05 Junho 2020
“Mais que distopia, diante de nós está o próprio desenvolvimento do capitalismo. Em algumas notas preparatórias para seu trabalho Sobre o conceito de História, Walter Benjamin escreveu: “Marx disse que as revoluções são as locomotivas da história. Mas talvez as coisas sejam diferentes. Talvez as revoluções sejam a forma como a humanidade, que viaja nesse trem, aciona o freio de emergência”. O capitalismo é essa locomotiva descontrolada que, sem obstáculos e nem freio, leva tudo, inclusive a própria humanidade”, escreve José G. Giavedoni, cientista político, professor de Teoria Política na Universidade Nacional de Rosário, Argentina, em artigo publicado por Página/12, 03-06-2020. A tradução é do Cepat.
A Luis Espinoza, Alex Campo e George Floyd, In memoriam
Em 1920, Paul Klee pinta em Munique sua obra Angelus Novus, uma pintura que mescla a técnica da tinta chinesa, com o óleo e a aquarela. No ano seguinte, Walter Benjamin a adquire em Munique e deixa a obra aos cuidados de seu amigo Gershom Scholem, com o pedido expresso que a enviasse, assim que ele conseguisse se instalar em Berlim. A história do quadro é narrada pelo próprio Scholem. Ele a envia por correio, em fins de novembro de 1921, mas com a ascensão de Hitler ao poder, Benjamin se vê obrigado a abandonar Berlim e a levar a pintura para Paris. Com os nazistas entrando na capital francesa, mais uma vez, precisa fugir.
O curioso é que antes de fazer isso Benjamin prepara duas malas onde guarda trabalhos, apontamentos, anotações, entre outras coisas, deixando as mesmas aos cuidados de Georges Bataille, que as esconde na Biblioteca Nacional. Benjamin teve o trabalho de desmontar a pintura do quadro e guardá-la em uma dessas malas. Como sabemos, Benjamin morre em 1940, na cidade espanhola de Portbou, fugindo do nazismo. Aquelas duas malas serão entregues a Adorno, nos Estados Unidos, e mais tarde a pintura chegará a Frankfurt.
É também Scholem quem realiza uma minuciosa reconstrução dos sentidos que a pintura gerou em Benjamin e as diferentes interpretações que ela lhe sugere, até a sua última versão sedimentada na tese IX de Sobre o conceito de História. Nesta, o anjo da história se choca ao voltar e observar que o passado não é outra coisa a não ser um acúmulo de catástrofes e ruínas sobre ruínas, mas também ao observar que nós não conseguimos ver essas ruínas, mas, sim, acontecimentos, não reconhecemos a catástrofe, apenas a assumimos como rotineira e natural.
É a partir deste passado, destas ruínas que sopra uma tempestade que arrasta o Anjo para o futuro, uma tempestade que leva todos nós para frente, “este furacão é o que nós chamamos de progresso”, dirá, finalmente, Benjamin. Este nos alerta sobre a sedução que acompanha a ideia de progresso, não só pelo que virá, pelas ruínas futuras, mas pelos escombros de nosso presente.
As distopias sempre estiveram na ordem do dia e há muito tempo. Aldous Huxley as imaginou em “Admirável mundo novo”, George Orwel, em “1984”, Ray Bradbury, em seu “Fahrenheit 451”. O tango “Cambalache” projeta um mundo que será a mesma porcaria do que foi. A plataforma global Netflix é farta em propostas distópicas com “The 100”, “The Rain” e, além disso, a que seria talvez a melhor expressão de tudo isso, “Black Mirror”.
O cinema se nutriu destas imagens de desesperança com “Matrix”, “V de Vingança”, “Blade Runner” e também “O Exterminador do Futuro”, entre tantos outros. Sem dúvida, cada um deles se baseou no mundo presente para imaginar esse outro mundo futuro distópico e parece haver todo um aparato gigantesco de produção cultural que instala a ideia de um mundo apocalíptico futuro, mais ou menos distante.
As distopias são mais fáceis de imaginar, basta somar uma dose maior de miséria e angústia em nosso presente. Embora, como disse Norberto Bobbio, infelizmente as distopias tendem a se concretizar com maior êxito que as utopias, aquelas se encontram mais associadas a rupturas apocalípticas, que podem resultar mais ou menos atemorizantes, mas que não são assumidas a curto prazo e muito menos relacionadas à ideia de progresso em nosso presente. Assim, o espírito benjaminiano parece querer nos advertir que a coisa verdadeiramente chocante é reconhecer no futuro distante e apocalíptico, não algo longínquo, ainda que talvez um provável destino, mas, sim, nosso próprio presente.
Em nossas atuais condições abundam os imaginários distópicos, mas a qual estratégia de poder tributam? Porque dá a impressão que as distopias produzem o efeito de adiar o mal-estar, o inconformismo e, como correlato, a ação política que confronte a esse modelo. Mas, em chave benjaminiana, o mundo que se projeta para a “saída” de tudo isto não será o mesmo, mas também não será completamente diferente e os escombros não nos sepultarão em um futuro, mas agora mesmo. Contudo, como não são reconhecidos como tais, tornam-se aceitáveis.
A pandemia, o confinamento e o isolamento social obrigaram modificar ou, melhor, a aprofundar as formas como construímos e recriamos nossas relações sociais, sejam elas no âmbito do trabalho, no afetivo, no recreativo, no comercial e no consumo, entre outros. Espera-se que a situação se “normalize” para retomar as rotinas que soubemos ter, antes que tudo isso começasse. Aqui está o primeiro elemento que se coloca em jogo nesta espécie de dispositivo de normalização: a volta à normalidade, o retorno ao mundo que deixamos quando nos fechamos em nossas casas. Em relação a isso, também existem aqueles que a assumem sem problematização alguma e aqueles que manifestam que essa “normalidade” foi, justamente, a que nos conduziu a esta situação e, portanto, não devemos almejar retornar a ela. Seja qual for o caso, o retorno operacional está delineado. Em algum momento, espera-se retomar as velhas e conhecidas práticas.
No entanto, não parece simples imaginar esse retorno à nossa confortável e conhecida cotidianidade, mas isso não significa o apocalipse, não supõe uma sociedade destruída e desmembrada, arrasada pela escassez, a fome e o egoísmo generalizado. Em primeiro lugar, porque esses elementos já estão presentes: fome há e muito, egoísmo generalizado, nós o reconhecemos a todo o momento e lugar. Estes escombros não fazem parte do futuro, mas de nosso presente.
Em segundo lugar, as modificações que esta situação projeta são ativadas sobre as linhas e as tendências que já vem sendo anunciadas há vários anos em nossas sociedades. Refiro-me ao capitalismo de plataforma, o teletrabalho, a oferta de estudos virtuais, consumos vários a partir do lar, a proliferação de propostas de ócio que temos em nossos dispositivos celulares. Mais da metade da população mundial se conecta à Internet e em sua grande maioria por meio de dispositivos móveis.
Basta navegar um pouco pela rede para encontrar informação acerca do sustentado aumento nas vendas de artigos de consumo, bens de primeira necessidade, aquisição de títulos de diferentes competências, multiplicação das plataformas para o ócio e a recreação, etc. Qualquer um poderia dizer que se deve à pandemia e a quarentena, no entanto, trata-se de um aumento que vem ocorrendo há muito tempo, não tem a ver com ela, ainda que a mesma ofereça as melhores condições para o seu aprofundamento.
Tendo em conta que nem tudo poderá se estruturar dessa maneira, esta pandemia também evidenciou, mais uma vez, a centralidade do trabalho como criador de valor em uma ordem social cujas relações sociais de produção concebem a riqueza como valor, acumulação constante de capital, não como valores de uso supridores de necessidades.
Os cenários futuros tecnologizados sem mão de obra fazendo o mundo se mover, no marco das presentes relações sociais de produção, não são mais que fantasia. Mas aqueles espaços e atividades que são factíveis de ser transformados avançarão para esse lugar e naqueles outros onde já existe, esse processo se acentuará. Pensemos em que não será fácil retomar rotinas sociais que impliquem aglutinamento ou eventos massivos, teatros, cinemas, restaurantes, recitais, eventos esportivos, etc.
As condições parecem estar dadas para avançar nessa direção. Há algumas semanas, Naomi Klein publicou um interessante artigo sobre este tema. No mesmo, Eric Schmidt, presidente executivo da Google e Alphabet Inc., expressava: “As primeiras prioridades sobre as quais estamos tratando se centram na telessaúde, aprendizagem remota e banda larga... Precisamos buscar soluções que possam ser apresentadas agora e acelerar a utilização da tecnologia para melhorar as coisas”. E Melinda Gates, esposa de Bill Gates, titular da Fundação Gates e integrante do diretório de The Wasshington Post, dizia em referência ao sistema educacional e as ofertas do mesmo: “Todos estes edifícios, todas estas aulas físicas, para quê, com toda a tecnologia que se tem?”.
Considerando estas declarações, devemos inscrever e compreender a quarentena, essa medida que pode parecer mais de corte sanitário, no marco do avanço tecnológico e das formas crescentes de produção e consumo virtual, já que em conjunto parecem se constituir no melhor cenário para um mundo cada vez mais desconectado biologicamente, mas interconectado virtualmente. Como destacou Anuja Sonalker, CEO de Steer Tech: “Os humanos são bioperigosos, as máquinas não”.
A pior coisa que podemos fazer é assumir as tecnologias como se fossem inócuas, meras ferramentas facilitadoras das mais variadas modalidades de interação social. Ao contrário, se o isolamento social se tornar longo, não será porque assim o determina tal ou qual governo, mas porque se encarnaria como um novo estilo de vida. O grande êxito do capitalismo neoliberal é nos governar, não contra nossa vontade e liberdade, mas graças a ela e através dela, convencendo-nos que a situação em que nos encontramos é resultado de nossas próprias escolhas e decisões.
Por isso, mais que distopia, diante de nós está o próprio desenvolvimento do capitalismo. Em algumas notas preparatórias para seu trabalho Sobre o conceito de História, Walter Benjamin escreveu: “Marx disse que as revoluções são as locomotivas da história. Mas talvez as coisas sejam diferentes. Talvez as revoluções sejam a forma como a humanidade, que viaja nesse trem, aciona o freio de emergência”. O capitalismo é essa locomotiva descontrolada que, sem obstáculos e nem freio, leva tudo, inclusive a própria humanidade.
Por isso, as revoluções não devem empurrar para frente, não devem ser concebidas como uma locomotiva que acelera o tempo para esse progresso oferecido, mas que demora a chegar a todos e todas. A revolução não é aceleração, mas, sim, interrupção, é o freio de mão desta louca e descontrolada corrida para a destruição total de tudo.
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Não é distopia, é capitalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU