PL do marco temporal avança na Comissão de Agricultura do Senado; Pacheco precisa cumprir promessa de examinar matéria sem açodamento.
A reportagem é publicada por Observatório do Clima, 23-08-2023.
A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) decerto não tem medo de ir para o inferno. Oito meses depois de o Brasil assistir estarrecido às imagens do genocídio dos yanomami, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado aprovou por 13 votos a 3 o relatório de Thronicke do PL 2.903 (antigo PL 490), que não apenas impede novas demarcações de terras indígenas, como permite desfazer demarcações já homologadas.
O PL do Genocídio estabelece o chamado marco temporal, tese segundo a qual indígenas que não estivessem produzindo em suas terras em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição, perdem direito a elas. A bancada ruralista tenta avançar com o marco temporal no Congresso antes do julgamento da questão no STF, que pode julgá-lo inconstitucional.
Mas antes fosse só isso. O texto aprovado na CRA, que agora vai à Comissão de Constituição e Justiça – última escala antes do plenário – flexibiliza todo o uso das terras indígenas e inviabiliza, na prática, as demarcações. Ele permite contestar demarcações em qualquer momento do processo, decretar a suspeição de antropólogos no exercício de seu trabalho, arrendar terras indígenas, instalar nesses territórios atividades impactantes sem consulta prévia e até reverter homologações já feitas. O projeto permite à união retomar “reservas indígenas” caso se verifique “alteração dos traços culturais” da comunidade – um dispositivo racista que fede às teses de “integração do índio” da ditadura militar. Além disso, o PL acaba com a política da Funai do não-contato com grupos isolados, permitindo que até mesmo empresas privadas e missionários evangélicos façam contato com esses povos.
O PL ataca o coração do conceito de terra indígena. Em vez de ser um bem indissociável do modo de vida desses povos, as terras se tornam uma mercadoria que pode ser comprada, vendida e arrendada, como uma fazenda qualquer. “Em pleno século 21, com o avanço da emergência climática e da crise da biodiversidade, e com os mercados de commodities dizendo não a produtos de áreas desmatadas, os ruralistas insistem no esbulho dos territórios que protegem um quarto da Amazônia e que são fundamentais para a manutenção da cultura de três centenas de povos”, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.
O PL 2.903 foi proposto originalmente em 2007, mas sua tramitação acelerada no Congresso desde 2022 é uma herança direta do bolsonarismo. Não à toa, quatro dos 13 senadores que o aprovaram pertenceram ao primeiro escalão do regime passado: Tereza Cristina (PP-MS), Hamilton Mourão (Republicanos-RS), Jorge Seif (PL-SC) e Sérgio Moro (União-PR).
Além deles, votaram pelo esbulho das terras indígenas Izalci Lucas (PSDB-DF), Zequinha Marinho (Podemos-PA), Wilder Morais (PL-GO), Vanderlan Cardoso (PSD-GO), Sérgio Petecão (PSD-AC), Margareth Buzetti (PSD-MT), Jayme Campos (União-MT) e Ivete da Silveira (MDB-SC).
Nesta terça-feira, 310 organizações da sociedade civil publicaram uma carta pedindo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que cumpra seu compromisso de garantir um debate adequado sobre o tema, encaminhando o PL às comissões de Direitos Humanos, Meio Ambiente e Assuntos Sociais. Dessa forma, dizem as organizações, poderá haver “uma análise tecnicamente qualificada de seus diversos aspectos e (…) ampliada a consulta aos povos indígenas, que serão diretamente afetados por essa mudança de regras”.
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