12 Março 2025
No livro A Civilização do Desejo: em história filosófica do desejado, Manuel C. Ortiz de Landázuri explora a direção que a centelha incandescente chamada “desejo” tomou na estrutura capitalista, despojada pelo sistema de sua complexidade para investi-la de uma fome consumista, pervertendo-a. O desejo, apesar de sua complexidade, é uma das faíscas determinantes não apenas para cada pessoa, mas para a comunidade. Assim, desde os pré-socráticos até Freud, passando por Nietzsche ou Habermas, houve inúmeros pensadores que tentaram desvendar seu mecanismo hermético.
A entrevista é de Esther Peñas, publicada por Ctxt, 08-03-2025.
Manuel Cruz Ortiz de Landázuri (Pamplona, 1986) é professor de Historia de Filosofia Antiga, Ética y Filosofia da Natureza na Universidad de Navarra.
Em primeiro lugar, como podemos distinguir o desejo, essa força que nos liga à vida, tão complexa e poderosa, de seu substituto, o apetite, tão desenfreado nestes tempos de estrutura de mercado feroz?
O desejo é uma forma de desejo, um fenômeno com muitas ramificações e camadas. Os apetites são direcionados ao imediato, à satisfação instantânea (comida, bebida, sexo, entretenimento, etc.), mas existem outras formas de desejo que buscam outros tipos de gratificação (pense, por exemplo, quando ficamos animados com um projeto, a perspectiva de um plano com amigos, etc.). Os mercados buscam o consumo e, portanto, estimulam o apetite imediato, mas os desejos profundos têm a ver com a busca pela não solidão, pela descoberta de sentido na vida, pela contemplação da beleza.
Qual é o pior inimigo, o maior obstáculo ao desejo: puritanismo, distrações, o “inútil”, desde que não tenha lucro para o capital?
Pela lógica do capital, os desejos contemplativos são ineficientes, pois aspiram a coisas inúteis que muitas vezes não envolvem consumo (pense em literatura, arte, música). É muito melhor que os indivíduos se concentrem nos desejos imediatos, pois isso significa entrar na lógica do consumo. Porém, o indivíduo que entra nessa lógica acaba terrivelmente saturado e frustrado. Nossos desejos mais profundos exigem que cultivemos disposições voltadas para a comunidade e a beleza; quando adotamos esse estilo de vida, não somos mais escravos de apetites imediatos.
Resta alguma coisa daquela sociedade que Marcuse imaginou, combinando teorias marxistas e freudianas, livre do elemento repressivo?
Na verdade, vivemos em uma sociedade marcusiana não repressiva, mas a livre satisfação dos desejos, estimulada pela lógica do capital, não conseguiu desenvolver vidas satisfeitas. Em vez disso, agora enfrentamos a repressão causada pela superabundância de estímulos e, assim, nos tornamos escravos de desejos supérfluos e das necessidades do mercado. O problema é que em outras décadas talvez tivéssemos ajustado nossas vidas a moldes externos e achado isso repressivo. A solução que se propôs desde maio de 1968 foi quebrar os moldes e satisfazer desejos ilimitados, mas em nenhum momento se assumiu que talvez o problema fosse que os limites fossem externos. Dessa forma, conseguiu-se reprimir a ausência de limites, o que gera grande insatisfação. O significado só pode ser encontrado nas coisas na medida em que algum tipo de ordem é introduzido no que é inerentemente imensurável, e isso envolve autoconhecimento e a descoberta da ordem interna.
Como o “caráter esquizoide” do indivíduo no mundo capitalista, nas palavras de Deleuze e Guattari, afeta o desejo?
Acredito que Deleuze e Guattari criaram uma imagem muito gráfica para representar o problema do indivíduo contemporâneo: é justamente a falta de reflexão que impede a obtenção de coerência na vida. Os desejos então aparecem como forças que empurram em diferentes direções, em contextos mutáveis, e nos tornamos esquizoides, sem uma história coesa, pois perdemos de vista o autêntico "querer", os anseios profundos do coração, que curiosamente não são tão mutáveis.
O território simbólico do desejo mudou – e se sim, como – ao longo da história?
Os desejos estão ligados à nossa interpretação do mundo, e cada cultura oferece uma orientação interpretativa por meio de vários símbolos. É um processo em constante mudança. Pensemos, por exemplo, nas formas de namoro de antigamente (a importância das cartas, dos olhares, etc.) e como ele se desenvolve hoje (emoticons, fotos, etc.). Antes, o simbolismo estava mais ligado aos sentimentos, e agora, em uma cultura de imediatismo, as emoções estão mais em jogo. Talvez tenhamos perdido capacidade simbólica nesse sentido. Sem dúvida, a sociedade contemporânea também se baseia num simbolismo e numa mitificação dos prazeres. Em grande medida, uma boa estratégia de marketing busca isso, a identificação de um indivíduo com um símbolo, uma marca que representa algo.
O que nosso desejo nos diz sobre nossa identidade?
Se desejamos algo é porque nos identificamos de alguma forma com o objeto do desejo. Então meus desejos revelam parte de quem eu sou, tanto em nível biológico (somos animais com tendências à nutrição, ao sono, ao sexo), quanto psicológico (queremos viver em sociedade, aspiramos ter um papel no mundo) e espiritual (desejamos o amor dos outros, a contemplação da beleza e a busca pelo sentido da vida). Agora, a identidade psicológica tem a ver com nossa história inconsciente, com memórias acumuladas e interpretadas, e essas experiências também moldam nossos desejos.
Livro "A Civilização do Desejo: em história filosófica do desejado", de Manuel María Cruz Ortíz de Lándazuri (Editora Siglo XXI, 2025).
Como a arte de amar resolve a dialética entre desejo e privação?
O desejo sempre parte de uma carência, de um elemento negativo, de algo que não temos, e quando satisfazemos um desejo temos um alívio que logo será substituído por uma nova carência. Essa dialética só pode ser resolvida com um estilo de vida, que Erich Fromm chama de “arte de amar”, no qual não nos concentramos em satisfazer desejos narcisistas, mas sim em desenvolver hábitos de abertura aos outros, e então temos quase certeza de sempre encontrar pessoas com quem compartilhar. No amor, ganho o outro sem perder o meu próprio ser, por isso num amor autêntico (baseado em compromissos) a dialética do desejo pode ser resolvida até certo ponto.
Somos soberanos do nosso desejo ou seus súditos?
Acredito que podemos integrar o desejo na medida em que percebemos por que desejamos o que desejamos. Se, como eu disse, há uma carência por trás do desejo, normalmente o desejo responde a uma lógica que podemos entender, para então satisfazê-lo da melhor maneira possível (o que muitas vezes não equivale a uma satisfação imediata). Podemos ser soberanos sobre o desejo, mas isso obviamente requer algum treinamento, reflexão e tempo.
O desejo é um vigário da beleza ou da verdade?
Eu diria ambos, porque ambas as coisas andam de mãos dadas. O problema é que a beleza é uma experiência que nos arrebata e não sabemos explicar o porquê. Quando percebemos a beleza, algo nos parece verdade, mas não temos clareza sobre o que é. Normalmente, associamos a verdade a discursos lógicos, mas creio que chegamos à verdade sobretudo na intuição de valores que nos são apresentados através de certas sensações profundas. A questão é que então você tem que colocar isso em palavras e é aí que a lógica aparece. Eu diria que o desejo atinge seu objetivo quando é harmonioso, e isso implica algo de beleza e verdade.
O desejo coletivo, que você chama de “pedra angular da civilização”, responde aos mesmos mecanismos que os desejos pessoais?
O desejo coletivo tem a ver com a forma como uma civilização estruturou e canalizou os desejos, e é por isso que ele é moldado por estereótipos, por mercados, pela hegemonia cultural no sentido gramsciano... Por essa mesma razão, eles nem sempre coincidem com os desejos pessoais e, claro, muitas vezes não respondem a deficiências subjacentes.
Como o desejo se relaciona com os instintos?
Costuma-se dizer que os instintos são mecanismos impulsivos nos quais não há espaço para espontaneidade ou liberdade. Os seres humanos, mais do que instintos, têm tendências, que são desejos que estão em aberto, embora marquem um fim que queremos alcançar (comida, bebida, sucesso, etc.).
Em sua opinião, para permanecer apaixonado é preciso “canalizar o desejo”. Até que ponto é possível domar o desejo, canalizá-lo?
Apaixonar-se tem a ver com ficar maravilhado com a beleza; é algo que nos abala fortemente nos momentos iniciais. Permanecer apaixonado é alcançar uma disposição amorosa que pode não ser tão forte, mas é mais estável. Isso só pode ser alcançado passando de um desejo baseado em emoções e sentimentos puros para um desejo apoiado por afeições profundas, que são constituídas por meio de ações. É algo que vivenciamos muitas vezes na vida: fazemos um favor a alguém e nos afeiçoamos a essa pessoa. À medida que repetimos atos, criamos relacionamentos que deixam uma profunda afeição dentro de nós. A partir dessas afeições é possível ordenar os diferentes desejos.
O amor pode fazer qualquer coisa?
O amor nos permite fazer coisas incríveis. Eu não diria que ele pode fazer tudo, mas ele pode fazer quase tudo. Mas esse tipo de amor não é a simples experiência da paixão química, e sim um amor baseado em afeição profunda, que exige relações de identidade forjadas por meio de ações. Quando Agostinho de Hipona disse: “ama e faze o que quiseres”, ele tinha algo assim em mente: quando meu amor for autêntico, profundo, buscarei o bem do amado com todas as minhas forças, e serei capaz de fazer coisas que eu pensava serem impossíveis.