STF decide por maioria em favor do povo Xokleng, de Santa Catarina. O julgamento terá “repercussão geral” para todos os povos e territórios indígenas do país.
A reportagem é de Leanderson Lima, publicada por Amazônia Real, 21-09-2023.
Um dia histórico para os povos indígenas do Brasil. Pelo placar de 9 x 2, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a tese do marco temporal nesta quinta-feira (21), encerrando um longo julgamento que teve início em 2021, marcado por adiamentos e pedidos de vistas. Apesar da “goleada”, há pontos controversos que precisarão ser definidos no futuro. Os votos dos ministros vieram acompanhados de ressalvas.
Propostas de indenização foram defendidas, em graus diferentes, pelos ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Dias Toffoli, que, apesar de ter votado contra o Marco Temporal, sugeriu que a mineração em terra indígena passe por votação no Congresso Nacional.
Votaram contra a tese do Marco Temporal os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e a presidente do Supremo, Rosa Weber. Apenas os ministros Kássio Nunes Marques e André Mendonça, ambos indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), votaram a favor da admissão da tese.
“Nós saímos vitoriosos sim da tese do Marco Temporal, mas ainda há muita luta a ser feita para afastar todas as ameaças que também estão tramitando no Senado Federal, através do PL 2903. Seguimos mobilizados, seguimos lutando, pois a luta irá continuar para garantia e proteção dos direitos dos povos indígenas”, declarou Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em nota divulgada pela organização.
Segundo o líder indígena, trata-se de uma vitória, pois há anos os povos lutavam para afastar a tese do Marco Temporal. Ele alertou, contudo, que alguns pontos do julgamento precisam ser observados. “Os votos de Toffoli e Moraes trouxeram elementos bastantes perigosos para os povos indígenas”, alertou.
Isso porque, segundo o líder indígena, apesar da crescente violência provocada pela ocupação ilegal de território indígena, “o ministro Moraes levantou a tese de uma possível indenização para invasores, que supostamente possuam títulos de propriedade rural de ‘boa fé’. E Toffoli defendeu a possibilidade de aproveitamento de recursos hídricos, orgânicos e minerais localizados dentro de terras indígenas.”
? Data histórica para o Brasil! #MarcoTemporalNão!
— socioambiental (@socioambiental) September 21, 2023
STF derruba, por 7 votos a 2, a tese que determinava que só povos indígenas que estavam em suas terras na data da promulgação da Constituição teriam direito à demarcação de seus territórios ancestrais.
?Ana Paula Sabino/Funai pic.twitter.com/T5ObXRkUdS
Indígenas dos quatro cantos do Brasil comemoram o fim de uma longa espera. Ameaçados por um projeto de exploração de potássio em seu território, indígenas Mura, no Amazonas, ficaram emocionados com a decisão, pois eles sabem que a “repercussão geral” do julgamento vai ser positiva para a luta por demarcação do território.
“É de grande importância para nós. Muita felicidade também, principalmente para nós, indígenas Mura de Autazes, especificamente da aldeia Soares, porque isso nos dá mais força para não desistir, para resistir, lutar contra toda essa coisa de exploração de minério, garimpo, extração de madeira ilegal”, disse o professor Felipe Gabriel à Amazônia Real.
Segundo ele, a decisão vai ajudar os Mura a continuar na luta por direitos. “Essa vitória sobre o Marco Temporal para nós é de grande importância. Vai fortalecer não só as outras comunidades indígenas, não só os outros povos, mas principalmente nós também que estamos lutando contra pessoas que só pensam no lucro, só pensam na ganância. Se fala em dinheiro, ficam totalmente cegos, vendendo sua própria terra, vendendo o seu próprio povo”, afirmou o professor indígena.
Para o advogado indígena Ivo Macuxi, de Roraima, a sensação é de missão cumprida, mas ainda há muito o que fazer. “Nossa luta vai continuar para garantir os direitos dos povos indígenas. A gente acredita que o Senado pode aprovar um projeto de lei instituindo o Marco Temporal e outras violações aos povos indígenas”.
“Mas caso o Senado insista em aprovar a tese do Marco Temporal como lei, ela pode ser questionada no próprio Supremo Tribunal Federal, por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade”, ressaltou o advogado.
Nas redes sociais, organizações indígenas postaram momentos de comemorações após o julgamento, todos em tom emocionado. Um dos mais fortes foi o da anciã Isabela Xokleng, que acompanhou todo o julgamento em Brasília. Os Xokleng são os protagonistas do julgamento, pois ele começou em um processo provocado por um conflito fundiário.
“Eu quero que os meus filhos tenham um futuro próspero dentro do nosso território, vivendo da cultura e da nossa tradição. Os meus filhos estão aqui comigo, sendo resistência e nós exigimos que o nosso território seja demarcado. Eu quero descansar, mas eu quero descansar depois que o nosso território for demarcado e que o futuro dos nossos jovens seja garantido pelo STF”, disse a líder indígena, em vídeo divulgado por outras lideranças.
A presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, também postou um vídeo comemorando a decisão do STF. “Hoje se enterra de vez o Marco Temporal”, disse.
“Hoje é dia de comemorar a vitória dos povos indígenas contra o Marco Temporal. O Supremo Tribunal Federal acabou, por maioria, de enterrar de vez essa tese absurda. Nós temos muitos desafios pela frente, como outros pontos que foram incluídos, mas uma luta a cada dia, uma vitória a cada dia. Nós acreditamos na justiça do Supremo Tribunal Federal para dar essa segurança jurídica aos direitos constitucionais dos povos indígenas. Isso dá esperança a esse povo que tem sofrido muitos anos com intimidações que o Marco Temporal trouxe para os povos indígenas. Hoje se enterra de vez o Marco Temporal”, declarou a líder indígena.
A Funai divulgou nota comemorando a decisão, em seu site, afirmando que o órgão “vinha denunciando que a tese do marco temporal ignorava o longo histórico de esbulho possessório e violência praticada contra os povos indígenas, acarretando a expulsão de seus territórios, além de violar os direitos indígenas previstos na própria Constituição Federal e em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro é signatário.”
Para o coordenador executivo da Apib pela Amazônia, Kleber Karipuna, é hora de celebrar a vitória do movimento indígena. “Com maioria de votos no Supremo Tribunal Federal conseguimos derrotar a tese do Marco Temporal, que é um projeto político inconstitucional que atenta contra a vida dos povos indígenas, inverte a história e coloca os povos indígenas como invasores de suas próprias terras”, analisa. Segundo Kleber, a Suprema Corte reconheceu o direito originário, mas os povos indígenas precisam ficar atentos às teses paralelas levantadas pelos ministros.
Indígenas acompanham o julgamento do marco temporal. (Foto: Fellipe Sampaio | STF)
Um dos pontos mais controversos foram as propostas que vieram acompanhadas dos votos dos ministros. Sobre as indenizações, o ministro-relator Edison Fachin limitou essas ações a eventuais benfeitorias que, porventura, tenham sido feitas por ocupantes dos territórios indígenas. Já Alexandre Moraes acrescentou o “direito à indenização do valor da terra nua e estabelecendo que o ressarcimento deve ser prévio”. Para Cristiano Zanin deve-se conceder o “direito à indenização que contempla as benfeitorias e a terra nua”. Porém, ele disse não caber indenização em casos já pacificados.
O ministro Dias Toffoli, porém, endossou a proposta de Alexandre de Moraes sobre a indenização prévia e a do colega Zanin quanto aos casos já pacificados e que não estejam com a judicialização em andamento.
Em seus votos, Luiz Fux e Cármen Lúcia não abordaram o assunto da indenização a fazendeiros e a abertura dos territórios à mineração, por meio do aval do Congresso. Eles consideram que o julgamento do Marco Temporal não cabia a deliberação sobre tais temas.
“A Apib considera que, apesar da existência de uma pequena parcela de pequenos proprietários que adquiriram de boa-fé títulos de propriedade sobre terras indígenas por ilegalidade praticada pelo Estado, a proposta da indenização supõe uma premiação aos invasores ilegais que representam a maioria das propriedades com sobreposição em terras indígenas, portanto, um incentivo à ocupação ilegal de terras paga com dinheiro público”, diz a nota.
O ministro do STF, Luiz Fux, durante sessão do STF sobre a tese do marco temporal. (Foto: Antônio Cruz | Agência Brasil).
O julgamento do Marco Temporal foi retomado nesta quarta-feira (20) com o voto do ministro Dias Toffoli. Até então, o placar estava 4 a 2 contra a tese ruralista. Edson Fachin, relator do caso, votou contra a tese. Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso também votaram contra. Nunes Marques e André Mendonça votaram a favor do Marco Temporal. Na quarta-feira, Toffoli votou contra a tese elevando o placar para 5 a 2. Na quinta-feira (21) o julgamento foi retomado com voto de Luiz Fux e ele também se posicionou contrário à tese do Marco Temporal. Com o voto de Fux o placar ficou em 6 a 2, formando a maioria necessária para derrubar a tese. Cármen Lúcia acompanhou o voto do relator, ampliando o placar para 7 a 2; Rosa Weber e Gilmar Mendes votaram contra a tese do Marco Temporal, encerrando o julgamento com o placar de 9 a 2.
“Estamos a julgar não situações concretas, estamos aqui julgando o destino dos povos originários do nosso país. É disso que se trata”, disse o ministro Dias Toffoli. Ele ressaltou que “não há no texto constitucional previsão normativa a constituir um suposto marco temporal”. “O intuito constitucional é assegurar o direito às terras indígenas a partir das concepções dos próprios povos sobre sua terra, de modo que ocupação se conforme usos, costumes e tradições”.
A ministra Cármen Lúcia disse que o Marco Temporal é contrário à ideia tanto de direitos fundamentais, quanto de se manter a identidade dos grupos indígenas e comunidades. “Estamos cuidando da dignidade étnica de um povo que foi dizimado, oprimido por cinco séculos”, pontuou. Para ela, os ministros “reconheceram a impagável dívida que a sociedade tem com os povos originários”.
Já o ministro Luiz Fux ressaltou que “ainda que não tenham sido demarcadas, essas terras ocupadas devem ter a proteção do Estado”, disse ressaltando trecho da Constituição que garante os direitos dos povos originários.
Gilmar Mendes se posicionou contra a tese do Marco Temporal, mas fez um voto crítico. “Daqui a pouco vamos ter que buscar aquela antropóloga portuguesa que prestava serviços no sul da Bahia e dizer: ‘isso tudo é área indígena e, portanto, é tudo uma república indígena e uma província indígena’. É disso que se cuida”, reclamou o ministro.
O último voto foi da presidente do STF, ministra Rosa Weber, que está em seus momentos finais na corte, já que se aposenta de forma compulsória no mês que vem. “Entendo que o que está em discussão é o Marco Temporal e eu, pessoalmente, e na linha do que todos defendemos, afasto a linha do Marco Temporal, acompanhando na íntegra o brilhantíssimo voto do ministro relator”, disse.
A tese do Marco Temporal foi a tentativa de emplacar a data de 5 de outubro de 1988 [data da promulgação da Constituição Federal] como data base para que indígenas pudessem reclamar suas terras. Os povos que não estivessem nesses territórios ou em litígio por eles até a data da promulgação da Constituição, não teriam mais direito a reivindicar tais terras.
O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral [que reverbera em outras decisões], diz respeito à ação que julgou a disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina. No local vivem indígenas das etnias Xokleng, Guarani e Kaingang. O governo catarinense tentava a reintegração de posse. Se a tese do Marco Temporal tivesse sido acolhida pelo STF, os indígenas teriam que desocupar as terras em Santa Catarina.
Segundo o STF, há no Brasil hoje mais de 300 processos em aberto sobre a demarcação de terras indígenas.