13 Junho 2020
Gastón Soublette acaba de publicar um novo livro, “Manifiesto. Peligros y oportunidades de la megacrisis” (Editora UC), destacando que a explosão social e a pandemia de coronavírus são parte de uma grande crise mundial do sistema de vida atual. Para o filósofo, musicólogo, esteta e escritor de 93 anos, o modelo que chega a seu fim é o capitalismo do progresso ilimitado, que nasce na Grã-Bretanha e cujo impulso material foi a Revolução Industrial, para se estender depois para o resto do mundo, com a bomba nuclear como uma de suas criações. No entanto, a alternativa não é o marxismo, mas uma cultura alternativa: uma na qual o homem recupere seu lugar como parte da natureza.
A reportagem é de Marco Fajardo e Tatiana Oliveros, publicada por El Mostrador, 12-06-2020. A tradução é do Cepat.
“Manifiesto” é um texto breve, que contém o essencial do pensamento de Soublette, escrito de maneira simples, e onde examina as origens do “mito do progresso”, um elemento fundamental para entender a atual crise vivida pela humanidade. Em seu entendimento, este mito deita suas raízes em 1534, na Inglaterra, com a separação da Igreja anglicana da católica, sob Henrique VIII.
“Essa liberdade que a reforma anglicana conferiu à Inglaterra, permitiu a esta arrazoar sobre o destino da nação em termos muito distintos da França e Itália, no sentido utilitário da palavra”, sendo um dos intelectuais o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626). Este destacou que o homem deveria usar seu intelecto para o desenvolvimento das artes e o comércio, e foi um dos pioneiros do pensamento científico moderno. “Assim, nasceu um pensamento utilitário e o imperativo de gerar riqueza, um imperativo divino. Por isso, a Inglaterra esteve na liderança da civilização industrial”, disse Soublette.
Isto se somou à filosofia do reformador protestante francês João Calvino (1509-1564), “que sustentou que a riqueza material era um sinal de sabor divino, e que a pobreza significa que Deus te reprova, e a Grã-Bretanha tornou isto algo seu”.
Junto a Bacon e Calvino, seria acrescentado o economista escocês Adam Smith (1723-1790), que nas palavras de Soublette introduziu o conceito de que a sociedade não era composta por famílias e comunidades, mas por indivíduos, e que “a atitude apta para gerar riqueza é aquela autorreferencial e egoísta, e que assim é que se gera a riqueza”.
Este modelo, que para Soublette se baseia no egoísmo, estendeu-se por toda a Europa, com uma filosofia da riqueza com sabor divino que o filósofo chileno classifica como “perversa” e inclusive avessa ao Novo Testamento, que, ao contrário, aconselha “uma vida não miserável, mas simples, e um desapego aos bens materiais”.
A materialização do “mito do progresso” está nas grandes potências: Inglaterra, mas também Rússia, Estados Unidos, China, França e Alemanha. Este modelo “dominou a mente de todo o mundo, enlouqueceu a humanidade, e criou formas de vida absolutamente desumanas”. E exemplifica com a Revolução Francesa, que ocorreu para libertar o povo dos privilégios da nobreza, mas conduziu a uma exploração “muito pior que sob a monarquia”.
No que Soublette classifica como um sistema “desumano”, enxerga que não há espaço para as pessoas. “O que interessa à civilização industrial é que as culturas antigas desapareçam”, esquecendo práticas anteriores diversas e divergentes, porque isso facilita a transformação das pessoas em trabalhadores e consumidores passivos. “Se você é a peça de uma máquina, sua pessoa não interessa. O poder econômico diz isso, indiretamente. Se você é uma pessoa de caráter nervoso, afetivo ou intelectual, não interessa. Só interessa que funcione na sociedade do rendimento, a pessoa não conta para nada”, destaca.
Um exemplo paradigmático para Soublette foi a construção da barragem no Alto Biobío [Chile], entre 1998 e 2004, pela Endesa, uma filial da espanhola Endesa, que inundou um território ancestral mapuche. Diante dos protestos dos afetados, a empresa ofereceu outros terrenos, “como se fosse possível meter em um caminhão uma comunidade que viveu milhares de anos em um lugar e transferir para outro”. Também se ofertou aos mapuches “postos de trabalho” na construção da represa, para destruir “a própria cultura”. “Isso revela como essa visão do mundo, utilitária, nascida na Inglaterra, envenenou a mente do mundo inteiro”, sentencia.
No entanto, Soublette está convencido que este sistema, esta concepção de mundo, está em crise, essa em que “a finalidade da história humana é chegar ao bem-estar” através da tecnologia e o crescimento econômico.
Considera que um mundo construído sobre essa base precisa cair, porque desconhece o mais sagrado que o ser humano tem, desconhece o sistema de relações do ecossistema planetário, de como a vida no planeta se organiza, com os vegetais, os animais, os elementos, o ar, a água, a terra, os mares, o regime de chuva. “Por desconhecer isso, chama a natureza de “recursos naturais”, são “recursos” dos quais se pode tirar o que desejar, são “recursos” de energia e de matéria-prima”, disse.
“Para o empresário de hoje não importa a relação total que existe entre os elementos e os seres vivos, entre os vegetais e os animais, entre o ser humano e a natureza. Isso não o interessa. Interessa tirar proveito de tudo, porque por trás disso está a ideia do progresso, que é o mesmo que o crescimento. É isso o que está por trás”.
Um mundo assim tinha que entrar em crise porque, em suas palavras, destrói o mais sagrado que a natureza humana possui. “O ser humano não nasceu para isso, então, por destruir, está serrando o chão para si mesmo”.
Nesse sentido, para Soublette, a explosão social de 18 de outubro [no Chile] é apenas um sintoma a mais da grande crise, assim como a própria pandemia de coronavírus. “A explosão social que vimos no Chile, a partir de outubro do ano passado, na realidade, é uma explosão em nível mundial. As pessoas aceitaram o mito do progresso até certo ponto, até perceberem que o bem-estar que ofereceram a elas nunca veio, porque vivem em um mal-estar crônico, urgidas pelo tempo útil, abusadas pelo poder econômico, enganadas pelo poder político, então, exploraram todos, perceberam que o mito do progresso era uma mentira”.
Soublette reflete que as coisas foram aperfeiçoadas, as máquinas, e que ao final é o ser humano que está servindo a máquina que esperava que o servisse. “Esse mundo tinha que acabar. Então, o que estamos vivendo? Estamos vivendo as fases finais da civilização industrial que criou estas formas de vida absolutamente desumanas”, destaca.
A própria pandemia, assim como a explosão social, também faz parte deste sistema que está morrendo, no sentido de que é uma manifestação material de um dano que existe em nível espiritual na humanidade.
“A psicologia moderna descobriu coisas que os indígenas sempre souberam: que os conteúdos profundos da consciência, inclusive os que são inconscientes, se projetam na realidade, se projetam no acontecer objetivo, muitas vezes, inclusive, sem que seja o ser humano que proponha, inclusive sem que o ser humano saiba interpretar o que está lhe acontecendo e isso por uma lei da analogia: o que você tem no interior e que está muito ao fundo de sua consciência, por analogia, acontece na realidade”, disse.
Quando o ser humano se despoja de seu sentido e de seu sentido transcendente, isso também se projeta na realidade, explica Soublette, seja em forma de doenças, de calamidades, de desastres, sendo um dos exemplos a mudança climática, que “também é uma projeção do que temos no interior”.
“Então, esta pandemia é algo disso, pois o grande psicólogo Carl Gustav Jung disse que a humanidade moderna era psicologicamente psicopata, que estava profundamente doente. A humanidade moderna está profundamente doente, enganada pelo mito do progresso, pelo mito do crescimento ilimitado. Foi o que disse em seu último livro”, destaca, fazendo menção ao “O livro vermelho” do célebre suíço, nascido em 1875 e morto em 1961, e que foi recentemente publicado em 2009.
“Todo mundo sabe que uma pessoa que tem uma atitude muito negativa na vida, de alguma maneira, sofre desgraças. Por analogia, o que tem no interior, ocorre a ela fora dele também”.
Soublette também menciona a interpretação de que se trata de uma vingança da natureza pela contaminação exercida pelo ser humano. E apresenta o exemplo do Japão, uma das potências mais poderosas e que mais maltratou a fauna marinha, e que sofreu vários tsunamis.
Outro exemplo é o que acontece na Amazônia. “As árvores na Amazônia chegam até a própria água dos rios e agora não, a mata está retrocedendo e começam a surgir grandes áreas arenosas e pedregosas. Esta mata que quis salvar a nossa vida, percebeu que queríamos nos suicidar. Então, é como se dissesse: ‘suicidem-se, eu me retiro’”.
Soma-se a isto a presidência de Jair Bolsonaro, um político que não tem “a menor ideia de nada, não sabe o que é o ser humano, não sabe o que é a natureza”. “Entrega o que resta dessa mata para a exploração comercial. Há acusações em Haia contra ele, porque essa mata não a pertence, pertence ao mundo. E por que Bolsonaro faz isso? Porque carece completamente de sabedoria”.
Mais uma vez, Soublette cita Jung, que chamava isto de “instintos tanáticos”, instintos que levam o ser humano à morte. “Mas não percebe o que está fazendo, indo à morte, a morte dele e de todo o povo. É isso que estão buscando. Esses são os limites da civilização industrial. Chegou a um grau de periculosidade que, se avança, irá acabar com tudo”.
Qual é a alternativa diante deste sistema em crise? Para Soublette não é o marxismo, que para ele, em seu livro, é a outra face da mesma moeda. Acredita no que denomina “cultura alternativa”.
Em seu livro, cita que no ano de 1983, em Toronto, Canadá, foi realizado um Congresso Plenário da Cultura Alternativa sob o nome de “Iniciativa planetária para o mundo que escolhemos”. Nele, surgiu uma coalizão baseada em três princípios: o primeiro, sobre a transformação pessoal ou conversão, sob o lema de “autorrealização”; o segundo, referente ao desenvolvimento das aptidões para viver em comunidade; e o terceiro, contribuir para a unidade do mundo, mediante uma educação para a paz e a solidariedade. Também sintetizaram três conceitos: “Não lucrar, não ter metas precisas e não fazer publicidade”.
Soublette também menciona como ponto chave o meio ambiente, e acredita que de fato o ser humano deve se adaptar à natureza, não o contrário. “Até agora, o que o ser humano fez? Impôs à natureza o desenho utilitário do homem, sem se importar em como irá reagir, e reagiu péssimo”. Considera a mudança climática uma das consequências deste “desenho utilitário”. “Durante muito tempo, acreditaram que estavam agindo muito bem, agora, percebem que estavam destruindo tudo”, reflete.
“O que deveríamos ter feito, e isto é o que propõe a cultura alternativa, se ainda há tempo de nos salvar, é observar, estudar bem qual é o plano mestre da natureza para poder nos adaptar a esse plano que tem milhões de anos. A natureza tem um plano mestre, que não é o nosso planejamento industrial, não se aproxima disso, porque o que fizemos até agora foi destruir a natureza até um nível que muitos suspeitam que é irreversível, façamos o que for, pois já passamos do limite. Bom, eu não acredito nisso, acredito que há mais variáveis”.
O filósofo acredita que ainda é tempo do ser humano perceber que deve estudar e deve considerar o plano mestre da natureza para adaptar a isso sua conduta, “e para isso é necessário voltar ao que os nossos antepassados chamavam de sabedoria”.
“O ser humano negou a si o sentido e a transcendência com esta visão utilitária do mundo, em que a geração de riqueza é um mandato divino e é um sinal de favor divino, e o crescimento, portanto, é o grande imperativo, até formar as grandes potências. Isso nega o sentido da vida e o sentido de transcendência”, analisa.
“Antes, ainda que houvesse um Napoleão ou um Luis XIV, todos tinham, ainda que fosse inconscientemente, a noção de que há um sentido que vai além do mundo material e que há uma transcendência, mesmo os mais perversos acreditavam nisso. Contudo, a civilização industrial, de Bacon em diante, começou lentamente a minar essa noção de que há um sentido e que esse sentido é transcendente. Fizeram isso com o ser humano. Então, o ser humano é só uma grande peça da grande máquina industrial que eles criaram”.
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“Estamos vivendo as fases finais da civilização industrial”, afirma Gastón Soublette - Instituto Humanitas Unisinos - IHU