13 Março 2024
"Com as duras palavras da profecia, o papa quebrou um tabu: aquele da subserviência conformista à retórica bélica".
O comentário é de Mario Giro, cientista político italiano, em artigo publicado por Domani, 11-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
As palavras do Papa Francisco provocaram inúmeras reações. Não foi diferente com a nota de Bento XV que em 1917 fez um apelo pela cessação das hostilidades e definiu a grande guerra como um “massacre inútil”.
Mesmo na época as reações foram negativas e os jornais franceses definiram-no como "le pape boche" (o papa alemão) ou “Pilatos XV”. Mas os papas não tomam partido nem apelam à rendição de uma parte em relação a outra: pedem sempre e apenas a cessação das hostilidades e que se volte a conversar.
O gesto de coragem que Francisco pede aos ucranianos é que comecem a falar enquanto há tempo, sem pôr condições. Isso tem um custo, especialmente para os ucranianos, mas a paz vale mais.
Para o Papa, paz não rima com vitória: a guerra é inútil e a paz não depende apenas do adversário, mesmo que ele seja o agressor. Ao longo do século XX cresceu no papado de Roma a adversidade teológica e pastoral pela guerra, a ponto de declarar que não existe “guerra justa”.
Ficar escandalizado pelas palavras de Francisco significa não conhecer a história da visão do papado romano sobre a guerra: todo conflito é sempre considerado uma guerra civil e, portanto, uma situação impossível para a igreja.
O Papa pede a coragem de negociar e isso soa escandaloso, contracorrente em relação à mentalidade dominante inteiramente baseada na guerra total visando uma vitória ilusória. Em uma corrida tão feroz que sangra o povo, a diferença entre agressor e agredido desaparece por trás da cortina de fumaça da retórica guerreira.
A Rússia, que é a principal responsável pelo conflito, está arrastando o Ocidente para um redemoinho infinito de ressentimento e ódio. Quem fala pelos mortos, pelas vítimas civis, por quem irá morrer logo?
Domenico Quirico se pergunta isso ao afirmar que “já era hora de alguém tomasse a palavra pelos mortos, os que já foram levados e os que virão”. Não se trata de uma utopia pacifista: o Papa sente o risco real que se aproxima do ponto de ruptura da defesa ucraniana. Melhor negociar enquanto ainda há tempo.
Isso significa rendição? Não: significa cálculo prudente e lúcido antes de perder tudo. Qual líder ocidental admitiu os seus erros quando aconselhou os ucranianos a não negociar? É hipócrita dizer agora que eles têm que decidir...
Ou qual dirigente reconheceu o fracasso enquanto previa uma vitória rápida? Talvez tenha chegado a hora de dizer a verdade e sair do equívoco: a vitória não é a única solução para alcançar a paz, existem possibilidades intermediárias. O perigo está todo do lado dos ucranianos que estão sangrando até à morte, sem que se vislumbre um fim para esse massacre.
A Rússia dispõe de tempo e recursos (humanos e materiais) em abundância: reconverteu a sua economia e se adaptou. Então alguém também precisa falar pelos russos: não por Putin ou pelos seus oligarcas, mas pelo povo russo, cujos filhos vão morrer sem explicação.
O Papa também fala pelos russos sem direito de palavra, submetidos ao jugo da retórica patriótica e do autoritarismo. Fala por aquelas mães corajosas e aquelas mulheres russas que vão depositar uma flor no túmulo de Navalny arriscando a prisão.
O Papa Francisco tem se esgoelado há dois anos contra essa guerra absurda para proteger a Ucrânia. Agora usa palavras ainda mais fortes para despertar as nossas consciências. Alguns suspeitam que ele seja antiocidental ou antiamericano.
Trata-se de uma leitura superficial e errada, mas há um aspecto a ter presente: o Papa não confia nos poderosos que incitam a guerra e depois abandonam aqueles que lutam à sua sorte. É a história do Afeganistão, mas também de muitos outros países.
Nós, ocidentais, conhecemos bem isso: quem pediu desculpas pelas mentiras da guerra no Iraque? Ou pelo que aconteceu em Cabul? Nem sequer conseguimos resolver a questão da Bósnia e do Kosovo, sem falar da Armênia cristã, abandonada porque ninguém se atreve a dizer nada em Baku.
Isso significa que o Papa prefere o regime da Rússia de Putin? Certamente não, mas àquele regime não se pode pedir nenhuma verdade enquanto se pode pedir às democracias. A conclusão seria de que todas as culpas seriam dos ocidentais? Na verdade, não, mas é característica das democracias questionar-se e falar sem fingimentos. O Papa abala a consciência do Ocidente.
Como escreve Andrea Riccardi: “o discurso da bandeira branca quebrou um pouco a linguagem desgastada e conformista dos últimos tempos”. O Papa teme que os ucranianos sejam, mais cedo ou mais tarde, abandonados e sabemos até que ponto chega o egoísmo ocidental.
Houve demasiadas desilusões para acreditar na retórica da vitória rápida e da guerra justa.
Com as duras palavras da profecia, o papa quebrou um tabu: aquele da subserviência conformista à retórica bélica.
É a sua maneira de resistir à origem pagã do homem que ressurge das profundezas da história e exige sacrifícios humanos. Basta ouvir as testemunhas das nossas guerras passadas para recordar isso: é a consciência do “nunca mais!”. Que ninguém se surpreenda então se o Papa se opuser: melhor a bandeira branca do que aquela embebida pelo sangue dos inocentes.
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O Papa Francisco quebrou um tabu: paz não rima com vitória. Artigo de Mario Giro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU