05 Mai 2023
"Nessa lógica, a única paz possível é aquela que pode ser alcançada derrotando o exército russo. Portanto, a inesgotável atividade diplomática de Zelensky concentrou-se exclusivamente na solicitação de armas cada vez mais sofisticadas para atacar os invasores", escreve Giuseppe Savagnone, responsável pelo site da Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo, em artigo publicado por Tuttavia, 28-04-2023.
O tão esperado telefonema do presidente chinês, Xi Jinping, para seu colega ucraniano, Zelensky, trouxe à tona o problema não resolvido das perspectivas de paz na guerra que assola o coração da Europa há mais de um ano. Uma guerra que, apesar do passar do tempo, não se aproximou nem um passo de uma solução razoável, pelo contrário, parece ter-se afastado cada vez mais dela. Vamos tentar entender o porquê.
Segundo a leitura amplamente dominante – na Itália, como aliás em todos os países membros da OTAN – a causa de tudo é a agressão gratuita da Rússia, que se inscreve, aliás, num plano imperialista mais amplo do ditador russo Putin, visando a reconstituição das fronteiras da antiga União Soviética. O golpe com que Moscou tomou a Crimeia em 2014 já havia sido um primeiro passo nesse plano. Mesmo assim, foi um erro da comunidade internacional não reagir a esta ocupação ilegal. Desistir agora também da invasão de Donbass significaria repetir o erro cometido pelas democracias ocidentais em 1938, na conferência de Munique, diante da escalada de Hitler.
Esta representação foi também reforçada pelos gravíssimos crimes contra a humanidade perpetrados pelos invasores: torturas e massacres (Bucha e várias valas comuns), deportação de mais de mil crianças ucranianas para a Rússia, ataques indiscriminados a alvos não militares). Daí a necessidade de isolar a Rússia tanto com uma série de sanções econômicas, como suspendendo-a de todos os organismos internacionais, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU, quanto excluindo seus atletas de qualquer competição esportiva e até mesmo suspendendo a programação em teatros de obras de autores russos. O último ato coerente e inevitável dessa linha foi o mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional de Haia contra Putin.
Nessa lógica, a única paz possível é aquela que pode ser alcançada derrotando o exército russo. Portanto, a inesgotável atividade diplomática de Zelensky concentrou-se exclusivamente na solicitação de armas cada vez mais sofisticadas para atacar os invasores. Em vez da palavra "paz" em seus discursos, a palavra "vitória" estava sempre em primeiro plano. O primeiro objetivo, de fato, só pode ser o resultado da conquista do segundo.
A tese da minoria, defendida entre outros pelo historiador Franco Cardini, vê as coisas de maneira oposta. Apesar das aparências, foi precisamente a Rússia que foi atacada, forçada à guerra quer pelo cerco conseguido nos últimos anos – em violação de promessas explícitas dos Estados Unidos – com a extensão do incêndio florestal da NATO, quer pelos contínuos ataques contra as populações de etnia russa de Donbass pelo batalhão Azov e outras facções pró-nazistas do exército ucraniano.
Para proteger essas populações, foram assinados em 2014 os acordos de Minsk, que previam, além do cessar-fogo entre separatistas e sindicalistas, uma emenda constitucional da Ucrânia que garantiria a autodeterminação administrativa e linguística das regiões étnicas russas de Donetsk e Lugansk, mas o governo ucraniano as violou sistematicamente, ao não realizar a prometida revisão constitucional e ao proibir a língua russa. E é neste quadro, ainda em 2014, que se dá a suposta ocupação da Crimeia por Putin, que na realidade foi um ato de autodeterminação do povo desta região, principalmente russos étnicos.
A política intolerante e nacionalista do governo ucraniano também foi realizada com o apoio do Ocidente e sobretudo dos Estados Unidos, que nos últimos anos armaram e treinaram o exército ucraniano em vista do previsível confronto com a Rússia. Uma proximidade que levou a Ucrânia a pedir também para aderir à OTAN, mesmo que o pedido tenha sido temporariamente rejeitado.
Diante desse quadro, Putin foi forçado a escolher entre a aquiescência humilhante – arriscando-se até a ser deslegitimado aos olhos de seus partidários – e fazer um ato de força.
Daí a eclosão do que na verdade se configura como uma guerra por procuração "até o último ucraniano" contra a Rússia, com o objetivo de bloquear sua aproximação com a Europa, temida pelos Estados Unidos, rompendo os laços econômicos cada vez mais estreitos que os uniam, para isolá-lo internacionalmente e enfraquecê-lo militar e economicamente.
A paz, portanto, requer a interrupção do fornecimento de armas ao exército ucraniano, uma suspensão imediata das hostilidades e a aceitação de Zelensky das demandas apenas russas sobre a Crimeia e Donbass, bem como o compromisso da Ucrânia de não ingressar na OTAN e se tornar um estado neutro.
Ambas as versões contêm uma alma de verdade, mas são falsas em geral. Vejamos porquê, começando pela versão minoritária. Pintar Putin como vítima de uma armadilha vai contra a clara intenção do ditador de buscar uma política de poder que leve à reconstituição do recém-dissolvido império soviético.
Sua declaração após a invasão foi significativa: "Jamais renunciarei à convicção de que os russos e os ucranianos são um só povo". Daí também a recusa em chamar a guerra atual de "guerra" – uma guerra é travada entre dois povos – e o uso da expressão "operação especial".
Mas é realmente assim? A tenaz resistência do povo ucraniano desmente isso. Além disso, Putin esconde o fato de que, entre 1929 e 1932, a população ucraniana foi submetida por Stalin a uma política de coletivização forçada da terra, que causou a morte por fome de quase três milhões de pessoas, o chamado Holodomor, de holod (fome, fome) e moryty, (matar para morrer de fome). A violência destrutiva com que os russos estão travando esta guerra lembra aquela tragédia. E o mundo não poderia assistir passivamente a esse cenário.
A esta altura, o pacifismo que resulta da posição de quem ignora tudo isto é muito diferente da real necessidade de paz. Agostinho definiu a paz como a "tranquilidade da ordem". Onde "ordem" antes de tudo implica liberdade e justiça. Sem eles, ela se reduziria àquela expressa na célebre frase do ministro francês Sebastiani, em 1831, após a implacável repressão russa à revolta polonesa: "A ordem reina em Varsóvia".
Mas também a força da tese tida como certa por muitos reside em ter isolado os fatos do presente com um feixe de luz, deixando nas sombras a história em que se enquadram e que é decisiva para compreendê-los. No início está a crise da União Soviética, no final dos anos oitenta do século passado, com a emblemática queda do muro de Berlim. Na cúpula de Malta em 2 e 3 de dezembro de 1989, George Bush pai assegurou a Mikhail Gorbachev que, em troca de uma retirada pacífica da Rússia, a coalizão não estenderia sua presença "nem um centímetro a leste das fronteiras da Alemanha reunificada".
Foi apenas um acordo verbal. Mas sua existência é confirmada pelo testemunho do então embaixador dos Estados Unidos em Moscou, Jack Foust Matlock, em entrevista ao Corriere della Sera em 15 de julho de 2007: "Quando ocorreu a reunificação alemã, prometemos ao líder soviético Gorbachev – eu estava presente – que se a nova Alemanha tivesse aderido à OTAN, não teríamos alargado a Aliança aos antigos estados satélites da URSS na Europa de Leste. Não cumprimos nossa palavra."
Assim, em 1999, a Polônia, a Hungria e a República Checa tornaram-se membros de pleno direito da OTAN. Em 2004 foi a vez de quatro ex-membros do Pacto de Varsóvia: Romênia, Bulgária, Eslováquia e Eslovênia, além de três ex-repúblicas soviéticas, Letônia, Estônia e Lituânia. Em 2009, Croácia e Albânia aderiram. Em 2017, Montenegro aderiu. Em 2020, Macedônia do Norte.
Basta olhar para o mapa da Europa Oriental para perceber que o que ocorreu é um cerco da Rússia pela América e seus aliados.
Este quadro não poderia deixar de alarmar o Kremlin e suscitar fortes resistências da sua parte face à perspectiva de outra ex república soviética, nomeadamente a Ucrânia, aderir à OTAN. Em dezembro de 2021, Putin encaminhou oficialmente uma proposta de acordo sobre a situação ucraniana ao governo dos Estados Unidos. Sem resposta.
De fato, sobre o Acordo de Malta de 1989, o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, respondeu, cerca de um mês antes da invasão russa, que "ninguém jamais, em qualquer momento, em qualquer lugar, havia feito tais promessas à União Soviética". E a garantia da chanceler alemã de que a entrada da Ucrânia na OTAN não estava na agenda nunca foi igualada por uma garantia semelhante – a única verdadeiramente decisiva – dos Estados Unidos.
Enquanto no caso dos mísseis russos em Cuba em 1962, a Rússia de Khrushchev entendeu a necessidade de dar um passo atrás, a América de Biden não fez nada para tranquilizar o Kremlin. E agora dá a impressão de estar realmente travando uma custosa "guerra por procuração" (estamos falando de 73 bilhões, entre suprimentos militares e apoios econômicos, em comparação com o bilhão a favor dos países do terceiro mundo...). Para felicidade dos mercadores de armas. Afinal, até poucos dias atrás, Stoltenberg sempre reiterava que o lugar da Ucrânia é na OTAN. Exatamente o que é necessário para perpetuar a guerra indefinidamente.
Tanto os ministros das Relações Exteriores da Rússia e da China quanto o presidente dos Estados Unidos falaram sobre o surgimento de "uma nova ordem mundial". Mas não é o da paz. O que parece destinado a caracterizá-la é o fim do diálogo entre as grandes potências que, embora com mil dificuldades e mal-entendidos, marcaram o fim da "guerra fria".
Agora, porém, o mundo parece destinado a ser palco do confronto radical entre dois blocos de potências – China e Rússia de um lado, OTAN do outro – em luta acirrada entre si no plano político e, potencialmente, no militar. nível.
A "nova ordem mundial" corre o risco de ser de ódio e medo. E, aliás, parece que nos preparamos também para esta perspectiva numa Europa cuja incapacidade de ser uma realidade política esta guerra revelou – mas também sancionou – e cujos membros individuais só podem retomar uma frenética corrida armamentista sob a bandeira da OTAN.
Diante desses cenários inquietantes, vêm à mente as palavras do Papa Francisco: “Uma guerra sempre, sempre, é a derrota da humanidade”. Isso definitivamente é.
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Da miragem da paz à falsa ordem criada pela guerra. Artigo de Giuseppe Savagnone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU