, agrupadas na denominação “GNR”: Genética, Nanotecnologia e Robótica. Cada uma delas propiciaria aumentos dramáticos da longevidade humana. Para ele, a biotecnologia ofereceria os meios para alterar os genes, rejuvenescendo todos os tecidos e órgãos do corpo, transformando as células da pele em versões jovens de qualquer outro tipo de célula. A nanotecnologia e a robótica permitiriam superar os limites da biologia e substituir bionicamente partes do corpo com um substancial aperfeiçoamento do organismo. Kurzweil defende a ideia da junção da Inteligência Artificial - IA com a biotecnologia, a genética, a nanotecnologia, a revolução digital e a robótica, para modificar completamente a vida e a forma de convivência no Planeta. Ele considera que haverá um ponto de mutação definido como “singularidade”, termo emprestado da física, que corresponde a um ponto em que acréscimos finitos no tempo irão conduzir a um potencial científico e tecnológico infinito.
Nessa mesma linha, David Pearce, cofundador da “Humanidade+” (Humanity Plus), acredita que os avanços tecnocientíficos vão permitir modificar o corpo e a mente do ser humano, indefinidamente, deixando em segundo plano a evolução biológica. Ele diz que, se quisermos viver no paraíso, teremos que fazer uma reengenharia em nós mesmos. Se queremos a vida eterna, precisaremos reescrever o código genético e transformar-nos em uma raça superior: os transumanos imortais.
Não há qualquer certeza de que possamos ser, algum dia, transumanos imortais. De qualquer forma, essa ideia, digna dos pesadelos de Mary Shelley, autora do livro “Frankenstein, ou o moderno Prometeu” (publicado em 01/01/1818), tem muitos críticos. O filósofo “bioconservador” Francis Fukuyama (aquele do “fim da história”), abomina o transumanismo e a “eugenia positiva”, pois considera que as tecnologias de melhoramento humano são desumanizantes. Para ele, a preservação da natureza do Homo sapiens é uma condição essencial da dignidade humana. Alterar a natureza biológica e mental modificaria drasticamente o estatuto ontológico humano, ameaçando todo o arcabouço prático e jurídico da Declaração Universal dos Direitos Humanos e colocando em xeque o princípio universal de que todos os indivíduos são iguais perante a lei.
Uma elite transumana imortal potencializaria os perigos da “sociedade de risco”, tais como o surgimento de um conflito racial de grandes proporções e um aumento ainda maior das desigualdades sociais. O grande empresário schumpeteriano e inventor do revolucionário iPhone, Steve Jobs, também se posicionou, filosoficamente, contra as tentativas de se alcançar a imortalidade, pois, para ele: "A morte é o agente de mudança da vida".
IHU On-Line - Ainda nesse sentido, por que diria que a Inteligência Artificial - IA, que está por trás da 4ª Revolução Industrial, pode também se transformar no Frankenstein do século XXI?
José Eustáquio Alves - A IA pode se transformar em um monstro incontrolável. Quem diz isso são personalidades do calibre do empresário Elon Musk e do físico Stephen Hawking. Falando em uma reunião para os governadores dos diversos Estados americanos, em Rhode Island, no dia 15/07/2017, Musk disse: “Até que as pessoas não vejam robôs matando gente na rua não entenderão os perigos da inteligência artificial”. E completou: “Com a IA estamos convocando o demônio”.
Stephen Hawking também diz que os esforços para criar máquinas pensantes é uma ameaça à existência humana. Em entrevista à BBC, ele diz: "O desenvolvimento da inteligência artificial total poderia significar o fim da raça humana". Hawking considera que a união entre a IA e os robôs criaria uma situação em que as máquinas “avançariam por conta própria e se reprojetariam em ritmo sempre crescente, enquanto os humanos, limitados pela evolução biológica lenta, não conseguiriam competir e seriam desbancados".
Em parte, a preocupação de Musk e Hawking decorre dos efeitos negativos potenciais da Inteligência Artificial no processo de automatização e na destruição de empregos, com a consequente desestabilização da ordem social. Mas a preocupação principal com o desenvolvimento desregrado da IA é a possibilidade de criar um supercontrole das liberdades individuais, colocar fim à privacidade das informações pessoais, ao estilo Big Brother, e, diante dos conflitos internacionais, a IA pode, autonomamente, desencadear guerras catastróficas.
IHU On-Line - O desenvolvimento de robôs tem suscitado algumas discussões, e uma delas é o desenvolvimento de robôs superinteligentes e autônomos, que tenham capacidade militar. Quais são os perigos desse tipo de desenvolvimento?
José Eustáquio Alves - Existe uma campanha internacional da ONU para colocar fim aos robôs assassinos. Em 2015, um grande número de empresários, estudiosos da ciência e tecnologia e defensores dos direitos humanos assinaram uma carta aberta pedindo que os governos mundiais proíbam o desenvolvimento de "armas autônomas ofensivas" para impedir uma "corrida armamentista militar de Inteligência Artificial". A carta, apresentada na Conferência Conjunta Internacional sobre Inteligência Artificial (IJCAI, sigla em inglês), ocorrida em Buenos Aires, foi assinada por Stephen Hawking, Elon Musk, Noam Chomsky, dentre outros.
Para o complexo industrial-militar global é enorme o potencial que surge com os robôs assassinos e sapiens (com memória ilimitada e capacidade cognitiva). Os robôs voadores e matadores já existem e já foram testados nos conflitos armados do Iêmen e em outros países do Oriente Médio. Já existem os drones que voam e atuam durante o dia, mas também à noite (soldados do futuro, atuando 24 horas diárias e 7 dias por semana), pois enxergam os inimigos com luz infravermelha ultravioleta, lançam mísseis contra os alvos cirúrgicos definidos pela IA da inteligência militar.
Com alta probabilidade, pode-se dizer que os “robôs assassinos” estão sendo gestados nas profundezas secretas da pesquisa militar e nos estudos sobre a destruição em massa. As armas totalmente autônomas capazes de selecionar, identificar e se envolver com alvos de sua própria escolha, sem interferência humana, parece que ainda não vieram à luz. Se bem que os serviços de contra-inteligência suspeitam que algum protótipo já esteja sendo testado. Vários países, incluindo China, Reino Unido, Israel, Coreia do Sul, Rússia e EUA, estão trabalhando em seus arquétipos. Recentemente, Vladimir Putin disse que: “Um novo conflito poderia ser iniciado não pelos líderes dos vários países, mas por um dos seus sistemas de inteligência artificial”.
Vamos torcer para que não aconteça um conflito bélico desencadeado pelo Sistema de Armas Autônomas (“Autonomous Weapon System – AWS”), já que o perigo mais imediato é um cenário de Terceira Guerra Mundial a partir da evolução das inconsequentes agressões verbais protagonizadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e Kim Jong-un, o líder norte-coreano.
IHU On-Line - Alguns sociólogos e economistas têm chamado atenção para as possíveis implicações da Revolução 4.0 no mundo do trabalho, porque, segundo essa visão, as tecnologias tendem a automatizar uma série de processos produtivos, gerando desemprego. Concorda com essa análise? Diria que ela é mais apocalíptica ou realista?
José Eustáquio Alves - A automação não implica necessariamente em desemprego. As relações são mais complexas. O desemprego tecnológico, em nível microeconômico, faz parte da história do Capitalismo. O economista francês Jean-Baptiste Say, no livro “Tratado de Economia Política”, de 1803, dá o exemplo do parque gráfico que eliminou os empregos dos copistas. Say diz que cada emprego gráfico eliminou 199 copistas. Mas a maior facilidade de ler obras impressas e o rebaixamento do custo de impressão deu o incentivo para aumentar a leitura para instrução, lazer etc. Assim, em termos macroeconômicos, em pouco tempo, havia mais gráficos empregados do que copistas desocupados. Outro exemplo é o setor agropecuário dos Estados Unidos, que empregava 90% da força de trabalho e, por conta da automação agrícola, atualmente emprega cerca de 3%, embora o país esteja, em 2017, próximo do pleno emprego.
Dizem que a história vai ser diferente com a automação e a robótica da RI 4.0. Contudo, dados do banco Credit Suisse, de 2016, mostram que os três países com maior uso de robôs em relação à força de trabalho manufatureira, no mundo, são a Coreia do Sul, com 531 robôs para cada 10 mil trabalhadores, Cingapura com 398 por 10 mil e Japão com 305 por 10 mil. Dados da Organização Internacional do Trabalho - OIT, também para 2016, mostram que o desemprego era de 3,5% na Coreia do Sul, 3,1% no Japão e 2,1% em Cingapura. Assim, o nível de robotização não está correlacionado com perda de emprego nestes três países.
O que explica esta relação inversa entre robôs e desemprego, no leste asiático, é a dinâmica demográfica, o modelo de desenvolvimento e o alto nível das taxas de poupança e investimento. Estes países são muito voltados para a competitividade internacional e possuem alto grau de exportação (export-led growth). Para compensar o declínio da população em idade ativa - PIA, recorrem à automação da produção e não à imigração. Eles possuem altas taxas de investimento, elevada capacidade tecnológica e usam os robôs como aliados e não como inimigos.
Já o Brasil, com pouquíssimos robôs no seu parque produtivo, possui 26 milhões de desempregados (no conceito amplo do IBGE) e uma taxa de desemprego total acima de 20%, sendo que o desemprego de jovens está acima de 30%. Com baixa taxa de poupança e investimento, com pouca competitividade internacional e com uma enorme crise social e fiscal, o Brasil está no pior dos mundos, pois tem todas as mazelas das três primeiras RIs e está longe de entrar na onda da 4ª RI.
IHU On-Line - O senhor disse que uma economia sem trabalho humano está fadada ao fracasso, e que a robótica e a automação só terão sucesso se forem “amigas” do pleno emprego e do trabalho decente. Que tipo de cenário está imaginando? Como, de modo ideal, deveria se dar a relação entre trabalho humano e o uso das tecnologias?
José Eustáquio Alves - Ainda acredito na teoria do valor. A primeira frase do livro de Adam Smith “A Riqueza das Nações”, de 1776, diz: “O trabalho anual de cada nação constitui o fundo que originalmente lhe fornece todos os bens necessários e os confortos materiais que consome anualmente”. Toda a economia clássica inglesa reafirmou a concepção de que o trabalho é a fonte de toda a riqueza civilizacional. Karl Marx (1818-1883) reafirmou a teoria do trabalho como a verdadeira fonte de valor e de geração de mais-valia no processo de transformação da natureza para a produção de bens e serviços. Para o marxismo, os robôs atuantes no processo manufatureiro entram na parte que representa o capital. Evidentemente, eles serão usados na medida em que aumentarem a mais-valia relativa, mas sua universalização só ocorrerá se o aumento da composição orgânica do capital não prejudicar a rentabilidade da taxa de lucro.
Além do mais, o capitalismo é o sistema que mais avançou com as forças produtivas e que tem a maior capacidade de gerar produtos para atender a população. Contudo, ele também precisa vender sua produção. Na disputa entre capital e trabalho, existe o conflito distributivo, com capitalistas e trabalhadores, em lados opostos, tentando aumentar, cada qual à sua maneira, a sua parcela de apropriação da produção. Essa é a regra do jogo. Seria ilusão achar que a robótica possa dispensar o trabalhador de sua função essencial que é gerar valor. Somente o trabalho humano é capaz de gerar riqueza, no conceito ampliado de bem-estar. Desta forma, o pleno emprego e o trabalho decente, bandeira da OIT, é mais atual do que nunca.
IHU On-Line - De outro lado, por conta do desenvolvimento de robôs que passarão a atuar cada vez mais no mercado de trabalho, alguns pesquisadores têm sugerido ou a tributação do trabalho dos robôs ou a criação de algum tipo de renda básica para todos os cidadãos, justamente porque se espera que eles substituirão a força de trabalho humano. Como vê essas propostas?
José Eustáquio Alves - A ideia de uma renda básica de cidadania é antiga e foi defendida, por exemplo, pelo grande revolucionário Thomas Paine, que no livro Agrarian Justice, de 1795, propôs a criação de um fundo de cidadania que viria da taxação da renda da terra, para apoiar os idosos e fornecer uma renda aos jovens para que eles pudessem, autonomamente, se estabelecer na economia e formar suas famílias sem cair na armadilha da pobreza. A proposta de Paine não tinha como intenção substituir a força de trabalho humana.
Sustentar uma renda básica de cidadania, de caráter universal, para manter uma humanidade ociosa (mesmo que for “ócio criativo”), com base na tributação de robôs - únicos agentes do processo produtivo – é o mesmo que revogar a teoria do valor. Ou seja, não há mágica que consiga eliminar a importância do trabalho humano. Evidentemente, o velho trabalho industrial, próprio da 1ª e da 2ª RI, já está sendo eliminado, ou melhor, transformado. Assim como os empregados dos parques gráficos substituíram os copistas e os operadores de máquinas agrícolas substituíram aqueles que usavam arado e enxada, os trabalhadores da Revolução 4.0 vão substituir os “gorilas domesticados” do regime fordista. Mas continuarão a ser trabalhadores gerando valor, ou não haverá realização da produção.
IHU On-Line - Do ponto de vista ambiental, quais são as questões que devem ser consideradas em relação à 4ª Revolução Industrial? Diria que a Revolução 4.0 poderá ser “ambientalmente” mais correta do que foi a 2ª Revolução?
José Eustáquio Alves - A Revolução 4.0 promete ser mais amiga do meio ambiente na medida em que fizer a transição energética e a descarbonização da economia; na medida em que avançar na sociedade da informação, com base na produção de bens imateriais e intangíveis; na medida que fizer a transição do carro individual de motor de combustão interna, para o carro elétrico, autônomo e compartilhado; etc.
Entretanto, a eficiência econômica (produzir mais com menos) só tem impacto positivo sobre o meio ambiente se não for acompanhada do crescimento ilimitado e degradador da natureza. A 4ª RI não pode cair no “Paradoxo de Jevons”, que é um conceito utilizado para descrever o fato de que o aperfeiçoamento tecnológico ao aumentar a eficiência com a qual se usa um recurso ou se produz um bem econômico, o mais provável é que aumente a demanda desse recurso ou produto. Tal fenômeno foi observado pelo economista britânico William Stanley Jevons (1835-1882), que escreveu em 1865 o livro “O Problema do Carvão”, observando que os motores mais eficientes da Revolução Industrial, ao invés de reduzir, aumentaram o uso total do carvão. Ele escreveu: “É um completo engano supor que um uso mais eficiente dos combustíveis implicará numa redução do seu consumo. A verdade é precisamente o oposto”.
As três primeiras revoluções industriais tiveram como base um desenvolvimento insustentável baseado no uso de recursos não renováveis, na degradação dos ecossistemas, na aniquilação da biodiversidade e na extinção de espécies. Todo o extraordinário progresso humano dos últimos 250 anos se deu às custas do lamentável e injusto regresso ecológico. O “Ter” ficou mais importante do que o “Ser”. O capitalismo seduz os trabalhadores por meio da “liberdade da escravidão assalariada” e da lógica do consumismo. Mas, como mostrou Josep Maria Galí (2014), o “consumicídio” pode resultar em colapso ambiental e civilizacional.
A humanidade já ultrapassou a capacidade de carga da Terra. Segundo a Footprint Network, a pegada ecológica global estava 68% acima da biocapacidade global em 2013. Segundo o Stockholm Resilience Center, o mundo já ultrapassou quatro das nove fronteiras planetárias. Duas delas, a Mudança climática e a Integridade da biosfera, são consideradas "limites fundamentais" e suas ultrapassagens podem levar a civilização à derrocada.
Portanto, a 4ª Revolução Industrial só poderá ter sucesso se conseguir reduzir a capacidade de carga da humanidade, diminuindo a Pegada Ecológica e aumentando a Biocapacidade do Planeta. De acordo com Herman Daly, o contínuo crescimento econômico nos últimos 250 anos mudou a correlação de forças no Planeta, que passou de um mundo antropicamente vazio para um mundo antropicamente cheio. O crescimento está ficando “deseconômico”, pois a natureza degradada já não fornece tantos serviços ecossistêmicos. Como ensina a escola da Economia Ecológica, a economia é um subsistema da ecologia e sem ECOlogia não há ECOnomia.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
José Eustáquio Alves - Gostaria de voltar às reflexões de Robert Gordon sobre o estado da economia internacional, especialmente dos países mais desenvolvidos. Ao contrário das promessas de abundância fáustica da Revolução 4.0, Gordon argumenta que existem seis “ventos contrários” (headwinds) que devem desacelerar o crescimento econômico mundial: 1) aumento das desigualdades sociais, 2) educação deteriorada; 3) degradação ambiental; 4) maior competição provocada pela globalização; 5) envelhecimento populacional; e 6) o peso dos déficits e do endividamento público e privado.
Ao invés de uma sociedade afluente e “de custo marginal zero”, a tendência global parece ir no sentido da “estagnação secular”, ou seja, um período prolongado de baixo crescimento econômico, com aumento da anomia social e agravamento dos desastres ambientais. Os recentes estragos provocados pelos furacões Harvey, Irma e Maria são apenas um exemplo.
A sociedade atual — assentada no triângulo indústria-riqueza-consumismo — é insustentável e injusta, uma vez que recorre a taxas de utilização de recursos naturais per capita, não universalizáveis para o conjunto da população mundial. O tripé da sustentabilidade virou trilema, pois é impossível manter o crescimento das atividades antrópicas, num mundo cheio e regido pelo fluxo metabólico entrópico. A simplicidade voluntária e, em especial, o decrescimento demoeconômico (que não se confunde com recessão) deve ser uma opção a ser considerada como alternativa para conciliar a economia, a sociedade e o ambiente, no quadro da Revolução 4.0.
De forma conclusiva, termino com as palavras finais do excepcional livro “Capitalismo e colapso ambiental”, do professor da Unicamp Luiz Marques: “O fato simples, incontornável e insofismável que constitui nossa agenda é que ao homem contemporâneo não resta outra alternativa senão tentar o que parece hoje, e talvez mais que nunca, inverossímil, tentar superar o capitalismo, se por isso se entende superar, ao mesmo tempo, a engrenagem insana da acumulação e a miséria filosófica do antropocentrismo”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"A Inteligência Artificial pode se transformar em um monstro incontrolável". Entrevista especial com José Eustáquio Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU