06 Setembro 2018
"O grande desafio e a grande esperança consistem em agir localmente, mas apontando para um horizonte de visão holística e globalizada. Somente nesta prospectiva, o imigrante deixará de ser um “problema” ou “ameaça”, para tornar-se uma oportunidade de encontro, mútuo intercâmbio e enriquecimento", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais.
De acordo com o Dicionário, kairós é uma palavra de origem grega, que significa "momento certo" ou "momento oportuno", relativo a uma antiga noção que os gregos tinham do tempo. Deriva daí a noção de “tempo kairológico”. Não será exagero afirmar que semelhante expressão se adapta perfeitamente aos desafios do próximo XV Capítulo Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos (CS) – padres carlistas ou scalabrinianos – que se realizará em Roma, de 9 de outubro a 4 de novembro de 2018, enriquecido por uma audiência com o Papa Francisco e finalizando com a festa de São Carlos. Participarão representantes de vários países dos cinco continentes.
Os desafios no campo migratório atual apresentam duas características fundamentais como contexto sócio histórico. Em primeiro lugar, os números retratados e divulgados pelos mais recentes relatórios da ONU confirmam o crescimento significativo dos deslocamentos humanos de massa nas últimas décadas e nas mais diversas regiões do globo terrestre. A migração hodierna converteu-se em um fenômeno estrutural, planetário, complexo e amplamente diversificado, como já lembrava a Instrução do então Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, da Santa Sé, Vaticano, Erga Migrantes Cáritas Christi, publicada em 2004.
Voltando às estatísticas da ONU, os migrantes internacionais alcançaram a marca de 244 milhões em 2015, um aumento de 41% em relação a 2000. Os dados foram publicados na terça-feira, dia 12 de junho de 2018, pelo relatório do Departamentos de Assuntos Econômicos e sociais da ONU (DESA). Desnecessário acrescentar que dezenas de milhões são refugiados e que, entre estes últimos, a grande maioria reside nos países que confinam com aquele do qual se viram obrigados a escapar, como é o caso da etnia Rohingya em fuga de Myanmar para o vizinho Bangladesh (Cfr. site da ONU, 12/06/2018). Em termos mais concretos, “uma pessoa em cada três segundos vira um refugiado, tempo menor que o necessário para ler esta frase”. A afirmação e da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que alerta para o crescimento dos casos de conflitos, violência e perseguição. De acordo com a ONU, o número de refugiados, incluindo os “desplazados” pela violência interna, atinge o recorde de 65,6 milhões em 2016, segundo relatório Tendências Globais, divulgado na segunda-feira, dia 19 de junho de 2018. A crise humanitária é a mais grave desde a fundação da ONU, em 1945. (Cfr. Jornal brasileiro Correio Brasiliense, 19/06/2018).
Acrescente-se a isso isso os deslocamentos no interior de um mesmo país, em vastas áreas regionais ou entre países limítrofes. É o caso dos milhares e milhões de trabalhadores sazonais, os quais se deslocam em busca de trabalho temporário, retornando depois à própria família, num movimento pendular que pode repetir-se por diversos anos. Trata-se de um tipo de mão-de-obra que se adapta às intermitências e oscilações das safras agrícolas, mas também a determinados serviços ligados ao turismo, por exemplo. Além disso, uma das características das migrações contemporâneas as diferenciam profundamente das chamadas migrações históricas. As migrações dos séculos passados, com efeito, constituíam movimentos de pessoas com origem e destino mais ou menos pré-fixados. Os indivíduos ou famílias desenraizavam-se das terras de origem para, nos locais de chegada, criarem novas raízes. Os imigrantes tornavam-se “colonos” devidamente assentados. Hoje as migrações, embora sejam sempre um desenraizamento da terra natal, muitas vezes não possuem um destino certo, determinado, definitivo. Consistem, antes, em um vaivém permanente e sem horizonte, um contínuo deslocamento atrás das migalhas que caem da mesa do capital. Neste sentido, os migrantes não moram, acampam. Seres humanos peregrinos, como pássaros errantes que não conseguem encontrar um galho onde refazer o próprio ninho.
A segunda motivação está ligada à onda crescente e generalizada de uma política econômica em que predomina, por uma parte o nacionalismo populista e xenófobo, e por outra as expectativas de boa parte da população no sentido de governos fortes. Nos tempos de crise e de aparente caos, costumam emergir as tendências neofascistas ou neonazistas. Em diversas partes do globo, nos processos eleitorais mais recentes, saíram vitoriosos das urnas partidos e lideranças de caráter marcadamente conservador e autoritário. O avanço da ultra-direita tem sido notório em lugares tão distantes e díspares como os países escandinavos da Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia; a Inglaterra, a Itália, a Áustria, a Hungria e a Polônia; a Austrália, a Rússia, a Turquia, o México e as Filipinas... para não falar da eleição de Donald Trump à Casa Branca. Com razão difundem-se notícias e análises sobre uma progressiva guerra comercial, envolvendo particularmente os Estados Unidos, a China e a União Européia, mas cujos efeitos se estendem ao conjunto da economia mundial globalizada, geralmente em detrimento dos países periféricos.
A combinação desses dois fatores – migrações múltiplas, plurais e cada vez mais complexas, por um lado, e o avanço da política de ultra-direita, por outro – impõe desafios novos e urgentes para o XV Capítulo Geral dos Padres Scalabrinianos, bem como para todas as pessoas, entidades, movimentos, organizações não governamentais, Igrejas e outras Congregações e Institutos religiosos que trabalham no campo da mobilidade humana. Em outras palavras, ao mesmo tempo que cresce o número de migrantes, refugiados e prófugos em todas as direções possíveis e imagináveis, multiplicam-se na contramão as políticas anti-migratórias desses governantes que costumam instrumentalizar o medo da população em relação ao “outro, estrangeiro, diferente”. A receita de seus programas, desde a candidatura e as eleições, é bem conhecida, repetindo-se como um refrão ameaçador: expatriação dos imigrantes “clandestinos” ou “ilegais”, fechamento das fronteiras, diminuição do orçamento nacional para o apoio, a assistência e a inserção dos imigrantes. A “globalização da indiferença” toma o lugar da “cultura da acolhida, do diálogo, do encontro e da solidariedade” – como tem denunciado insistentemente o Papa Francisco. Em não poucos casos, quer durante a campanha eleitoral quer já no exercício do mandato, o fenômeno migratório figura como ponto relevante da pauta, chegando a ser-lhe o fiel da balança. Disso resulta uma politização mais ou menos agressiva diante do quadro das migrações, quase sempre sinônimo da criminalização dos migrantes e de quem está disposto a ajudá-los, individual ou coletivamente.
Que fazer em semelhante cenário? Pergunta decisiva para o XV Capítulo Geral da CS, para a Pastoral dos Migrantes e para qualquer tipo de ação no campo das migrações. Primeiramente, uma sociedade livre e democrática não pode abrir mão dos direitos humanos em geral, e do direito de ir-e-vir em particular – este último sendo correspondente ao direito de ficar, de permanecer como cidadão, com garantias de terra, trabalho e teto, na própria terra natal. A conquista e/ou defesa de tais direitos torna-se um imperativo evangélico sine qua non para a garantia da dignidade humana, como mostram os princípios a Doutrina Social da Igreja. Merecem particular empenho as pessoas e grupos mais vulneráveis, tais como o crescente número de menores não acompanhados, de mulheres e de vítimas do tráfico internacional, do crime organizado em termos de redes globais. Tampouco podemos esquecer o crescimento progressivo do que se poderia chamar “refugiados climáticos”, obrigados à fuga devido a catástrofes frequentes, numa situação climática cada vez mais instável e imprevisível devido ao aquecimento global.
Vem em seguida a acolhida e a inserção na sociedade de destino. Aqui estamos diante do DNA da Pastoral dos Migrantes: favorecer o sentimento de abertura da sociedade para com os estrangeiros que batem à porta. É uma tarefa que poderia assumir como programa os quatro verbos do Santo Padre (acolher, proteger, promover e integrar). Concentra-se em geral nos centros de orientação ou nas casas destinadas aos migrantes e refugiados, verdadeiro pronto-socorro diante das feridas e cicatrizes dos forasteiros. Não podemos esquecer, também, nos bairros, cidades e comunidades de fixação dos recém-chegados, a necessidade de resgatar a história pessoal e coletiva dos imigrantes, como também as expressões culturais dos diversos grupos e povos em movimento. Desde que semelhante resgate não se converta em obstáculo à inserção dos mesmos nos novos ambientes. Interessante manter os valores da própria tradição, sem dúvida, mas o contexto de chegada requer abertura a um novo aprendizado em vista de melhor adaptação. Importante, ainda, é a construção de uma ponte pastoral, de uma conexão em mão dupla e contínua, entre as regiões e países de origem e de destino, envolvendo todas as forças vivas e ativas dispostas à colaboração.
O desafio fundamental e mais urgente, entretanto, permanece o combate profético e vigoroso a todo tipo de migração forçada, compulsória, impositiva – o que significa empenhar-se contra as injustiças e assimetrias socioeconômicas que dividem e separam povos, regiões, nações e continentes. Igual atenção merece o enfrentamento da violência entre países e no interior de cada um destes, bem como as situações dramáticas de falta de trabalho, pobreza, miséria e fome. Tudo isso requer, evidentemente, uma leitura profunda e permanentemente atualizada do fenômeno migratório, unindo os esforços conjuntos, interdisciplinares e complementares de cientistas sociais, historiadores, centros de estudos e agentes socio-pastorais. Uma vez mais vale insistir que ao direito de ir-e-vir corresponde ao direito de ficar, mas não como cidadão de segunda categoria.
Entra em campo aqui The Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration (Pacto global pela organização e regulação das migrações, assinado por mais de 100 países na Assembleia da ONU). A ele, juntam-se as orientações debatidas e elaboradas pelas diversas edições do Fórum sobre Migração e Paz, destacando-se de forma especial a VI edição dessa iniciativa, realizada em Roma, no início de 2017, tendo como tema A Governabilidade Internacional da Migração, e com o lema “da reação à ação”, durante o qual os representantes puderam participar de uma audiência com o Santo Padre. Se é verdade que os imigrantes são vítimas de sistemas de expulsão, da violência e da pobreza, além da vulnerabilidade diante dos traficantes, também é certo que, pelo simples fato de migrar, se fazem sujeitos, profetas e protagonistas de mudanças estruturais. Ao percorrerem as estradas, põem em marcha as engrenagens da própria história. Sua visibilidade crescente diante dos Mass Media e da opinião pública questiona e interpela os diversos atores sociais.
De tudo isso, deriva uma série de pontos chaves para uma melhor ordenação das relações nacionais e internacionais, no sentido de regular de forma humanitária os movimentos de massa, respeitando os direitos básicos e a dignidade dos imigrantes. Na base, deve-se levar em conta uma maior abertura ao diálogo, flexibilidade nas fronteiras e leis migratórias mais inclusivas. Evidente que o impedimento puro e simples às vias legais de migração conduz a uma pressão progressiva sobre as fronteiras, além de favorecer a ação dos traficantes de seres humanos, seja através do recrutamento de pessoas desavisadas, seja através da exploração trabalhista e sexual das demais. Daí a necessidade de abrir “corredores humanitários” reais e eficazes, oferecendo oportunidades a tantos jovens cujo único sonho é encontrar trabalho e casa, pão e paz, um lugar ao sol. Numa palavra, um compromisso para a acolhida, a defesa, a proteção e a devida inserção dos que, fugindo da violência e da pobreza, buscam refazer a vida num solo a que possam chamar de pátria.
Porém, não basta agir sobre os efeitos, nos lugares de trânsito ou de chegada; é preciso enfrentar as causas desde os pontos de origem da migração. Não basta a acolhida e a assistência, por mais necessárias que elas sejam no atendimento imediato; é preciso conhecer e romper com as raízes que produzem esses milhões de excluídos ou “sobrantes”. Não basta soprar na fumaça com a intenção de apagar as chamas, é preciso extinguir o foco do incêndio. Não basta uma forma de ajuda, apoio e solidariedade individuais, por mais que sejam sempre bem vindas; é preciso um esforço nacional e internacional para que o registro de nascimento, e não apenas o passaporte, constitua uma garantia para uma cidadania universal. Não bastam ações isoladas e desconectadas entre si, por mais que elas sirvam a urgentes necessidades particulares , é preciso repensar a uma ação abrangente, conjunta e orgânica, numa rede de conexão que não conheça fronteiras. O grande desafio e a grande esperança consistem em agir localmente, mas apontando para um horizonte de visão holística e globalizada. Somente nesta prospectiva, o imigrante deixará de ser um “problema” ou “ameaça”, para tornar-se uma oportunidade de encontro, mútuo intercâmbio e enriquecimento. Com Scalabrini, conclui-se que as migrações fundem valores distintos, ampliando o patrimônio cultural da humanidade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Mobilidade humana: momento kairológico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU