12 Dezembro 2023
Quando os crimes de Israel forem julgados – e isso não tardará – o que alegarão os oficiais que ordenam o disparo de mísseis, e aqueles que fingem não ver a execução premeditada de um plano de extermínio? Dirão que apenas cumpriam ordens?
O artigo é de Rosemberg Cariry, cineasta, roteirista, documentarista, produtor, poeta e escritor, publicado por Outras Palavras, 11-12-2023.
A filósofa judia Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém, aborda com profundidade o conceito de “banalidade do mal”. Essa ideia tornou-se essencial para compreender as dinâmicas do poder, assim como as questões éticas, morais e de consciência individual e coletiva na política moderna. Acompanhando o julgamento de Eichmann, Arendt observou que esse destacado criminoso nazista, negando ter qualquer preconceito contra os judeus e rejeitando a responsabilidade pelos crimes cometidos no Holocausto, justificava suas ações alegando que apenas “cumpria ordens” e se orgulhava de sua eficiência como bom funcionário. Arendt viu diante de si um homem comum que, no dia a dia, poderia ser confundido com qualquer outro, aparentemente incapaz de matar uma mosca, mas capaz de, “cumprindo ordens”, matar milhares ou mesmo milhões de pessoas, dando vazão à sua pulsão de morte.
O livro de Hannah Arendt gerou desconforto significativo entre aqueles que esperavam a apresentação de um monstro ao público, mas encontraram apenas um homem aparentemente normal e medíocre. Este foi responsabilizado, condenado e enforcado, pagando pelos crimes hediondos que, nos campos de concentração, vitimaram milhões de judeus, ciganos, comunistas, socialistas, partisans, homossexuais, lésbicas, democratas, objetores de consciência, religiosos e doentes mentais, entre outros. É comum, nos julgamentos de criminosos de guerra, que eles aleguem estar “cumprindo ordens” ou que nada sabiam do que estava acontecendo.
Passados mais de 70 anos dos terríveis acontecimentos inscritos no projeto imperialista e genocida de Hitler, na II Grande Guerra Mundial, os judeus, em todo o mundo, também não sabem o que está acontecendo hoje nos territórios palestinos ocupados por Israel? Não sabem dos muros da vergonha? Dos guetos? Das prisões arbitrárias? Das torturas de crianças? Do apartheid? Da limpeza étnica e do colonialismo mais perverso? Não sabem dos crimes de guerra? Do desrespeito às convenções internacionais? Da violação dos direitos humanos? Não sabem que as forças armadas israelitas, uma das mais poderosas do mundo, bombardeiam civis, sobretudo mulheres e crianças, que vivem em campos de refugiados e guetos cercados de muros, antes negando-lhes as condições de sobrevivência e espezinhando-lhes a dignidade?
Se interrogados, a maioria dos jovens soldados do exército de Israel dirá que apenas “cumpre ordens”, enquanto prende, derruba casas, bate, tortura e mata, nos territórios palestinos ocupados? Ocasionalmente morrem, uma média de um israelita para cada dezesseis palestinos mortos, por enquanto. Essa desproporcionalidade vai subir ainda mais. A Lei de Talião, do antigo código babilônico de Hamurabi, que exigia olho por olho e dente por dente, foi atualizada com alguma inflação. Ou será que os fundamentalistas israelitas seguem os conselhos do Antigo Testamento, no Deuteronômio 20? Ali, algum escriba pode não ter escutado bem o que Javé disse e, interessado em tomar posse das terras e dos bens dos seus vizinhos, escreveu:
“Quando te achegares a alguma cidade para combatê-la, apregoar-lhe-ás a paz. E será que, se te responder em paz, e te abrir as portas, todo o povo que se achar nela te será tributário e te servirá. Porém, se ela não fizer paz contigo, mas antes te fizer guerra, então a sitiarás. E o Senhor teu Deus a dará na tua mão; e todo o homem que houver nela passarás ao fio da espada. Porém, as mulheres, e as crianças, e os animais; e tudo o que houver na cidade, todo o seu despojo, tomarás para ti; e comerás o despojo dos teus inimigos, que te deu o Senhor teu Deus. Assim farás a todas as cidades que estiverem mui longe de ti, que não forem das cidades destas nações. Porém, das cidades destas nações, que o Senhor teu Deus te dá em herança, nenhuma coisa que tem fôlego deixarás com vida. Antes destruí-las-ás totalmente: aos heteus, e aos amorreus, e aos cananeus, e aos perizeus, e aos heveus, e aos jebuseus, como te ordenou o Senhor teu Deus” (Deuteronômio 20: 10-17).
Hoje, mais do que religioso, o interesse é geopolítico e econômico. Descumprindo alguns versículos do Antigo Testamento, os fundamentalistas da extrema-direita de Israel destroem tudo com bombas e balas, e não poupam nem mesmo mulheres e crianças que Javé, “misericordioso”, recomendou que fossem poupadas e levadas como escravas. Também não poupam as árvores, os cães, os gatos e as aves nos territórios que almejam para si, os quais foram “prometidos” por Javé. Dizem as grandes corporações que, abaixo dessa terra, repousam reservas de gás natural e petróleo, que são os recursos de maior interesse.
Não tardará, os perpetradores do genocídio palestino serão julgados. O que dirão? Que nada sabiam? Cumpriam ordens do Antigo Testamento? Dos Militares? Dos EUA? Justificarão dizendo que estão se vingando? De quê? Do Holocausto cometido pelos nazistas alemães? Do atentado do Hamas, do qual já estavam informados e deixaram acontecer, para algo justificar? Então, por que tomam as terras dos palestinos, destroem as suas casas e, sobre as ruínas, erguem assentamentos ilegais? Por que os colonos israelitas extremistas, nos territórios ocupados, caçam palestinos como animais? Por que as forças armadas de Israel bombardeiam as mulheres grávidas, as crianças e os bebês prematuros? Por que sacrificam o povo palestino de forma tão brutal e indiscriminada, cercando-o com muros, negando-lhe, água, energia, pão, remédios e mesmo qualquer assistência humanitária? Estes não são os métodos nazifascistas amplificados? Quando um dia forem julgados, em tribunais de guerra, farão alguma referência às ações de um Estado terrorista, vingativo e sádico, mil vezes mais mortal e destruidor, que não poupa milhares e milhares de civis inocentes, bombardeando escolas, centros culturais, sedes de imprensa, hospitais e campos de refugiados? E os bons cidadãos, nacionalistas, cumpridores dos seus deveres cívicos e religiosos, que apoiam esse crime contra a humanidade? Dirão que são bons pais, que cuidam bem da esposa, dos filhos e dos cães; que pagam seus impostos em dia? O que mais podem dizer? Que nada sabiam? Sim, sabem o que está acontecendo e o que estão apoiando.
A cada crime cometido contra a população palestina atestam ser os cavaleiros da morte e do horror do Estado colonialista contemporâneo. Se agem de forma tão cega, dizendo ser nacionalista, de determinada etnia, credo religioso, ideologia ou alegando incertas origens, para justificar esses crimes contra a humanidade, pergunta-se: onde está a liberdade, a consciência e o livre-arbítrio? E, se grande parte da população de Israel apoia esse massacre, pergunta-se: que escudo moral ainda vai lhe restar, diante da indignação do mundo? Ainda podemos falar de humanismo, de moral e de ética, quando o mal é banalizado dessa forma? Será que não sabem tais pessoas que o governo de Israel, a serviço dos EUA e da União Europeia (em sua agonia servil de fim de império), é uma força cega e sanguinária da extrema-direita mais odiosa? Por que muitos partidos de extrema-direita do Ocidente (até há pouco conhecidos pelo antissemitismo), juntamente com os neoliberais, os falcões da guerra e os fanáticos conservadores neopentecostais, estão apoiando Israel? Quem poderia fazer mais mal ao povo judeu, espalhado pelo mundo, do que o próprio governo de extrema-direita de Israel, ao cometer tantas atrocidades e injustiças contra o povo palestino em nome do povo judeu? O povo judeu não é uma imensa diversidade de etnias, ideologias, práticas e interpretações do judaísmo, bem como variadas visões de mundo?
Conscientes, são muitos os judeus que dizem não a essas manipulações e atrocidades. Muitos judeus, em todo o mundo, objetores de consciência, que levantam as suas vozes, denunciam o genocídio palestino e protestam, dizendo: “Não em nosso nome!”. Nessas pessoas, bate mais forte a consciência e não se deixam vencer pelas ameaças, pelo medo, nem se deixam manipular pela propaganda sionista extremista e antipalestina; não se deixam sufocar por um Estado racista que promove o genocídio de um povo, e, depois de lhe roubar a terra e a dignidade, quer roubar-lhe o futuro e procura desesperadamente meios para justificar o injustificável: a continuidade do propósito colonialista mais brutal. A história cobrará o seu preço. Vai querer saber: que interesses econômicos e geopolíticos movem essa necropolítica? Que países apoiam esses crimes hediondos, com armas, dinheiro e manipulação de consciência através da grande imprensa? Quem está perpetrando esse genocídio, com tão extremada crueldade, alegando que está “cumprindo ordens”? Quem, mesmo sabendo desse crime contra a humanidade, cala-se? É tempo de também perguntar: onde está a maioria dos países árabes ricos? Aliaram-se aos algozes do povo palestino, em nome dos seus interesses econômicos?
Em tempos tão obscuros, em que o genocídio é transmitido ao vivo, estando acessível pela televisão e redes sociais em escala mundial, como um espetáculo macabro que foi normalizado e tem a sua narrativa manipulada pela grande imprensa, é preciso levantar a voz, denunciar e combater o horror. Acusar os métodos nazifascistas dos extremistas de direita, denunciar os títeres dos senhores da guerra e dos fabricantes de armas, que lucram com o sangue palestino derramado. É preciso protestar e estancar o genocídio, pois, ao mesmo tempo, impediremos que, em todos nós, morra a humanidade que nos resta.
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A banalidade do mal em Gaza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU