O chamado para desmasculinizar a Igreja. Por que a hierarquia tem medo de professoras negras nas faculdades de teologia? Artigo de Gabriel Vilardi

Mulheres com o Papa no Sínodo da Amazônia | Foto: Repam

06 Abril 2024

Após décadas de perseguições a teólogos e teólogas que ousaram questionar, hoje se tem uma Igreja ainda amordaçada e acovardada. Se parte da hierarquia eclesiástica vive um cisma branco com o papado de Francisco, ignorando solenemente suas reformas e provocações, outra parte considerável do laicato se encontra confortavelmente anestesiada. Poucas manifestações públicas que contrariem posições oficiais. Até quando as mulheres estarão sozinhas?

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.           

No fim de novembro passado, o Papa Francisco, ao encontrar com os membros da Comissão Teológica Internacional, instou, sem meias-palavras, a desmasculinizar a Igreja a partir da teologia. Constatou que há somente cinco mulheres entre os 28 membros do seleto grupo, ou seja, menos de 18%. Um índice que, apesar de escandalosamente baixo, ainda é mais alto do que a ausência total de mulheres entre a hierarquia eclesiástica, formada em sua totalidade por homens. “Elas estão sozinhas”, pontuou o pontífice. Estão mesmo?

Como seria importante que, pelo menos nesse ponto, o papa estivesse equivocado. Mas, perturbadoramente, trata-se da mais pura e chocante realidade. Ao longo de séculos e negando a essência de um cristianismo libertador, as mulheres foram sendo aprisionadas em rígidos esquemas patriarcais e cada vez mais silenciadas. Sustentadas por arraigadas concepções misóginas, essas visões teológicas e eclesiais prevaleceram e empurraram mais da metade dos batizados para a obscura marginalidade, principalmente no que se refere aos espaços decisórios da Igreja.

No início da era Francisco com os desejos de reforma latentes as expectativas para esse ponto eram enormes. Mas foram sendo frustradas no transcorrer dos 11 anos de pontificado. É verdade que o número de mulheres em altas posições da Cúria Romana aumentou consideravelmente, chegando em funções nunca antes ocupadas. Todavia as leis canônicas restam intocadas e a velha desigualdade de gênero se perpetua nos dicastérios e basílicas do Vaticano.

Infelizmente, não é necessário ir a Roma para perceber como o poder na Igreja é um monopólio masculino. Essa nefasta realidade se espraia dos altos escalões diocesanos até as bases de qualquer paróquia. E apesar de serem maioria nas comunidades eclesiais, as cristãs são tratadas como fiéis de segunda classe. Mesmo sendo as responsáveis pela transmissão da fé por meio da catequese e da realização dos cultos pelas equipes litúrgicas, a palavra final é sempre do homem-padre. E se precisarem recorrer contra algum tipo abusivo ou autoritário a decisão será do homem-bispo. Na melhor das hipóteses, se conseguirem vencer as barreiras, poderão chegar aos homens-cardeais. Serão, contudo, ouvidas?

Esse não-lugar das mulheres na Igreja não está circunscrito ao exercício da autoridade. Essa exclusão se estende ainda ao ensino. Afinal, pelo controle do conhecimento também se exerce o poder. Historicamente proibidas ou limitadas de estudarem e se formarem, o acesso à docência universitária constitui quase sempre uma ínfima exceção. Quantas professoras são as responsáveis pelas disciplinas do núcleo duro dos cursos de Teologia? Numérica e comparativamente são pouquíssimas!

Os currículos de teologia no Brasil, mesmo nas faculdades mais abertas, ainda que se encontrem pequenos espaços de resistência, são fortemente eurocêntricos e ensinados desde uma perspectiva dos homens. Estes ocupam as coordenações dos cursos, as direções das faculdades e dos departamentos e a grande maioria das cátedras. Os verdadeiros donos do poder.

Invariavelmente não há lugar para as teologias dissidentes, sejam elas feministas, indígenas, negras ou queers. Quanta riqueza de um pensamento crítico que ajude a ler a realidade desses tempos se perde, nesse quadro de uniformidade e restrita diversidade? Talvez para os reitores dos seminários e os bispos formadores ousar pensar diferente seja ameaçador demais:

“A teologia monocultural e eurocêntrica legitimou a construção e a manutenção do estado de Maaf, isto é, o holocausto negro, alimentando o imaginário sociocultural de negação da imago Dei de uma porção considerável da humanidade. Sob este holocausto negro, que sequestra o corpo e a mente do negro, a população afrodiaspórica luta por recuperar e reconstruir a existência, gestando práticas, espaços e condições outras de re-existência e humanização; provocando ao longo da história de dominação autênticas fissuras na ordem hegemônica do sistema/mundo moderno/colonial”[1].

Mas como uma luz em meio a uma Igreja acuada, o Papa Francisco alerta: “se não entendermos o que é uma mulher, o que é a teologia de uma mulher, nunca entenderemos o que é a Igreja”. “Um dos grandes pecados que cometemos foi 'masculinizar' a Igreja”, aprofundou o sábio pontífice. Certamente ficaria indignado ao tomar conhecimento do que se passou na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

Outrora bastião da resistência aos terríveis anos da ditadura civil-militar, a universidade protagonizou um triste episódio, ainda a ser explicado, que contraria os apelos do atual Sucessor de Pedro. É a mesma PUC-SP, instituição que teve como autoridade máxima Dom Paulo Evaristo Arns, o Cardeal da Esperança, símbolo da luta contra o autoritarismo.

O franciscano marcou a história ao nomear a primeira mulher reitora de uma universidade católica em todo o mundo, a Profª Nadir Kfouri (1976-1984). Corajosa, quando a universidade foi invadida pelo truculento coronel Erasmo Dias em 1977, a professora se negou a cumprimentar o algoz de seus estudantes dizendo-lhe: “não dou a mão a assassinos”. Não mediu esforços, colocando-se em risco, para defender os direitos dos alunos presos pelo arbítrio dos quartéis.

Com o edital nº 20/2023 a Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção deu início ao processo seletivo para a contratação de um docente. A vaga foi destinada a um candidato ou candidata negro(a) e preferencialmente do sexo feminino. Assim, a comissão responsável classificou nas três primeiras posições as professoras Marina Aparecida Oliveira dos Santos Correa, Cleusa Caldeira e Célia Maria Ribeiro. Sucede que surpreendente e inexplicavelmente o Grão-chanceler da PUC exerceu a sua faculdade de nomear o quarto colocado, um padre.

Aqui não se discute a legitimidade jurídico-canônica do Cardeal de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, em proceder à escolha da forma com que se deu. Nem mesmo a competência do candidato aprovado. Todavia, o que se impõe com muita estranheza foi a exclusão das três primeiras colocadas, reconhecidas como aptas para o exercício da função pela comissão de professores da própria casa.

Não está claro quais foram os reais motivos que levaram o arcebispo a tomar a referida decisão, desconsiderando disposição do edital que recomendava a contratação de uma professora, bem como a existência de mais de uma candidata que se encaixava no perfil traçado pela instituição. Não seria a oportunidade ideal para seguir o exemplo e as exortações do Papa Francisco para desmasculinizar a Igreja, abrindo espaço para uma das mulheres classificadas? Se havia uma preferência expressa por candidatas do sexo feminino e o presbítero selecionado ficou atrás das três teólogas no processo seletivo, por que foi escolhido pelo cardeal?

Muitas perguntas permanecem sem respostas e precisam ser enfrentadas por quem de direito. O tempo de uma Igreja fechada em si mesma está com os dias contados. Há real e efetivo espaço para as mulheres na Igreja? Qual é esse lugar, o da subalternidade humilhada e silenciada? Até quando essas mulheres diariamente ultrajadas e relegadas à tutela masculina irão tolerar tamanho escândalo? Abandonarão a Igreja como muitas o vem fazendo na Europa, desiludidas e cansadas de promessas vazias? O que será do Povo de Deus sem a plena participação feminina?

Após décadas de perseguições a teólogos e teólogas que ousaram questionar, hoje se tem uma Igreja ainda amordaçada e acovardada. Se parte da hierarquia eclesiástica vive um cisma branco com o papado de Francisco, ignorando solenemente suas reformas e provocações, outra parte considerável do laicato se encontra confortavelmente anestesiada. Poucas manifestações públicas que contrariem posições oficiais. Até quando as mulheres estarão sozinhas?

Diante da alarmante situação de injustiça para com as três colegas, quais foram as reações das associações de teólogos e teólogas Brasil afora? O ensurdecedor e subserviente silêncio temeroso de retaliações! Onde estão as vozes lúcidas e proféticas do laicato, da vida religiosa consagrada, dos intelectuais cristãos? Essa tarefa de desmasculinizar a Igreja não é somente do Papa, mas de cada um dos batizados e batizadas. Se os profetas e as profetisas foram calados, que falem as pedras. Que a Divina Ruah possa agitar as águas de uma nova Igreja, onde as mulheres tenham voz, vez e lugar!

Notas

[1] CALDEIRA, Cleusa. Teoquilombismo: entre Teologia Política e Teologia da Inculturação. In: 50 anos de Teologias da Libertação: memória, revisão, perspectivas e desafios. São Paulo: Recriar, 2022. p. 81.

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