11 Março 2025
"A democracia é um estilo que habita as mentes e os corações dos seres humanos maduros; seu contrário, as mentes e os corações dos imaturos".
O artigo é de Vito Mancuso, publicado por “La Stampa” de 09-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "nesse presente complicado em que são exaltados os mais vis existem, portanto, três tarefas. A primeira é de tipo cognitivo e consiste em reconhecê-los; a segunda é operacional e consiste em se defender pessoal e comunitariamente; a terceira é introspectiva e consiste em descobrir o potencial Donald Trump ou Vladimir Putin dentro de nós e reeducá-lo".
Vito Mancuso é teólogo italiano, professor da Universidade de Pádua. É autor de Eu e Deus: um guia para perplexos (Paulinas, 2014).
Há momentos na história em que as antigas palavras do salmo parecem se tornar realidade: “Os ímpios andam por toda parte, enquanto os mais vis entre os homens são exaltados”. Os dias que estamos vivendo fazer emergir os piores entre os homens.
Qual é, então, a tarefa da consciência? É tripla: identificação, defesa externa e defesa interna.
Quanto ao primeiro ponto, é significativo que recentemente tenha ressuscitado um termo tão ultrapassado que parece quase um neologismo: “caquistocracia”, literalmente “o governo dos piores”, o exato contrário de aristocracia, o governo dos mais competentes. O paradoxo é que esses piores não são tiranos que chegaram ao poder pela força, mas políticos eleitos pelo povo: ou seja, é a demo-cracia que produz a caquisto-cracia. É como se, para fazer uma comparação com a alimentação, de repente a maioria declarasse que os melhores alimentos não são os mais refinados e saudáveis, mas os mais insalubres rotulados como junk-food.
No grande supermercado da política mundial, parece justamente que essa é a situação atual. Os mais vis entre os homens são exaltados. Mas como definir os mais vis? Às vezes, entre os seres humanos, entra em ação um acorde sutil de energias que dispensa as palavras faladas e alcança as zonas mais instintivas e profundas do ser: é uma questão de sentimento da vida.
Acredito que é isso que une Trump, Putin, Netanyahu, Orban, Erdogan e os outros líderes com suas carrancas ditatoriais: o prazer da força e, consequentemente, a intolerância pelo direito e pelo respeito que ele exige. O democrata é aquele que sente em seu íntimo que existe algo mais importante do que ele mesmo: o direito, o Estado, o bem comum. O antidemocrata é aquele que zomba de tudo isso porque não conhece nada mais importante do que ele mesmo. Portanto, em última análise, trata-se de uma questão de maturidade humana, daquela aquisição que vem com a superação da adolescência, quando o ego percebe que, por mais importante que seja, ele é sempre menos importante do que o Estado, o direito e o bem comum.
A democracia, portanto, é, em primeiro lugar, um estilo que habita as mentes e os corações dos seres humanos maduros; seu contrário, as mentes e os corações dos imaturos. Eis quem são os mais vis entre os homens. Eles nada mais são do que o espelho da imaturidade generalizada que assola o nosso planeta, um fenômeno bem descrito por Amós Oz quando falava da “infantilização das massas”. É assim que a demo-cracia, cada vez mais oclo-cracia (oclos em grego significa “multidão”, muito diferente de demos, “povo”), produz a caquisto-cracia. É assim que explico para mim mesmo os milhões de estadunidenses que votaram no atual presidente e que estão satisfeitos com ele, sabedores de seus problemas judiciais por motivos financeiros e sexuais, e estar na origem da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Eles sabem muito bem que ele mente, insulta, zomba do direito internacional, faz reivindicações sobre as terras alheias e, apesar disso tudo, o amam; mais ainda, o amam exatamente por isso! E não são poucos os italianos que fazem o mesmo, estabelecendo com Trump aquele acordo de sentimentos profundos que tiveram bem antes com os numerosos populistas de ego pronunciado e adolescente que tivemos aqui entre nós.
As piores qualidades humanas hoje são as que mais agradam e vencedoras. É um fato, é assim que as coisas funcionam no mundo de hoje, e não apenas na política. Diante dos mais vis entre os homens, o segundo passo consiste em defender-se. Nesse aspecto, existe uma defesa pessoal e uma defesa territorial. A defesa pessoal é chamada de estudo, meditação, silêncio, oração, aquelas práticas que nutrem a consciência moral e a protegem do ódio e da estupidez. A outra defesa é chamada de proteção militar e é tarefa dos governos garanti-la, é o primeiro dever de um Estado para com seus cidadãos. Antes da educação, da liberdade de expressão e de qualquer outra exigência, há a necessidade de segurança, e um Estado digno desse nome deve sempre estar à sua altura.
É necessário nos armarmos ainda mais para garantir a defesa de nós, europeus? É necessário enviar tropas para a Ucrânia? Como não sou nem político nem militar, não sei responder a essa pergunta e não pretendo ceder a paixões ao fazê-lo, mas é claro que preferiria que não.
No entanto, estou convencido de duas coisas: que, apesar de seus aspectos críticos, a UE é uma barreira contra a caquistocracia desenfreada do mundo; que existe uma ameaça à segurança europeia, pois o status democrático do mundo baseado no direito é cada vez mais desprezado.
Agora, até mesmo os EUA de Trump passaram a se sentar ao lado da Rússia de Putin; em 3 de fevereiro, na ONU, eles votaram com a Rússia, juntamente com a Bielorrússia, a Coreia do Norte e outros estados satélites contra a Ucrânia, a UE e o resto do mundo. Além disso, há a ditadura de Xi Jinping, o nacionalismo de Modi, a galáxia do mundo muçulmano que nunca esteve muito em consonância com a democracia, o Israel de Netanyahu e da direita religiosa caracterizada por flagrante racismo, crimes contra a humanidade e um desejo explícito de limpeza étnica (ou seja, de sujeira ética). Todos eles são unificados pelo fato de zombarem da ONU, do direito internacional e da Corte Internacional de Justiça que o representa, e desprezarem o ideal que faz do direito a pedra angular do governo mundial, a única verdadeira esperança para a paz do mundo.
Emergem os mais vis entre os homens e é preciso se defender contra eles. Como já disse, não tenho ideia se mais dinheiro deve ser gasto em armamentos, como Ursula von der Leyen afirma e como, agora já decidido, acontecerá; o que é importante para mim aqui é enfatizar o direito de todo cidadão de ser defendido e o dever correspondente dos políticos de prover a essa defesa. Falo de “defesa” e, para dar um exemplo, pergunto àqueles que, a priori, são contra qualquer gasto militar: o que é eticamente repreensível no fato de a Europa se equipar com um sistema antimísseis como o que permite que Israel proteja seus cidadãos dos foguetes iranianos ou de outros países? Na minha opinião, nada. Pelo contrário, à luz da situação atual, é a negação da necessidade de adequar as nossas capacidades de defesa que é eticamente repreensível, além de politicamente desastrosa.
O mundo é uma cidade. Ninguém argumenta que uma cidade deve prescindir das forças da ordem para proteger seus cidadãos dos bandidos. Por que, então, o mundo não precisaria daquelas específicas forças da ordem adequadas às suas proporções, que são os exércitos? A equação pacifista “exército = instituição imoral”, ou “armas = instrumentos imorais”, está errada. Está errada por uma razão muito simples: porque não leva em consideração o fato de que, às vezes, na história são exaltados os mais vis entre os homens. Enquanto existirem aqueles que desrespeitam o direito, a paz “também” é garantida pelas armas, bem como pela diplomacia, pela cultura, pela cooperação e pela educação. Precisamos de todos os instrumentos, nenhum excluído, para construir a belíssima, porém frágil, catedral da paz.
Por fim, resta a terceira tarefa, que apresento com esta frase de Hannah Arendt: “Hoje é raro encontrar pessoas que acreditam possuir a verdade; em vez disso, constantemente nos confrontamos com aqueles que têm certeza de que estão certos”. Os mais vis entre os homens são caracterizados por aquele fanatismo egocêntrico que consiste em desprezar a verdade e em querer ter sempre razão, seja como indivíduos ou como expoentes de uma ideologia. A diferença entre “verdade” e “ter razão” é clara: a verdade se refere a uma ordem objetiva que a mente deve reconhecer e respeitar (mesmo que não goste), enquanto ter razão se baseia na força (física ou cultural ou da vis polemica) que silencia e obriga a dizer: “Você está certo”.
O fundamento da democracia é o serviço da verdade sem querer ter razão a todo custo, é a dúvida e o diálogo que se segue. É claro que, quando se apresenta uma tese, se acredita estar certo, caso contrário, se ficaria em silêncio; mas aqueles que amam a verdade sabem como se distanciar de sua própria tese, estando abertos ao diálogo e encarando a realidade de frente, mesmo quando ela é incômoda. Quem não gostaria de investir mais em escolas e hospitais? Mas hoje é preciso se defender daqueles que desprezam a democracia, o estado de direito, os direitos humanos e as minorias, ou seja, os líderes mundiais citados acima e outros mais.
Lembro-me do que Anna Politkovskaya escreveu em 2004, dois anos antes de ser assassinada pelos comparsas de Putin: “A KGB só respeita os fortes, os fracos ela os devora”. E nós já deveríamos saber disso. Em vez disso, escolhemos o lado dos fracos e fomos devorados”. A tarefa de um Estado é evitar que seus cidadãos sejam devorados. Em relação ao uso de armas, a frase de Jesus sobre dar a outra face é citada com frequência, mas ignora-se que em outro momento ele ordenou que os discípulos se armassem: “Quem não tiver espada, venda sua capa e compre uma”. A arte da política consiste em entender quando um Estado é chamado a comprar uma espada, mesmo ao custo de sacrificar a capa.
Nesse presente complicado em que são exaltados os mais vis existem, portanto, três tarefas. A primeira é de tipo cognitivo e consiste em reconhecê-los; a segunda é operacional e consiste em se defender pessoal e comunitariamente; a terceira é introspectiva e consiste em descobrir o potencial Donald Trump ou Vladimir Putin dentro de nós e reeducá-lo.
(PS: a citação inicial é tirada do Salmo 12,8).