Presidente Lula veta parcialmente projeto de lei que prevê marco temporal das terras indígenas
Apesar dos debates gerados pelo veto parcial do presidente Lula ao Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas na última sexta-feira, 20-10-2023, a decisão foi positiva, segundo o pesquisador Vinício Carrilho Martinez. Para ele, o veto presidencial "aplicou-se a remover (vetar) todos os pontos (artigos) inconstitucionais do texto. (...) Agora o veto voltará à origem legislativa, que poderá derrubar a decisão do Executivo (ou não). Se derrubarem o veto, com certeza haverá judicialização e o Supremo Tribunal Federal, possivelmente, decidirá pela sua inconstitucionalidade. Esse futuro ainda veremos, mas será em breve".
Na última sexta-feira, Lula vetou parcialmente o Marco Temporal para a demarcação das terras indígenas no Brasil. O veto, aguardado depois da decisão do STF favorável aos indígenas e de tentativas do Congresso Nacional em aprovar o PL 2.903 para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas, foi amplamente esperado pelas comunidades indígenas.
No ano em que a Carta Magna completa 35 anos Martinez destaca a importância de se ler a Constituição “de modo a garantir que seus preceitos, pressupostos, garantias e direitos fundamentais precisam ser observados à risca”. Na avaliação dele, as disputas em torno das terras indígenas envolvem diretamente os interesses unilaterais do agronegócio. “Talvez coubesse frisar que se trata do capital em seu estágio mais involutivo, limitado ao nível mais rudimentar em termos de produção ou de sistema produtivo”, menciona.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Martinez também comenta o conflito entre Hamas e Israel em Gaza.
Vinício Carrilho Martinez (Foto: Reprodução | Youtube)
Vinício Carrilho Martinez é graduado em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição e em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). É pós-doutor em Ciências Políticas e em Direito pela Unesp. É professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
IHU – Como avalia o veto presidencial parcial ao Marco Temporal?
Vinício Carrilho Martinez – Vejo muito positivamente. Seguiu o rito estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), aplicou-se a remover (vetar) todos os pontos (artigos) inconstitucionais do texto. Ainda vetou outras polêmicas, como estabelecer relações negociais com as comunidades indígenas e até “a construção de rodovias em reservas indígenas”, o que, evidentemente, seria o fim das culturas tradicionais ali presentes, além de todos os possíveis atentados e crimes ambientais que viriam após essas ações.
Agora o veto voltará à origem legislativa, que poderá derrubar a decisão do Executivo (ou não). Se derrubarem o veto, com certeza haverá judicialização e o STF, possivelmente, decidirá pela sua inconstitucionalidade. Esse futuro ainda veremos, mas será em breve.
IHU – Como compreender a decisão do presidente Lula ao projeto do Marco Temporal?
Vinício Carrilho Martinez – Em espécie, a criação do Ministério dos Povos Indígenas foi uma lufada de ares oxigenados pelo princípio civilizatório, em claro antagonismo e oposição ao período anterior (2018-2022), quando vigorou no âmbito do Poder Político toda série de negacionismos: das vacinas que não vinham à “boiada passando livre nas reservas naturais” e avançando nas terras já demarcadas (seculares) de muitas nações indígenas. A situação ainda vigente dos Pataxó, no sul da Bahia, é um exemplo vivo.
Portanto, é natural que esperemos que essa questão do Marco Temporal seja resolvida de uma vez por todas – que o único marco atemporal, ou seja, sempre em vigência, seja o da dignidade humana, como está desenhado na Constituição cidadã. Como afirmou Ulysses Guimarães, em notável brilhantismo humanitário, racional e lógico: “Traidor da Constituição é traidor da Pátria”. Então, que o veto seja bem postado, principalmente neste 2023, em que a Constituição de 1988 completou 35 anos de promulgação.
IHU – Qual sua análise sobre a votação do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal?
Vinício Carrilho Martinez – Faço uma avaliação muito positiva por parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que construíram seus votos de forma contrária à tese do Marco Temporal, especialmente porque a Constituição Federal de 1988 (CF 88) foi respeitada. O enlace mais claro e óbvio é referente ao artigo 231, que estabelece claramente o “Indigenato”, a construção da ancestralidade, o respeito integral à tradição cultural. Porém, e sobretudo, porque atentou-se para a primazia do Princípio da Dignidade Humana.
Pessoalmente, creio que se promoveram interpretações adequadas à Unicidade Constitucional com o entendimento de que a teleologia presente e atuante no Princípio Civilizatório (artigo 215, §1º da CF 88) não tem data limite, especialmente no que dispõe o parágrafo 5º: “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.”
Aliás, se há uma data, que seja 5 de outubro e que não mais se tente usurpar o Objeto Positivo da Constituição de 1988 (nossa Carta Política), utilizando-se de teses de “interpretações” que são verdadeiros atentados à própria Constituição de 1988. Ainda acrescento que se respeitou uma lógica, até primária, no sentido de que a Constituição de 1988 não pode ser baliza ou “demarcação temporal” (com data fixa) para o escanteamento dos direitos fundamentais, do pluralismo social, da diversidade cultural. É preciso lembrar que o artigo 5º, LXXIX, §2º, anuncia o Direito a ter direitos. Ou seja, por onde quer se olhe a Constituição Federal de 1988, não há como justificar a perda de direitos fundamentais dos povos originários, dos povos da floresta, dos quilombolas.
IHU – Como compreender o fato de que, enquanto o STF derrubava o Marco Temporal, quase ao mesmo tempo o Congresso aprovava o PL 2.903, que justamente cria um Marco Temporal?
Vinício Carrilho Martinez – Neste sentido específico, entendo que seja a ação da bancada legislativa que representa quase exclusivamente os interesses do chamado agronegócio. Um miolo político-ideológico específico das forças mais conservadoras ou reacionárias da política nacional, que atende por Centrão. Antigamente, chamava-se de Bancada BBB – bala, boi e bíblia –, mas, em essência, não se modificou muito. Talvez pelo acréscimo de mais um B – dos bancos –, os interesses desse grupo raramente são confessáveis publicamente, quer dizer, não são republicanos.
No governo anterior, derrotado em 2022, também tivemos uma história ilustrativa desses interesses, quando se disse institucionalmente que era desejo aproveitar a “desatenção” com a pandemia da covid-19 para “passar a boiada sobre a legislação ambiental” – legislação que criava embaraços à depredação ambiental e das reservas naturais brasileiras. Então, apesar de forte economicamente, o agronegócio não se alinha à Constituição Federal de 1988, uma vez que sempre embatem com o próprio Princípio do Processo Civilizatório. Quando o STF recusa o Marco Temporal, demonstra-se também aderência à preservação do meio ambiente sustentável. O artigo 225, cominado ao 231, ao 6º, ao 206, IX, da CF 88, corrobora a tese da educação, de acordo com a defesa dos direitos fundamentais – ao longo da vida e atenta às gerações não nascidas –, de forma a mitigar os males mais violentos do capitalismo, e como andamento da busca pela justiça social. Neste caso, especialmente em atenção ao artigo 170, VI, acerca do meio ambiente.
IHU – Quais as questões de fundo por trás da insistência da criação de um Marco Temporal?
Vinício Carrilho Martinez – Como disse acima, particularmente entendo que são os interesses do agronegócio. Talvez coubesse frisar que se trata do capital em seu estágio mais involutivo, limitado ao nível mais rudimentar em termos de produção ou de sistema produtivo. É o avesso, por exemplo, da indústria de transformação que não se limita à venda de produtos in natura, sem nenhuma ação industrial – ou muito pouco. Lembra-nos um passado (muito recente) do Brasil como fazenda, limitado ao sistema do plantation: monocultura exportadora.
Hoje não há monocultura, mas pouco escapa – na produção em escala do agro – do milho, da soja e do álcool. Tem o gado também, mas que se liga à produção do milho e da soja. O ciclo é muito limitado. Isto é, em poucas palavras: o objetivo é apenas ter/obter (expropriar) mais terras para o gado e a soja que o alimenta. Na Teoria Social clássica denominou-se isso de “acumulação primitiva”. O termo primitivo para esta fase da expropriação dos recursos e do trabalho humano (e da natureza) não ocorreu à toa.
IHU – Por que houve demora na manifestação do presidente Lula acerca do projeto do Marco Temporal aprovado no Congresso? O que esse silêncio revela?
Vinício Carrilho Martinez – Penso que há algumas hipóteses para essa possível demora no veto presidencial. Primeiro, há algum tipo de alinhamento do atual governo com as políticas neoliberais, e temos vários exemplos neste sentido – da privatização dos presídios, fazendo girar a roldana capitalista do Estado Penal (aquele dos anos 80, 90, nos EUA), em que vigora a regra capitalista de “quanto mais presos, maior o lucro sistêmico da criminalização social”, à prorrogação do “novo” ensino médio, com educação financeira de crianças e jovens que quase não têm a merenda escolar para se alimentar, até o bloqueio de 1,5 bilhão dos recursos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para a ciência e pós-graduação.
Segundo, hoje está em vigência um tipo de semipresidencialismo, um parlamentarismo forçado, com a presidência mendigando votos no Congresso Nacional. Ironicamente, o modelo traçado no artigo 84 da CF 88 – um superpresidencialismo (kaiserpresidente) – acabou congelado pelo Centrão, especialmente nos campos do agronegócio e do sistema financeiro e, por isso, as negociações são emperradas. Como se o governo tivesse que pedir autorização ou se justificar constantemente ao Centrão, que é, efetivamente, quem decide os rumos do país.
Terceiro, pode-se pensar, de modo mais simples, que uma parcela significativa do atual governo concorda com a tese do Marco Temporal.
IHU – No início do ano houve muita celebração pela abertura do governo aos povos originários com a criação do Ministério dos Povos Indígenas. Passado esse tempo, como analisa as efetivas ações com relação aos povos indígenas? Em que medida o posicionamento de Lula ao projeto do Marco Temporal corrobora com o discurso do início do governo?
Vinício Carrilho Martinez – Há muito a comemorar, sem dúvida. Costumava dizer que em janeiro (antes da tentativa de golpe, no fatídico 08-01-2023), poucos dias de sobrevida pareciam anos inteiros porque o negacionismo (fascismo nacional) havia sido destituído. A revitalização da cultura é outro aspecto a ser lembrado.
Por outro lado, ainda vemos problemas muito sérios envolvendo comunidades indígenas; a tentativa de genocídio dos Yanomami ainda não foi totalmente desbaratada. No sul do país, com a enchente violenta, outras comunidades indígenas ficaram à mercê da própria sorte – além dos Pataxó. Há muito a ser feito e a desarticulação do Marco Temporal pelo STF foi essencial. Não foi por unanimidade, mas, alcançou uma votação expressiva (9x2).
O veto presidencial viria a confirmar o discurso e o posicionamento ideológico (programático) da campanha. Então, é essencial que não se retarde muito. Aliás, sendo mais intempestivo, somos levados a pensar uma quarta hipótese: deixar o tempo passar para abrandar a presença do agronegócio no meio dessa discussão toda. Seria uma estratégia, ainda que haja dúvidas sobre a sinalização que se deve ter muito claramente quanto ao respeito à Constituição, ao processo civilizatório, à cultura e dignidade dos povos originários.
IHU – O senhor tem dito que a tese do Marco Temporal é uma afronta à Constituição Cidadã e ao direito originário à terra. Pode retomar e detalhar esta sua perspectiva?
Vinício Carrilho Martinez – Se fizesse um combo rápido, diria que temos que ler a Constituição de modo a garantir que seus preceitos, pressupostos, garantias e direitos fundamentais precisam ser observados à risca. Minha contribuição particular neste quesito seria assim resumida – do ponto de vista jurídico-constitucional: “Trata-se do recorte unificador entre a Justiça Social (artigo 170, VI, da CF 88) com os artigos 6º, 206, IX e 225 da Constituição de 1988: Educação para o meio ambiente protegido enquanto direito fundamental social e como instrumento da Justiça Social, com atenção às gerações presentes e às gerações futuras”.
IHU – Ainda sobre a Constituição Cidadã, há quem diga que ela avançou demais. A seu ver, o que esta perspectiva revela? Quais os desafios para assegurar e efetivar o que foi previsto na Carta de 1988 e até fazer avançar estes princípios?
Vinício Carrilho Martinez – Quando se trata de negar validade à Constituição de 1988, ouvimos uma série infinita de impropérios. O senso comum diz que só há direitos, sem que ao menos se tenha lido qualquer componente constitucional. Se tivessem lido, saberiam que o princípio da corresponsabilidade traz obrigações públicas (educação, saúde) e deveres aos indivíduos, à sociedade, à família, ao Estado. Ouvimos verdadeiras pérolas, que reforçam o “analfabetismo constitucional” (pior ainda quando se abate sobre os juristas), como: “a Constituição não é cumprida porque é cumprida demais”; “a Constituição não fez a reforma agrária”. Todas essas coisas eu já ouvi. Elas são hilárias em si mesmas, pois a Constituição seria descumprida (por aqueles/aquelas que não a querem) mesmo que fosse enxuta, como a dos EUA. A Constituição não faz nada, não é uma entidade, um ser; é uma lei. E a lei não age, manda agir ou se abster.
De modo muito pessoal, defendo a tese de que devemos ensinar a Constituição nas escolas públicas. Uma Educação Constitucional – pela Constituição de 1988, isto é, um conjunto de disciplinas que obrigatoriamente se debruçariam na leitura, na reflexão e no aquilatamento do texto constitucional. Na verdade, isto não é feito porque não se quer, uma vez que se prefere um aporte neoliberal em “educação financeira” para crianças que passam fome.
No início de 2024, deverei ter publicado um livro específico – com um passo a passo dessa Educação Constitucional, mas, ou sobretudo, com uma discussão conceitual do que é necessário (do meu ponto de vista) para um ensino adequado da Constituição Federal de 1988. Também temos, gratuitamente, um material para isso: um conjunto de slides ou prints sobre a Constituição, da edição colecionada pela Editora Moderna (a partir do volume 5 e da página 78 em diante), neste link.
Também é oportuno indicar uma publicação do Senado Federal, acessível em PDF, intitulada Constituição em Miúdos, voltada ao público leigo e estudantes iniciais.
IHU – O senhor também tem acompanhado os ataques à Faixa de Gaza. Como analisa esse novo capítulo no conflito entre Israel e a Palestina, agora com a intensa participação do Hamas?
Vinício Carrilho Martinez – Tenho acompanhado não como estudioso da questão, mas como cidadão preocupado com os destinos que a humanidade teima em se dar. Observo e defendo a causa palestina há muitos anos, desde a graduação, e isto me leva a afirmar que sempre serei contra as posições do Estado sionista – a ocupação da Palestina, inclusive juridicamente, deveria nos obrigar a refletir sobre o uso desmedido dos meios e das forças de exceção.
Por outro lado, tenho plena noção da história, com ênfase no Holocausto e nas barbaridades nazistas. Isso me leva a ser absolutamente refratário e combatente de toda e qualquer forma de antissemitismo. Bombardear hospitais está acima de qualquer compreensão benevolente, ultrapassando qualquer limite de moralidade, por mais que seja liquefeita no teatro da guerra, tanto quanto irei negar a legitimidade ao terrorismo do Hamas.
Em termos de educação, a partir de agora teremos um duplo desafio: cuidar sempre da educação após Auschwitz (como queria Adorno) e, agora, ainda mais, de uma educação depois de Gaza. O desafio duplo será nos educar para não cairmos nas armadilhas do sionismo (estatal) e também do antissemitismo. Efetivamente, parece que o século XXI não cabe em muitas respostas prontas ou mais elaboradas. A cada dia surgem desafios gritantes para a humanidade. Outro exemplo, neste sentido bélico da questão, aponta a existência de pelo menos 17 conflitos armados, notadamente na África. E aqui eu faria uma pergunta: por que o mundo ocidental não se revolta com a morte de crianças pobres, negras, mortas por balas, de fome, por minas terrestres?
IHU – Olhando para os conflitos entre Israel e a Palestina do ponto de vista prático, em que medida eles podem ser compreendidos a partir da perspectiva dos povos originários e seus direitos à terra?
Vinício Carrilho Martinez – É uma ótima pergunta. E aqui ressalto a habilidade diplomática do Estado brasileiro em repatriar brasileiros e brasileiras em Gaza e em Israel (sem cobrar por isso, como fizeram os EUA, diga-se de passagem). Constitucionalmente, o Brasil é signatário do “direito à autodeterminação dos povos”, o que também implica dizer que deveríamos frisar o reconhecimento do Estado da Palestina. Muitos entendem que a solução de dois Estados já está vencida, porém é obrigação constitucional a fim de que a diplomacia brasileira – ainda mais agora na presidência do Conselho de Segurança da ONU – se dedique a embasar nossa disposição pelo amplo reconhecimento do direito à autodeterminação do povo palestino.
A relação que faria com os nossos povos originários é, muito claramente, no que diz respeito à preservação da cultura, da ancestralidade, da diversidade cultural. O que nos leva de volta à negativa ao Marco Temporal, que é só um tempo de desmoralização internacional do Brasil. Uma diferença que precisa ser esclarecida é referente ao fato de que à Palestina cabe o direito ao reconhecimento internacional, com fixação da soberania territorial. No que tange aos povos indígenas brasileiros, não cabe aventar qualquer natureza de soberania territorial, mas somente a capacidade de gestão que é própria da autonomia. É preciso jamais confundir soberania com autonomia.
IHU – Que associações e dissociações podemos fazer entre as relações entre israelenses e palestinos com os indígenas brasileiros e os não indígenas que buscam ocupar suas terras e reduzir as populações a poucas e adensadas aldeias?
Vinício Carrilho Martinez – É uma questão importante e eu diria que não é tão especulativa, como alguém poderia supor. Se observamos a Palestina, mormente a Faixa de Gaza e o conflito atroz, é possível analisar numa lógica dupla: dentro e fora do sistema, dentro e fora da regularidade, a partir do direito ao reconhecimento ou defronte aos mecanismos de exceção (exceptio). Fora do sistema de normas internacionais, o Estado de Israel (com apoio dos EUA) atua como um verdadeiro Estado de Exceção – a série histórica das ocupações é um conjunto de indícios, no sentido de comprobatório. Então, aqui, teríamos de retomar toda a discussão traçada sobre o próprio instituto do Estado de Exceção, que não corresponde ou viola em grandiosidade o direito à livre determinação dos povos e sua soberania. Digo fora do sistema porque as regras de exceção provocam paralisia na regularidade normativa. No entanto, dentro do sistema, digamos assim, trarei um caso técnico que deve ajudar a esclarecer essa diferença. É o caso de observarmos quando a tecnicalidade é um reforço importante para a política.
Se a Palestina reúne a Faixa de Gaza e se o mundo reconheceu sua soberania (não só autonomia política), a Faixa de Gaza é parte de um país (não só de um território) e, neste caso, a Faixa de Gaza é um “exclave”: parte de um país dentro de outro país. Exemplo é Kaliningrado. De outro modo, se não se reconhece a Palestina soberanamente (apenas com autonomia política e administrativa), então a Faixa de Gaza é apenas parte de um território e, neste caso, é um “enclave”. Exemplo é Lesoto, na África. Portanto, do ponto de vista do debate político-ideológico, fixar a Faixa de Gaza como exclave também legitimaria a necessária soberania do Estado da Palestina.
Curiosamente, como vimos, em ambos os aspectos (dentro e fora da regularidade normativa, efeito suspensivo das regras e da soberania), o resultado é convergente ao direito à livre determinação do povo palestino.
Essa é a principal notícia [comboios da ONU conseguem levar água até Gaza], para quem se desespera com mais uma guerra e luta para que se ponha fim à morte de tantas crianças – já são milhares nesse conflito.
Por outro lado, vem à tona o duelo ideológico que o conflito esquentou ainda mais. Como se sabe, “numa guerra, a primeira que morre é a verdade”. E em Gaza não é diferente. O temor agora tem outra vertente: a apropriação discursiva sobre a guerra Israel versus Gaza por forças antissemitas, isto é, propriamente neonazistas.
As críticas ao sionismo de Estado (e que não é todo o sionismo) são urgentes, necessárias e óbvias. Porém, a fronteira entre a crítica ao sionismo no poder de Estado e o antissemitismo é uma linha muito fina – uma fagulha que acende muito fogo. O grande desafio (e terror) é não permitir que nossas críticas – no gueto de Gaza – transformem-se em labaredas de extremíssima direita, neonazista, sobretudo. Somos e seremos cobrados para termos o equilíbrio necessário, mesmo que em cima da ponta de uma agulha.
Algumas pessoas dirão que tudo é conversa mole, que o sionismo é e sempre foi assim, ao menos desde a criação do Estado de Israel. Outras dirão que o antissemitismo, no modelo neonazista, é uma constante firme e presente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Muitos ainda dirão que o mundo seria assim, mais ou menos como é agora, se os nazistas tivessem vencido a Segunda Grande Guerra.
O fato é que não quero que este texto, por exemplo, possa servir de munição para o sionismo e muito menos para o antissemitismo. Toda vez que analisamos com a bílis, o cérebro enjoa e vomitamos ódio e impropérios.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Vinício Carrilho Martinez – Oxalá consigamos resolver alguns dos mais graves problemas e gravíssimas violações de direitos humanos com racionalidade, moralidade pública e em atenção sobremaneira iluminada pela dignidade humana. Como Filho de Ogum, é isso o que mais desejo.