29 Abril 2022
"Kant não tinha ilusões sobre a maldade da natureza humana e a propensão dos Estados à guerra", escreve Massimo Nava, jornalista, em artigo publicado por Corriere della Sera, 28-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A alguém que teorizou a paz universal não deveria agradar descansar (ele sim, talvez, em paz) em um dos lugares potencialmente mais perigosos no mundo. Lá de cima, Immanuel Kant viu muitas vezes mudar fronteiras, governantes, toponímia e até mesmo o nome de sua cidade natal. Apenas o túmulo não se moveu. E essa "imobilidade" não é um sinal de esperança, mas um aviso ao mundo à beira do precipício pelo que poderia acontecer em um estreito canto de terra e mar que lembra sombrias sugestões da Berlim Oriental antes da queda do Muro.
Assim, a história europeia revela-se realmente como o eterno retorno de que falava Nietzsche. Königsberg, berço da cultura alemã durante séculos, pérola do Báltico bombardeada pelos Aliados e pelo Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial, foi anexada à URSS, reconstruída em estilo soviético na década de 1960 e renomeada Kaliningrado, em homenagem a Mikhail Kalinin, presidente do Soviete Supremo e herói da revolução.
Durante anos, poucos se lembraram do enclave russo: ferida na memória da Alemanha derrotada (os cidadãos alemães foram expulsos) e, no entanto, legítimo remanescente do conflito mundial que se revelará um espinho ameaçador no flanco da OTAN.
Na época do presidente Boris Yeltsin havia sido imaginada como uma zona econômica livre, uma espécie de Hong Kong, repovoada por cidadãos russos (mais de meio milhão) e equipada com infraestruturas de bom nível, inclusive para apagar na raiz sentimentos de independência.
Sob a presidência de Vladimir Putin, o enclave adquiriu maior importância estratégica em resposta ao caminho das Repúblicas Bálticas e da Polônia para a Europa e a OTAN. Desde então, o Báltico se transformou em uma perigosa bacia de jogos de guerra, aqueles que atendem pelo nome de exercícios conjuntos e que permanecem pacíficos até prova em contrário.
Se a Suécia e a Finlândia também aderirem à OTAN, a "pequena Rússia fora da Rússia" poderia se tornar a trágica fogueira da neutralidade e da dissuasão nuclear. E como a história, além de se repetir, joga com coincidências, é preciso acrescentar que foi aqui que nasceu a primeira esposa de Putin, Lyudmila.
A localização geográfica desta área encravada entre a Polônia e a Lituânia dá arrepios. O porto, uma das raras áreas do Báltico onde o mar não congela, abriga o quartel-general da frota russa e - segundo fontes ocidentais - submarinos e mísseis de vários tipos, inclusive com capacidade nuclear, que poderiam atingir qualquer lugar da Europa. O outro ponto chave de Kaliningrado é a chamada “passagem de Suwalki”, em território polonês, um corredor de cerca de cem quilómetros que liga o enclave à Bielorrússia e que é a única ligação terrestre entre os Países Bálticos e a Europa. O corredor, em caso de extensão do conflito até as fronteiras da Ucrânia, tornar-se-ia uma fechadura dupla para os países bálticos. O bloqueio de Suwalki fortaleceria o controle do Kremlin sobre a Bielorrússia e exporia a segurança da Polônia a mais riscos.
Cidade russa de Kaliningrado (Fonte: Wikimedia Commons)
“Não será mais possível falar e status não nuclear no Báltico. O equilíbrio terá que ser restaurado”, disse o ex-primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev, insinuando que a decisão dos países escandinavos implicará no fortalecimento das defesas de Moscou na região. Graças à posse de Kaliningrado, o Kremlin não terá que pedir permissão a ninguém, sempre que os mísseis nucleares já não estejam presentes no hangar do enclave.
A Rússia prepara as contramedidas. Enviou navios tanques para fornecer gás, temendo que a Lituânia feche a torneira e deixe a cidade de Kant no frio. Armada até os dentes, mas isolada.
Kant não tinha ilusões sobre a maldade da natureza humana e a propensão dos Estados à guerra. "O estado de paz entre os homens, que vivem lado a lado, não é um estado natural". O estado natural "é mais um estado de guerra", mas ao contrário de Maquiavel, ele acreditava que era possível conciliar moral e política. Ele teorizou um acordo global, na consciência de que a guerra é assunto dos poderosos de plantão e mal absoluto para os cidadãos que a sofrem. O seu era um sonho regulatório, o embrião das Nações Unidas, que ao longo do tempo provou ser uma arma sem fio em relação aos interesses e vetos cruzados das grandes potências. E sua cidade é hoje um tapa maligno na cara de um sonho que está morrendo.
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Kaliningrado, o perigo habita a cidade de Immanuel Kant - Instituto Humanitas Unisinos - IHU