Por: Patricia Fachin | 04 Setembro 2018
O fenômeno migratório na América Latina é explicado por motivos econômicos, climáticos e por violações generalizadas de direitos humanos, resume Camila Asano, coordenadora de Programas da ONG Conectas Direitos Humanos, à IHU On-Line. Segundo ela, o processo migratório na região tem sido mais intenso em países como o México, o Haiti e, mais recentemente, a Venezuela. “Nesse contexto, temos tanto os mexicanos que se arriscam na mão de coiotes para atravessar a fronteira com os Estados Unidos em rotas perigosas e precárias, até os haitianos que saíram do país após um grave terremoto que destruiu o país e deixou milhares de pessoas mortas. Mais recentemente, estamos acompanhando o fluxo de venezuelanos em direção à Colômbia, Peru e Brasil, que migram em busca de melhores condições de vida, dada a grave crise econômica, política e social que atinge o país de origem”, exemplifica.
Camila Asano tem acompanhado de perto o processo migratório de venezuelanos que chegam ao Brasil pelo estado de Roraima e informa que, até junho deste ano, 127.778 venezuelanos cruzaram a fronteira entre Venezuela e Brasil por Pacaraima, mas menos de 60 mil permanecem no país. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ela relata que “no início do fluxo migratório, a relação era amistosa e os venezuelanos eram bem recebidos pela comunidade local”, mas com a intensificação das migrações “o número de atendimentos na rede pública disparou e a situação de penúria dos refugiados fez com que aumentasse também a população em situação de rua tanto em Pacaraima quanto em Boa Vista”. Esse novo cenário na região, somado a “disputas políticas locais e discursos oficiais com cunho xenofóbico acabaram inflamando a população local contra os refugiados, levando a episódios lamentáveis de violência, como vimos em março e agosto deste ano”, pontua.
Na avaliação dela existem “soluções possíveis” para resolver o impasse e os conflitos entre venezuelanos e brasileiros. Uma alternativa, assinala, é a “adoção de um discurso oficial positivo em relação à migração”, e outra “é a ampliação do programa de interiorização: o Brasil tem mais de cinco mil municípios que poderiam se preparar para receber o contingente venezuelano que, na prática, hoje se concentra em apenas dois. Muito mais do que falta de recursos, a resolução para esta questão passa pela vontade política das autoridades, tanto em nível local e estadual, como federal”, menciona.
Camila Asano | Foto: Sound Cloud
Camila Asano é formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo – USP e mestra em Ciência Política pela mesma instituição. É coordenadora de Programas da Conectas Direitos Humanos. Também é secretária executiva do Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa. Ocupa um assento no Conselho da organização não governamental internacional Centre for Civil and Political Rights com sede em Genebra, na Suíça, e no Conselho de Orientação do Gacint do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP. É professora de Relações Internacionais na Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as características do fenômeno migratório na América Latina? Em quais países esse fenômeno é mais intenso e por quais razões?
Camila Asano - A migração na América Latina tem características diversas e complexas. Nesse contexto, temos tanto os mexicanos que se arriscam na mão de coiotes para atravessar a fronteira com os Estados Unidos em rotas perigosas e precárias, até os haitianos que saíram do país após um grave terremoto que destruiu o país e deixou milhares de pessoas mortas. Mais recentemente, estamos acompanhando o fluxo de venezuelanos em direção à Colômbia, Peru e Brasil, que migram em busca de melhores condições de vida, dada a grave crise econômica, política e social que atinge o país de origem. No caso dos venezuelanos, países como Peru, Estados Unidos e Colômbia estão recebendo grandes contingentes de migrantes – muito superiores aos cerca de 60 mil que estão no Brasil, de acordo com a Polícia Federal. Só esses três exemplos já são capazes de delinear a complexidade do fenômeno, pois mostram migrações por motivos econômicos, climáticos e por violações generalizadas de direitos humanos.
IHU On-Line - Pode nos dar um panorama geral sobre como os diferentes países da América Latina têm agido em relação ao fenômeno migratório? Quais são os países mais abertos e mais fechados a esse fenômeno?
Camila Asano - No caso da Colômbia, por exemplo, há vários problemas na forma como o país tem recebido os refugiados venezuelanos. Não há uma lei de migração ou de refúgio colombianas, então as medidas de regularização migratória carecem de segurança jurídica já que são decretos e atos normativos do governo. Desse mal o Brasil não padece, pois temos uma das mais avançadas legislações nesse campo, a Lei de Migração que entrou em vigor em 2017. O acesso a serviços de saúde também tem apresentado sérios obstáculos na Colômbia. No caso do Brasil, a Constituição determina o acesso universal aos serviços públicos de saúde. Diferente da Colômbia, as condições jurídicas estão dadas no Brasil, mas a prática ainda está muito aquém de uma acolhida verdadeiramente humanitária.
A maioria dos venezuelanos na Colômbia estão com autorização especial de permanência. Essa residência não se respalda em uma lei, mas em decretos do governo. As soluções paliativas da Colômbia se mostram rapidamente insuficientes, já que não dão conta do fluxo que segue chegando da Venezuela. O contingente de venezuelanos que estão ou já estiveram em situação migratória irregular é enorme. Estar irregular é inviabilizar em vários aspectos a integração. No Brasil, a Lei de Migração prevê formas de regularização migratória, tanto que é preciso reconhecer que estamos em situação muito melhor já que há vias disponíveis para a permanência regular. A Lei de Migração brasileira prevê autorização de residência por razões humanitárias. Curiosamente o Governo Temer não quis aplicar esse dispositivo legal e criou uma alternativa de cunho discricionário respaldada no interesse da política migratória nacional para regularizar a situação migratória dos venezuelanos. Isso sem falar dos mais de 35 mil pedidos de refúgio de venezuelanos no Brasil que nem sequer foram analisados pelo Comitê Nacional para Refugiados ligado ao Ministério da Justiça - Conare.
IHU On-Line - Quais são os principais conflitos gerados por causa do fenômeno migratório na América Latina?
Camila Asano - Os mais preocupantes são os ataques xenofóbicos e conflitos políticos internos que emperram o bom andamento de políticas públicas. No caso da xenofobia, o Brasil tem presenciado casos abomináveis recentemente, que geram uma tensão social que coloca em risco brasileiros e migrantes, sendo que esses últimos já se encontram numa situação bastante fragilizada. Em relação ao empurra-empurra do jogo político, isso atrasa o desenvolvimento de políticas que promovem a integração de migrantes à sociedade local, além de dificultar o acesso a serviços públicos, tanto pela escassez de serviços, como pelo despreparo em atender a uma população com tantas especificidades.
IHU On-Line - Quantos venezuelanos já vieram para o Brasil e quais são os destinos procurados por eles?
Camila Asano - Segundo a Polícia Federal, 127.778 cruzaram a fronteira entre Venezuela e Brasil por Pacaraima, no extremo norte de Roraima, até junho de 2018. Desses, menos de 60 mil permanecem no país, concentrados nas cidades de Pacaraima e Boa Vista. Recentemente, o governo brasileiro iniciou o processo de interiorização voluntária de refugiados venezuelanos, e cerca de 800 pessoas já foram transferidas para sete Estados brasileiros: São Paulo, Distrito Federal, Paraíba, Rio de Janeiro, Amazonas, Mato Grosso e Pernambuco. Este programa, no entanto, ainda é incipiente e deve ser fortalecido pelo governo federal, tanto para promover a integração dos refugiados à sociedade brasileira, como para ajudar na sobrecarga de serviços públicos em Roraima, que já está provocando tensões sociais com ataques violentos de brasileiros contra migrantes.
IHU On-Line - Como tem se dado a relação entre venezuelanos e brasileiros em Pacaraima, em Roraima?
Camila Asano - No início do fluxo migratório, a relação era amistosa e os venezuelanos eram bem recebidos pela comunidade local. Com o aumento do fluxo, o Brasil passou a receber milhares de pessoas em situação de completo desamparo, que vêm ao país em busca de acesso à saúde, alimentação e trabalho, por exemplo. Com isso, o número de atendimentos na rede pública disparou e a situação de penúria dos refugiados fez com que aumentasse também a população em situação de rua tanto em Pacaraima quanto em Boa Vista. De certa forma, é um cenário muito novo para boa parte da população de Roraima, que não estava acostumada a conviver com pessoas em situação de vulnerabilidade extrema. Com o tempo, disputas políticas locais e discursos oficiais com cunho xenofóbico acabaram inflamando a população local contra os refugiados, levando a episódios lamentáveis de violência, como vimos em março e agosto deste ano.
IHU On-Line - Hoje fala-se que Roraima vive uma crise por conta do contingente de imigrantes que chegaram ao estado, e tem se visto pela imprensa que a relação entre venezuelanos e brasileiros nem sempre tem sido amistosa, porque, de um lado, os imigrantes necessitam de ajuda e, de outro, o estado de Roraima alega que não tem recursos para atender a demanda. Como é possível resolver esse tipo de impasse?
Camila Asano - Há algumas soluções possíveis para esse impasse, que passam tanto pela adoção de um discurso oficial positivo em relação à migração, uma vez que ela promove a diversificação cultural e a integração à sociedade brasileira, quanto traz ganhos como a geração de renda e recolhimento de impostos que serão revertidos em serviços públicos. Outra possibilidade é a ampliação do programa de interiorização: o Brasil tem mais de cinco mil municípios que poderiam se preparar para receber o contingente venezuelano que, na prática, hoje se concentra em apenas dois. Muito mais do que falta de recursos, a resolução para esta questão passa pela vontade política das autoridades, tanto em nível local e estadual, como federal.
IHU On-Line - Como o Estado brasileiro tem atuado em relação aos imigrantes que chegam no país? Qual é a responsabilidade do Estado brasileiro em relação a eles?
Camila Asano - O governo federal implementou a “Operação Acolhida”, delegando às Forças Armadas — em especial, ao Exército — a missão de promover a acolhida humanitária dos refugiados venezuelanos. Para tanto, foram destinados R$ 190 milhões por meio de uma medida provisória, e esse dinheiro está empenhado majoritariamente para gastos com o abrigamento, criação de estruturas para o atendimento de migrantes (como postos de saúde provisórios e postos de fiscalização na fronteira), e também tem sido utilizado para a interiorização. A Conectas acredita que a militarização da acolhida é um erro, pois este trabalho deveria ser desenvolvido por uma força-tarefa interministerial, em parceria com o poder local e a sociedade civil organizada. O Exército acaba implementando uma lógica militar nos abrigos e na forma de acolher os refugiados que contraria o que a Lei de Migração pressupõe. O Estado tem a responsabilidade e o dever de olhar para esses migrantes enquanto sujeitos de direitos, capazes de gozar dos direitos civis e sociais de forma integral — à exceção do que a Lei de Migração prevê, como o direito ao voto.
IHU On-Line - Você tem dito que a questão humanitária em relação ao fenômeno migratório é a mais importante e que os venezuelanos precisam ser inseridos no Brasil. Quais são as possibilidades de inserção dos venezuelanos no país na atual conjuntura?
Camila Asano - Há várias formas de promover a integração de migrantes e refugiados à sociedade brasileira. Medidas como a isenção de taxas para a revalidação de diplomas promove a inserção no trabalho de forma igualitária, agregando ao mercado brasileiro novas competências, habilidades e visões de mundo — e isso sabidamente tem o poder de gerar renda e contribuir para o enriquecimento do país. Outra possibilidade é a participação de migrantes e refugiados na construção de políticas públicas, e nesse ponto, a cidade de São Paulo já faz isso por meio do Conselho Municipal de Imigrantes. À parte disso, migrantes e refugiados tendem a ser muito dispostos a trabalhar e contribuir positivamente para a comunidade que o acolheu. Essas são algumas das formas possíveis — e que já são aplicadas — mas certamente há outras inúmeras formas de promover a integração de maneira criativa e inovadora.
IHU On-Line - Quais são as instituições que estão à frente do tratamento da questão migratória na América Latina, seja com apoio financeiro ou de pessoal, para dar assistência aos imigrantes nos diferentes países?
Camila Asano - É possível citar uma série de agências da Organização das Nações Unidas - ONU que atuam dentro de suas atribuições, como Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados - Acnur, Organização Internacional de Migração - OIM, Organização Internacional do Trabalho - OIT, Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef, e também organizações da sociedade civil, como Caritas, Serviço Jesuíta para Migrações, Missão Paz, Anistia Internacional, Human Rights Watch, Centro de Justiça e Direito Internacional - Cejil e outros.
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Razões políticas, econômicas, climáticas e violação de direitos humanos explicam o fenômeno migratório na América Latina. Entrevista especial com Camila Asano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU