30 Janeiro 2024
"A decisão do Vaticano, que parece escandalosa aos olhos de um filantropismo míope, não é apenas um índice de coerência, mas tem um sabor evangélico que raramente transparece nos comportamentos da Igreja “oficial”. Numa sociedade onde tudo pode ser comprado – até uma consciência limpa – e onde tudo está à venda – até os princípios (naturalmente “para o bem”) – ter renunciado a uma quantia tão substancial é um gesto realmente profético", escreve Giuseppe Savagnone, diretor do Escritório para a Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo, na Itália, em artigo publicado por Tuttavia.eu e reproduzido por Settimana News, 26-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos últimos dias, apareceu em todos os jornais a notícia de que a Leonardo - antiga Finmeccanica, gigante controlada pelo Estado, está entre os principais produtores mundiais de sistemas de defesa militar, cujo maior acionista é o Ministério da Economia com 30% das ações – antes do Natal tinha proposto ao hospital pediátrico “Bambino Gesù” de Roma uma doação de um milhão e meio de euros, destinada à compra de equipamentos para tratar meninos e meninas que sofrem de doenças raras, e que a direção do hospital a recusou.
Na origem dessa decisão, que à primeira vista é surpreendente, estaria a “sugestão” do Vaticano, que é o proprietário do “Bambino Gesù”. Entende-se o motivo. Um dos pontos em que o Papa Francisco tem insistido nos últimos anos é a convicção de que “por trás das guerras está o comércio de armas”. Aceitar essa doação de um grupo industrial protagonista desse negócio teria esvaziado de sentido a denúncia.
Especialmente num momento como o que vivemos, em que se travam guerras sangrentas tanto na Europa como no Oriente Próximo, com milhares de vítimas civis - incluindo mulheres e crianças - graças ao uso massivo de armamentos cada vez mais sofisticados e mortíferos.
A Leonardo manifestou assombro pela decisão do Vaticano: “Em todos os teatros de guerra em curso, a começar pela Ucrânia e pelo Oriente Médio, não existe nenhum sistema ofensivo de nossa produção (...). Não entendemos a recusa".
Um assombro que se transformou em duras críticas nas redes sociais e em alguns meios de informação online, segundo os quais foi absurdo que o “Bambino Gesù” renunciasse a um financiamento que poderia contribuir para curar e talvez salvar muitas crianças.
Na realidade, o caso ainda é parcialmente obscuro, devido a uma série de desmentiras cruzadas que se seguiram. Entretanto, as afirmações do grupo industrial foram desmentidas pelo "The Weapon Watch", um observatório sobre as armas nos portos europeus e mediterrâneos, segundo o qual - como revelam claramente os vídeos oficiais - dos bombardeios indiscriminados de Israel na Faixa de Gaza participaram as corvetas “Ins Magen” e “Ins Oz”, as maiores e mais modernas unidades navais da Marinha de Israel, com canhões navais super-rápidos Oto Melara 76/62 Multi-Feeding de 76 mm, construídos nas fábricas Leonardo em La Spezia e entregues à Marinha militar de Israel, na base naval de Haifa, em 13 de setembro de 2022, com a correspondente cerimônia.
À luz dessas novas notícias, a decisão do Vaticano, que parece escandalosa aos olhos de um filantropismo míope, não é apenas um índice de coerência, mas tem um sabor evangélico que raramente transparece nos comportamentos da Igreja “oficial”. Numa sociedade onde tudo pode ser comprado – até uma consciência limpa – e onde tudo está à venda – até os princípios (naturalmente “para o bem”) – ter renunciado a uma quantia tão substancial é um gesto realmente profético.
É verdade, muito bem poderia ter sido feito com aquele dinheiro. Mas a que preço? Aceitá-lo significaria deixar claro que todos os apelos e todas as denúncias não mudam nada, diante da possibilidade concreta de tirar vantagens do sistema que se critica. Muitas crianças provavelmente teriam sido salvas, mas ao custo de endossar a morte de muitas, muitas outras.
Não se trata apenas das crianças de Gaza. A batalha moral do Papa Francisco contra a produção e o comércio de armas tem uma dimensão que vai muito além do conflito palestino. Chama a nossa atenção para o fato, muitas vezes subestimado, de que a Igreja Católica é - desde o final do século XX - a única voz que se opõe de forma coerente e radical ao uso de armas para resolver os conflitos.
“Nunca mais a guerra!”, já tinha dito Paulo VI no dia 4 de outubro de 1965, na sua primeira visita às Nações Unidas. E o mesmo grito foi retomado por João Paulo II em 16 de março de 2003, às vésperas do conflito desencadeado pelo Presidente estadunidense George Bush filho contra o Iraque, com base - como hoje reconhecem todos os historiadores - em grosseiras mentiras (a alegada responsabilidade do governo de Bagdá nos atentados contra as torres gêmeas e a suposta ameaça de "armas de destruição em massa").
Ainda hoje soam com terrível realismo as palavras proferidas pelo Papa Wojtyla na época para tentar parar a intervenção das forças aliadas lideradas pelos Estados Unidos, com as quais o pontífice alertava, já então, sobre as “tremendas consequências que uma operação militar internacional teria para as populações do Iraque e para o equilíbrio de toda a região do Oriente Médio, já tão provada, bem como para os extremismos que disso poderiam derivar".
Tudo isso prontamente se realizou. A fulminante vitória militar no campo, anunciada triunfantemente pelos estadunidenses com o grito de “Missão cumprida”, foi na realidade seguida por uma desestabilização total de toda a área, por massacres de civis e pelo enorme fortalecimento das organizações extremistas e terroristas, como o ISIS, criando problemas gravíssimos também para os Estados Unidos, incapazes de controlar o desastre que, com o seu “sucesso”, haviam determinado.
Hoje, o Papa Francisco, num contexto internacional que vê desencadear-se uma “terceira guerra mundial em pedaços”, como ele a definiu, prossegue corajosamente na linha dos seus antecessores.
Já fez isso por ocasião da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Sem de forma alguma desconhecer as gravíssimas responsabilidades de Putin e os direitos do país agredido, o pontífice não se alinhou com a posição da OTAN, destinada apenas isolar a Rússia e derrotá-la militarmente no campo. Atraindo duras críticas, como a que lhe foi dirigida em agosto de 2023 pelo governo ucraniano por um discurso dirigido aos jovens russos, no qual os convidava a não esquecerem a sua grande herança cultural e espiritual.
Palavras incompatíveis com uma linha internacional que levou todo o mundo ocidental a demonizar o povo russo como tal, a ponto de cancelar as obras de autores russos dos programas teatrais e excluir de todas as competições desportivas internacionais - mesmo das Paraolimpíadas de Pequim! – não só os representantes oficiais daquele país, mas os atletas que só tivessem nascido na Rússia.
Na realidade, mais uma vez, a convicção de resolver o conflito com as armas revelou-se vã, confirmando o realismo do apelo do Papa para buscar outros caminhos.
E o mesmo está acontecendo na guerra que começou após o feroz ataque do Hamas contra Israel e conduzida com igual crueldade pelo Estado judeu, na confiança declarada de poder resolver os seus problemas de segurança apostando na sua enorme superioridade militar. Com resultados que, na realidade, são infrutíferos e até contraproducentes também no que diz respeito aos objetivos declarados - erradicar o Hamas e libertar os reféns -, mas que na realidade serão ainda mais desastrosos a longo prazo, tanto devido ao isolamento internacional em que Israel está se restringindo, quanto pelo previsível ressentimento dos palestinos, que alimentará outras e mais atrozes violências contra ele.
Francisco, em linha com os pontífices que o antecederam, também neste caso não se cansa de denunciar esta verdade: “A guerra é uma derrota, sempre!”, repetida também em relação à de Gaza. Mais uma vez atraindo incompreensões e acusações, como as do Conselho da Assembleia dos Rabinos da Itália e do American Jewish Commetee - uma das organizações judaicas mais antigas do mundo - por ter usado o termo "terrorismo" ao falar das bombas sobre os civis da Faixa, sem fazer qualquer distinção – denunciava o comunicado do American Jewish Commetee – entre os atos de “violência intencional” de 7 de outubro por parte do Hamas e as vítimas involuntárias que infelizmente acontecem numa “guerra justa”.
Evidentemente para o Papa uma guerra que já causou “involuntariamente” 24.000 mortes, na grande maioria homens, mulheres e crianças inocentes, não pode ser “justa”. Uma ideia, aliás, que foi compartilhada por milhões de pessoas que, em todo o mundo ocidental, se manifestaram nos últimos meses contra o sistemático massacre de civis em Gaza, mas que não foi compartilhada pela maioria dos respectivos governos, mais uma vez deixando a posição da Igreja em total isolamento.
Embora, nos últimos tempos, até mesmo o aliado mais fiel de Israel, os Estados Unidos, certamente não suspeitos de antissemitismo, tenha começado a mostrar as suas crescentes perplexidades pelos métodos usados pelo exército israelense e a dizer claramente que as bombas não poderão produzir paz. Confirmando que a posição do Papa, acusada de ser utópica e de favorecer os terroristas, é também neste caso - como em muitos anteriores - muito mais realista do que a dos seus acusadores.
Os profetas raramente são ouvidos. E geralmente pagaram pessoalmente pela coragem que tiveram ao se desviarem das posições dos poderosos. Jesus de Nazaré acabou até na cruz. Não é de surpreender que algo semelhante possa acontecer com o seu vigário. Talvez seja precisamente essa solidão de Francisco – ele foi até acusado de antissemitismo! – a melhor garantia da fidelidade à sua missão. Sua voz provavelmente continuará a ressoar no deserto. Mas é isso que a torna anúncio de esperança num mundo diferente.
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Uma voz no deserto: Francisco e a guerra. Artigo de Giuseppe Savagnone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU