17 Janeiro 2023
"É essa visão radicalmente alternativa que faz de Biagio Conte um autêntico revolucionário. Uma revolução espiritual, mas da qual não está ausente uma dimensão política. Que já teve suas manifestações nas lutas realizadas pelo fundador da “Missão de Esperança e Caridade” para vencer a surdez e a indiferença das instituições, mesmo à custa de greves de fome prolongadas e protestos vigorosos. Mas sobretudo ao apontar para um modelo alternativo de sociedade, onde o rosto das pessoas importa mais do que o Produto Interno Bruto e onde a lógica da solidariedade prevalece sobre a da concorrência. A revolução de Biagio Conte começa na alma e nas relações entre as pessoas", escreve Giuseppe Savagnone, diretor do Escritório para a Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo, na Itália, em artigo publicado pelo site da Pastoral da Cultura da diocese de Palermo (Tuttavia), 13-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A morte de Biagio Conte, com apenas 59 anos, teve uma ressonância que vai muito além do círculo de seus colaboradores e apoiadores. A notícia foi retomada pelos jornais nacionais que falaram sobre ele, dando amplo espaço para a reconstrução de sua história.
Irmão Biagio | Foto: Avvenire
O prefeito de Palermo, Roberto Lagalla, emitiu uma portaria decretando luto na cidade e bandeiras a meio mastro. E o Presidente da República, Sergio Mattarella, recordou-o como "um ponto de referência, não só em Palermo, para quem acredita nos valores da solidariedade e na dignidade da pessoa, que testemunhou concretamente, de forma envolvente e heroica".
Um eco tão amplo não era dado como certo. Nessa nossa sociedade de imagem, prestígio social e poder econômico e político, Biagio Conte não ostentava nenhum desses títulos. Ele não era um “influenciador”, não tinha nenhum cargo, nem mesmo eclesiástico, não fazia parte da “casta”.
Desde que fez as suas escolhas de vida, só quis ser o "irmão Biagio", um pobre homem de hábito e bengala, que andava pela Itália e pela Europa, muitas vezes dormindo ao relento, comendo o que por caridade lhe ofereciam, sem fazer discursos memoráveis, simplesmente vivendo a sua pobreza como um testemunho para um mundo rico, que não quer renunciar de nada e não pretende compartilhar o que tem com os necessitados.
Os jornais falaram dele como um homem que dedicou toda a sua vida a favor dos últimos. E é verdade. Em Palermo criou a "Missão de Esperança e Caridade", onde acolheu incondicionalmente pobres, sem-teto, migrantes, ex dependentes químicos, marginalizados. Ao longo dos anos, o projeto expandiu-se com a construção, ao lado da “Missão da Esperança e da Caridade”, de outras realidades: “Cidade da Alegria”, “Cidadela do Pobre e da Esperança” e “Casa de Acolhimento Feminino”.
Hoje, as várias sedes recebem mais de mil pessoas a quem são oferecidas três refeições diárias, assistência médica e, se necessário, roupas limpas. Qualquer um que bate à porta é ouvido e ajudado por uma rede de voluntários que foi criada em torno do fundador.
Irmão Biagio e Papa Francisco | Foto: Reprodução Twitter Vatican News
Mas tudo isso não deve ser confundido com uma simples obra assistencial. Seria, mais uma vez, reduzir Biagio Conte às nossas categorias de eficiência. E não respeitaria outros aspectos fundamentais da sua figura, que certamente não era a do gestor - pode-se ser gestor também prestando assistência -, mas radicava-se numa primorosa vocação espiritual para a pobreza, quase incompreensível num mundo dominado pela a lógica do bem-estar e do consumismo.
Neste sentido, a história do "Irmão Biagio" tem realmente semelhanças com a de Francisco de Assis. Como Francisco, ele também vinha de uma família rica – não de comerciantes, mas de construtores – que o enviara para estudar na Suíça, em um internato particular. Ele depois voltou para Palermo, para continuar seus estudos sempre em uma escola particular, mas abandonou os estudos aos 16 anos, começando cedo a trabalhar na empresa de sua família.
Ele era rico, mas insatisfeito. “Eu me atordoava com carros de luxo, grifes, garotas bonitas e me vestia só de cinza ou preto, minha vida não tinha cores”, diria. Ele tentou dar vazão à sua inquietação concentrando-se na arte. Aos 20 anos decidiu ir morar em Florença perseguindo o sonho de ser pintor ou escultor.
Foram necessários sete anos para perceber que mesmo isso não poderia preencher o vazio que sentia por dentro. Até que descobriu que só Cristo poderia preenchê-lo. Daí a escolha radical de se despojar de todos os seus bens, deixar os pais e duas irmãs mais novas, para abraçar a vida de eremita nas montanhas do interior da Sicília e, posteriormente, fazendo uma viagem a pé até a cidade de Assis.
No verão de 1991 voltou a Palermo com a ideia de partir para uma missão na África, mas, caminhando pelas ruas da cidade, ficou impressionado com o profundo mal-estar social e o estado de pobreza de milhares de seus concidadãos. Decidiu então ficar na Sicília, para fazer da sua opção pela pobreza um dom aos que eram pobres sem a terem escolhido.
Mas o sentido último nunca foi, como em semelhantes instituições de “serviço social”, o da integração pura e simples dos necessitados e marginalizados na sociedade do bem-estar, mas sobretudo o testemunho da partilha e da fraternidade. Não uma rejeição do espírito de pobreza, mas a consciência de que somente quando não é um destino que nos esmaga, ela pode ser valorizada em seu autêntico significado de liberdade interior das coisas.
É essa visão radicalmente alternativa que faz de Biagio Conte um autêntico revolucionário. Uma revolução espiritual, mas da qual não está ausente uma dimensão política. Que já teve suas manifestações nas lutas realizadas pelo fundador da “Missão de Esperança e Caridade” para vencer a surdez e a indiferença das instituições, mesmo à custa de greves de fome prolongadas e protestos vigorosos. Mas sobretudo ao apontar para um modelo alternativo de sociedade, onde o rosto das pessoas importa mais do que o Produto Interno Bruto e onde a lógica da solidariedade prevalece sobre a da concorrência. A revolução de Biagio Conte começa na alma e nas relações entre as pessoas.
É um testemunho sobre o qual a Igreja também faria bem em se questionar. Num tempo em que as igrejas permanecem meio vazias e se percebe cada vez mais a irrelevância da pastoral ordinária na formação das consciências, Biagio Conte tentou restituir atualidade à mensagem cristã com uma forte referência ao Evangelho, saindo dos desgastados quadros de um ritualismo cada vez mais habitudinário e mostrando o que pode realmente significar para um crente a escolha de Deus de vir e compartilhar a história dos homens.
Diante de uma estrutura eclesiástica cada vez mais cheia de rangidos, os cristãos são chamados a reinterpretar criativamente as modalidades de sua presença na sociedade. A experiência de Biagio Conte pode ser um recurso significativo para isso. O arcebispo de Palermo, Corrado Lorefice, destacou isso quando foi leito do enfermo poucos dias antes de sua morte: “Estamos aqui porque Biagio é aquele que se torna a nossa estrela, porque nos conduz ao essencial e ao essencial é este ‘outro’ caminho que devemos percorrer”.
Não se trata de imitar o despojamento de todos os bens com que se concretizou a escolha do "irmão Biagio", como nunca se tratou de imitar as formas exteriores da vida de São Francisco. Mas há mudanças de estilo que se tornaram cada vez mais urgentes. Sobretudo para a Igreja institucional: a imagem do Vaticano, com as suas estruturas burocráticas, as suas intrigas, os seus interesses econômicos nem sempre transparentes, torna-se cada vez mais um obstáculo à escolha da fé de muitos, que ficam escandalizados com isso.
É claro que uma grande comunidade como a eclesial não pode prescindir de uma organização. Mesmo no tempo de Francisco de Assis, a Igreja sempre teve a tarefa de conciliar sua alma carismática e profética com aquela institucional. Mas é certamente um dos "sinais dos tempos" de que falava o Concílio a exigência de repensar esse equilíbrio dando mais escuta às vozes, como a de Biagio Conte, que a chamam de volta à experiência evangélica originária.
No entanto, seria um álibi muito fácil para os crentes descarregar todo o problema nas estruturas eclesiásticas. É urgente uma forte retomada espiritual para restituir aos cristãos - a começar pelos leigos e leigas - o sentido alternativo da sua vocação e torná-los conscientes da sua missão "revolucionária".
A irrelevância do Evangelho em nossa sociedade certamente não depende apenas dos bispos e padres, mas da esquizofrenia de tantos que se dizem cristãos, mas pensam e trabalham inspirados em modelos culturais incompatíveis com este nome. A coerência das testemunhas, na sua radicalidade, é um apelo muito forte a tomar consciência dela.
Na hora de sua morte, Biagio Conte adquire mais do que nunca o valor de um símbolo de tudo isso. Sem outra pretensão senão a de ser um "irmão pobre" de todos os pobres, indica-nos um caminho, difícil porque diferente daqueles a que estamos acostumados, mas que talvez nos possa ajudar também - como o ajudou - a preencher um vazio a que estamos demasiado acostumados.
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Irmão Biagio: a revolução dos santos. Artigo de Giuseppe Savagnone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU