19 Dezembro 2024
“A interferência dos Estados Unidos, a mando do regime de Netanyahu, deixou o Oriente Médio em ruínas, com mais de um milhão de mortos e guerras abertas desencadeadas na Líbia, no Sudão, na Somália, no Líbano, na Síria e na Palestina, e com o Irã à beira de um arsenal nuclear sendo empurrado contra as suas próprias inclinações para esta eventualidade”. A reflexão é de Jeffrey D. Sachs, em artigo publicado originalmente por Common Dreams, e reproduzido por La Haine, 17-12-2024. A tradução é do Cepat.
Jeffrey D. Sachs é professor da Universidade de Columbia, é diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia e presidente da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Nas famosas palavras de Tácito, historiador romano: “Saquear, massacrar, usurpar, a estas coisas dão o falso nome de império; e onde criam um deserto, chamam isso de paz”.
Em nossa época, são Israel e os EUA que criam um deserto e o chamam de paz.
A história é simples. Em flagrante violação do direito internacional, o primeiro-ministro do regime israelense, Benjamin Netanyahu, e os seus ministros reivindicam o direito de governar mais de 7 milhões de árabes palestinos.
Quando a ocupação israelense de terras palestinas gera uma resistência militante, Israel qualifica essa resistência de “terrorismo” e pede aos EUA que derrubem os governos do Oriente Médio que apoiam os “terroristas”. Os EUA, sob a influência do lobby israelense, vão à guerra em nome de Israel.
A queda da Síria esta semana é a culminância da campanha israelense e estadunidense contra a Síria, que remonta a 1996, com a chegada de Netanyahu ao cargo de primeiro-ministro. A guerra israelo-estadunidense contra a Síria intensificou-se em 2011 e 2012, quando Obama encomendou secretamente à CIA a derrubada do governo sírio na Operação Timber Sycamore.
Esse esforço finalmente deu frutos esta semana, depois de mais de 300 mil mortes na guerra síria desde 2011.
A queda da Síria aconteceu rapidamente devido a mais de uma década de sanções econômicas esmagadoras, ao peso da guerra, ao roubo do petróleo da Síria por parte dos EUA, às prioridades da Rússia relativamente ao conflito na Ucrânia e, de forma mais imediata, aos ataques de Israel contra o Hezbollah, que foi o principal apoio militar do governo sírio.
Sem dúvida, Assad nem sempre jogou bem as suas próprias cartas e enfrentou um certo descontentamento interno, mas o seu governo foi alvo de colapso ao longo de décadas por parte dos Estados Unidos e Israel.
Antes da campanha EUA-Israel para derrubar Assad ter começado seriamente em 2011, a Síria era um país de renda média que funcionava e crescia, apoiado pelo seu povo devido à extensa rede de segurança social. Em janeiro de 2009, o Conselho Executivo do FMI afirmou o seguinte: “Os diretores executivos elogiaram o bom desempenho macroeconômico da Síria nos últimos anos, manifestado no rápido crescimento do PIB não petrolífero, no nível confortável das reservas cambiais e na dívida pública baixa e em declínio. Estes resultados refletem tanto a robusta demanda regional como os esforços de reforma das autoridades para mudar para uma economia mais voltada para o mercado”.
Desde 2011, a guerra perpétua de Israel e dos EUA contra a Síria, que inclui bombardeios, terrorismo jihadista, sanções econômicas, tomada de campos petrolíferos sírios pelos EUA, etc., mergulhou o povo sírio na miséria.
Nos dois dias imediatamente posteriores à queda do governo, Israel realizou cerca de 480 ataques em toda a Síria e destruiu completamente a frota síria em Latakia.
Perseguindo a sua agenda expansionista, o regime de Netanyahu reivindicou ilegalmente o controle sobre a zona desmilitarizada nas Colinas de Golã e declarou que as mesmas farão parte do Estado de Israel “para sempre”.
A ambição dos EUA e de Netanyahu de transformar a região através da guerra, que remonta a quase três décadas, está se desenrolando diante de nossos olhos.
Numa coletiva de imprensa, que aconteceu no dia 9 de dezembro, o primeiro-ministro israelense, com o seu habitual excesso de otimismo, vangloriou-se de uma “vitória absoluta”, justificando o genocídio em curso em Gaza e a escalada de violência em toda a região: “Peço-lhes que pensem, se tivéssemos aderido àqueles que nos disseram repetidas vezes: ‘Temos de parar a guerra’, não teríamos entrado em Rafah, não teríamos tomado o Corredor da Filadélfia, não teríamos eliminado Sinwar, não teríamos surpreendido os nossos inimigos no Líbano e em todo o mundo numa operação-estratagema ousada, não teríamos eliminado Nasrallah, não teríamos destruído a rede subterrânea do Hezbollah e não teríamos exposto a fraqueza do Irã. As operações que realizamos desde o início da guerra estão desmantelando o eixo, tijolo por tijolo”.
A longa história da campanha de Israel para derrubar o governo sírio não é muito conhecida, mas a documentação é clara. A guerra de Israel contra a Síria começou com os neoconservadores estadunidenses e israelenses em 1996, que conceberam uma estratégia de Clean Break (Ruptura Limpa) para o Oriente Médio e para Netanyahu quando este chegou ao poder.
O núcleo da estratégia da “ruptura limpa” exigia que Israel (e os EUA) rejeitassem a ideia de “terra pela paz”, de acordo com a qual Israel se retiraria das terras palestinas ocupadas em troca da paz.
Em vez disso, Israel manteria as terras palestinas ocupadas, governaria o povo palestino num Estado de apartheid, limparia etnicamente o Estado passo a passo e imporia a chamada “paz pela paz”, derrubando os governos vizinhos que resistissem às reivindicações territoriais de Israel.
A estratégia Clean Break afirma: “A nossa reivindicação sobre a terra – à qual nos apegamos com esperança ao longo de 2.000 anos – é legítima e nobre”. E continua: “A Síria desafia Israel em solo libanês. Uma abordagem eficaz, e com a qual os EUA podem simpatizar, seria que Israel tomasse a iniciativa estratégica ao longo das suas fronteiras setentrionais, confrontando o Hezbollah, a Síria e o Irã, como os principais agentes da agressão no Líbano...”.
No seu livro Fighting Terrorism, de 1996, Netanyahu expôs a nova estratégia. Israel não lutaria contra os terroristas; lutaria contra os Estados que apoiam terroristas. Mais precisamente, levaria os EUA a lutar por Israel. Como ele explicou em 2001: “A primeira e mais importante coisa a entender é esta: não há terrorismo internacional sem o apoio de Estados soberanos... Retire todo este apoio estatal e todo o andaime do terrorismo internacional desmoronará”.
A estratégia de Netanyahu foi integrada na política externa estadunidense. Acabar com a Síria sempre foi uma parte fundamental do plano. Isto foi confirmado pelo general Wesley Clark após o 11 de Setembro. Durante uma visita ao Pentágono, foi-lhe dito: “Vamos atacar e destruir os governos de sete países em cinco anos – vamos começar pelo Iraque e depois passar para a Síria, o Líbano, a Líbia, a Somália, o Sudão e o Irã”.
O Iraque seria o primeiro, depois seria a vez da Síria e dos outros. (A campanha de Netanyahu pela guerra do Iraque é explicada em detalhes no novo livro de Dennis Fritz, Deadly Betrayal: The Truth about Why the United States Invaded Iraq. O papel do lobby israelense é explicado detalhadamente no novo livro de Ilan Pappé, Lobbying for Zionism on Both Sides of the Atlantic)
A insurreição que atingiu as tropas estadunidenses no Iraque atrasou o calendário em cinco anos, mas não alterou a estratégia básica.
Até agora, os EUA lideraram ou patrocinaram guerras contra o Iraque (invasão em 2003), o Líbano (os EUA financiam e armam Israel), a Líbia (bombardeio da OTAN em 2011), a Síria (operação da CIA durante a década de 2010), o Sudão (apoiando os rebeldes para separar o Sudão em 2011) e a Somália (apoiando a invasão da Etiópia em 2006).
Uma possível guerra dos EUA contra o Irã, ardentemente procurada por Israel, ainda está pendente. Por algum motivo ainda vai acontecer.
Por mais estranho que possa parecer, a CIA apoiou repetidamente os jihadistas islâmicos para combaterem estas guerras, e os jihadistas acabam de derrubar o regime sírio. A CIA organizou, depois de tudo, a criação da Al-Qaeda em primeiro lugar, treinando, armando e financiando os mujahidins no Afeganistão desde o final da década de 1970.
É verdade que Osama bin Laden voltou-se mais tarde contra os EUA, mas o seu movimento foi, de qualquer forma, uma criação estadunidense. Ironicamente, como confirma Seymour Hersh, foram os serviços de inteligência de Assad que “alertaram os EUA sobre um iminente ataque da Al Qaeda contra o quartel-general da Quinta Frota da Marinha dos EUA”.
A Operação Timber Sycamore foi um programa secreto da CIA de um bilhão de dólares lançado por Obama para derrubar Bashar al-Assad. A CIA financiou, treinou e forneceu inteligência a gangues extremistas islâmicas.
O esforço da CIA também envolveu uma “linha de ratos” para levar armas da Líbia (atacada pela OTAN em 2011) aos jihadistas na Síria. Em 2014, Seymour Hersh descreveu a operação em sua obra The Red Line and the Rat Line: “Um anexo altamente confidencial do relatório, que não foi divulgado, descrevia um acordo secreto alcançado no início de 2012 entre as administrações Obama e Erdogan. Tratava-se da linha de ratos. Nos termos do acordo, o financiamento veio da Turquia, bem como da Arábia Saudita e do Catar; a CIA, com o apoio do MI6, foi responsável pela entrega de armas dos arsenais de Gaddafi para a Síria”.
Logo após o lançamento da Operação Timber Sycamore em março de 2013, numa coletiva de imprensa conjunta Obama-Netanyahu na Casa Branca, Obama disse: “No que diz respeito à Síria, os Estados Unidos continuam trabalhando com aliados e amigos e com a oposição síria para acelerar o fim do governo de Assad”.
Para a mentalidade sionista estadunidense-israelense, um apelo à negociação por parte de um adversário é considerado um sinal de fraqueza do adversário. Aqueles que pedem negociações ao outro lado geralmente acabam mortos – assassinados por Israel ou por soldados estadunidenses.
Vimos isso recentemente no Líbano. O ministro das Relações Exteriores libanês confirmou que Hassan Nasrallah, ex-secretário-geral do Hezbollah, tinha concordado com um cessar-fogo com Israel alguns dias antes de ser assassinado.
A vontade do Hezbollah de aceitar um acordo de paz, de acordo com os desejos do mundo árabe-islâmico de uma solução de dois Estados, é antiga. Da mesma forma, em vez de negociar o fim da guerra em Gaza, Israel assassinou o chefe político do Hamas, Ismail Haniyeh, em Teerã.
Da mesma forma, na Síria, em vez de permitir o surgimento de uma solução política, os EUA se opuseram ao processo de paz em diversas ocasiões.
Em 2012, a ONU negociou um acordo de paz na Síria que foi bloqueado pelos estadunidenses, que exigiram que Assad partisse no dia seguinte ao acordo de paz. Os EUA queriam uma mudança de regime, não a paz.
Em setembro, Netanyahu dirigiu-se à Assembleia Geral com um mapa do Oriente Médio dividido entre “Bênção” e “Maldição”, com o Líbano, a Síria, o Iraque e o Irã como parte da maldição de Netanyahu.
A verdadeira maldição é o caminho de caos e guerra de Israel, que agora engolfou o Líbano e a Síria, com a esperança fervorosa de Netanyahu de também arrastar os EUA para a guerra contra o Irã.
Os EUA e Israel comemoram o fato de terem conseguido afundar outro adversário de Israel e defensor da causa palestina, e Netanyahu recebe “os créditos por ter iniciado o processo histórico”.
Muito provavelmente, a Síria sucumbirá agora a uma guerra permanente entre numerosos protagonistas armados, como aconteceu em anteriores operações de mudança de regime entre os EUA e Israel.
Em suma, a interferência estadunidense, a mando do regime de Netanyahu, deixou o Oriente Médio em ruínas, com mais de um milhão de mortos e guerras abertas desencadeadas na Líbia, no Sudão, na Somália, no Líbano, na Síria e na Palestina, e com o Irã à beira de um arsenal nuclear sendo empurrado contra as suas próprias inclinações para esta eventualidade.
Tudo isto a serviço de uma causa profundamente injusta: negar aos palestinos os seus direitos políticos a serviço do extremismo sionista baseado no Livro de Josué do século VII a.C.
Surpreendentemente, de acordo com esse texto – no qual se baseiam os próprios fanáticos religiosos de Israel –, os israelenses nem eram os habitantes originais da terra. Em vez disso, de acordo com o texto, Deus ordena que Josué e seus guerreiros cometam múltiplos genocídios para conquistar a terra.
Neste contexto, as nações árabes islâmicas e, na verdade, quase todo o mundo, uniram-se repetidamente no apelo a uma solução de dois Estados e à paz entre Israel e a Palestina.
Em vez da solução de dois Estados, Israel e os EUA criaram um deserto e chamaram isso de paz.