25 Abril 2025
"A segurar contra a deflagração da própria cultura, de uma perda total de sentido e de identidade, não apenas o mundo que via em pedaços, mas a psique e o intelecto, igualmente despedaçados pela roda dos tempos, de cada um de seus habitantes", escreve Silvia Ronchey, professora da Universidade Roma Tre, em artigo publicado por La Repubblica, 23-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Um papa que morre no meio do Jubileu, ainda por cima na Páscoa, não é um bom sinal. Especialmente se o que ele deixa para trás é, como ele mesmo acabou de definir, “um mundo em pedaços”. Os pedaços daquele mundo onde a “terceira guerra mundial em pedaços”, que ele já tinha visto em ação há tempo, produziu tantos e tamanhos flagelos de guerras e massacres, de perseguições e discriminações, a ponto de dissolver a percepção da dor do mundo em uma “indiferença coletiva”, induzida pela força sombria do demônio “dos cálculos e dos algoritmos, das lógicas frias e dos interesses implacáveis”, como Francisco escreveu nas meditações proferidas na Via Sacra de sua última Sexta-feira Santa.
Havia sido o Jubileu anterior, o do ano 2000, que desencadeou uma psicose milenarista em massa, a expectativa de um fim do mundo expressa em uma variedade de previsões e superstições extraídas não apenas do repertório escatológico cristão, como tinha acontecido na Idade Média latina, bizantina e islâmica, mas também daquele reservatório de irracionalidade global alimentado pela caótica neorreligiosidade ou neocredulidade Nova Era que na época circulava no banco de dados digital. Do extracanônico 'mil e não mais mil' e do Apocalipse de João à septuagésima segunda quadra da décima centúria de Nostradamus, das doutrinas astrológico-calendarísticas dos maias ao bug do milênio, muitos, dentro e fora das várias igrejas oficiais ou oficiosas, aguardavam a irrupção dos flagelos, os Quatro Cavaleiros, os anjos das Sete Pragas.
Tenha sido ou não aberto o Sétimo, se dele se seguiram ou não as sete pragas (entre desastres climáticos, pandêmicos e outros), é o mundo átono e áfono de hoje, muito mais do que aquele altamente supersticioso do ano 2000, que se vê lutando contra o peso e a escuridão da dissolução de uma ordem externa e interna, política e individual, que se aproxima do que na linguagem comum chamamos de apocalipse. No Novo Testamento, na segunda carta de São Paulo aos Tessalonicenses (2,1-11), aparece pela primeira vez uma palavra misteriosa que está destinada a um grande futuro exegético: o katechon, literalmente “aquilo que retém” o mundo de sua dissolução, que o impede de mergulhar na desintegração, que adia o desencadeamento das forças que o destruirão; algo que “retém” o avanço do “homem da iniquidade”, do “filho da perdição”, e daí o apocalipse final, até o Segundo Advento. São Paulo, de acordo com a exegese tradicional dos antigos padres, referia-se ao império romano, de modo que, para todo o mundo antigo, medieval e ainda moderno, o que ia “deter” o mundo da entropia, da anomia do Anticristo e da Besta, era um princípio de legitimidade política identificado com Roma ou com os impérios seus herdeiros: a Segunda Roma, ou seja, Bizâncio, e depois a Terceira Roma, ou seja, Moscou. Ainda hoje, a ideologia da ala mais conservadora da Igreja Ortodoxa Russa vê a Rússia como o katechon e, nesse sentido, deveria ser lida pelo menos algumas vezes a perspectiva de um eventual apocalipse nuclear no caso de seu “cancelamento”.
Vários filósofos do século XX investigaram e repropuseram o katechon na política, em primeiro lugar Carl Schmitt, que o viu identificado, nos anos do pós-guerra, na Europa. Mas, na realidade, se quisermos atualizar essa palavra hoje, para aproximá-la da atualidade, referindo-nos mais a São Paulo do que a Carl Schmitt, podemos dizer que o desaparecimento de Francisco retira o katechon que até agora manteve muitos seres humanos longe do caos, talvez não político, mas certamente psíquico. Porque naquele jesuíta argentino, que amava Borges junto com Inácio de Loyola e o bodhisattva de Assis, ressoava, mais intensa e esperada talvez para os leigos do que para os crentes, uma voz de bom senso que impedia a dissolução da deusa razão.
Como chefe de estado, um estado basicamente teocrático, ele depreciou os extremismos das religiões; como papa rei, desmascarou o rei nu da autocracia disfarçada de democracia. Ele previa a ameaça da degeneração cognitiva e da intoxicação digital trazida pela Big Tech; o egoísmo, o tanto faz, o niilismo; o racismo contra imigrantes, migrantes, os diferentes, os frágeis.
Denunciava, dirigida mais à criação do que ao criador, a crise climática e suas implicações políticas, sociais e econômicas, e incentivava à “conversão ecológica” (em grego metanoia, não no sentido de filiação a um dogma, mas no sentido etimológico de “mudança de forma de pensar”). Ela decretava a intolerância ética da guerra. Em tudo isso, e não apenas na peroração de uma paz perpétua kantiana, paradoxalmente, foi a voz do papa de Roma que relembrou, ao menos em parte, os valores iluministas, lutando contra a credulidade induzida pelos novos obscurantismos, pelo novo ópio dos povos das fake news, pelas censuras das novas santas inquisições laicas. A segurar contra a deflagração da própria cultura, de uma perda total de sentido e de identidade, não apenas o mundo que via em pedaços, mas a psique e o intelecto, igualmente despedaçados pela roda dos tempos, de cada um de seus habitantes.
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