03 Outubro 2022
"É extraordinário o afresco que Bruni confia ao seu Capitalismo meridiano com o qual pretende refutar a representação weberiana de um capitalismo fruto apenas da Reforma Protestante. Existem os franciscanos, os mercadores, os monges. Num fermento de encontros entre pessoas e entre classes e também de formas de isolamento e elaboração cultural para construir um futuro melhor", escreve Alberto Orioli, jornalista e vice-diretor da Il Sole 24 Ore, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 02-10-2022. A tradução de Luisa Rabolini.
Defender que a desapropriação de todas as riquezas e o desapego dos bens terrenos de São Francisco levou, por heterogênese de fins, à forma pré-moderna de capitalismo beira o absurdo. Seria o paradoxo do poverello de Assis.
Mas é exatamente isso que propõe Luigino Bruni, respeitado expoente da economia civil e hoje à frente da patrulha de estudiosos convocada pelo papa a formular uma visão diferente (talvez revolucionária) de "ciência triste". Bruni estuda há anos a ligação que surgiu na Idade Média entre a pregação franciscana, que culminou no nascimento dos Montepios, e uma ideia de nova riqueza baseada na revolução da gratuidade.
Uma interação que teria se desenvolvido por conveniência mútua entre ricos e pobres, nos tempos que levarão ao humanismo: emancipação da necessidade para os últimos, mitigação do sentimento de culpa para os primeiros. Com contas do tipo “Deus lhe pague” como símbolo: abertas para discretas necessidades filantrópicas e de caridade. Mas não só.
Bruni mantém uma atenção especial ao contexto, com o cuidado e a concentração típicos do método utilizado pelos arqueólogos. A revolução franciscana trata os bens, todos os bens, como bens comuns, portanto indivisíveis e inapropriáveis. Proíbe o manuseio do dinheiro e isso permite atribuir às coisas o valor e não o preço.
Essa "apoteose da gratuidade" leva os franciscanos a se tornarem grandes especialistas em estimativas econômicas, de tributação, de dívida pública e de moeda. E talvez o paradoxo de Bruni encontre Bernardino da Feltre como um testemunho de autoridade com o seu “não escolher o mundo, cuidar dele” e com a elaborada teoria sobre taxas de juros justas. Mas sobretudo no legado de Luca Pacioli, o matemático franciscano, amigo de Leonardo da Vinci, inventor da dupla entrada.
Com o nascimento dos Montepios ou dos Montes do Trigo (onde a moeda é o trigo), muda principalmente o paradigma da inveja: de subproduto próprio da competição social entre as classes torna-se cooperação civil. Por interesse mútuo. Uma espécie de milagre nascido sob a égide de "Nossa Senhora pobreza" propiciado pela escolha dos franciscanos de se estabelecer entre as pessoas, nas zonas comerciais (praças) e se contaminar com as pessoas, também graças à ajuda da primeira ordem leiga (a Terceira ordem).
São os lugares dos comerciantes e do mercado nascente: os seguidores do poverello de Assis tornam-se, para aqueles comerciantes, amigos, confessores e "acompanhantes espirituais". Apreendem sua função social, os justos anseios além dos preconceitos, convertendo sua energia e vontade de sucesso em ação social.
Os montepios são criados para atender os pobres em um contexto onde os grandes bancos nascentes davam crédito apenas aos ricos e onde o resto da população acabava nas mãos da usura, muitas vezes prerrogativa dos judeus. E não por acaso, explica Bruni, eles se tornam alvo da própria ação franciscana fortemente antissemita ("que hoje exigiria uma séria purificação da memória daquela época").
É extraordinário o afresco que Bruni confia ao seu Capitalismo meridiano com o qual pretende refutar a representação weberiana de um capitalismo fruto apenas da Reforma Protestante. Existem os franciscanos, os mercadores, os monges. Num fermento de encontros entre pessoas e entre classes e também de formas de isolamento e elaboração cultural para construir um futuro melhor.
BRUNI, Luigino. Capitalismo meridiano: alle radici dello spirito mercantile tra religione eprofitto
202 páginas, € 19,00
Foto: Capa/Divulgação
A Europa da alta Idade Média, explica o autor, divide-se em duas: no norte a ética protestante com os mercadores angustiados pela doutrina da predestinação que só podiam ter esperança no paraíso e na riqueza como sinal de eleição; no sul a economia meridiana, onde os mesmos atores do comércio, de fato, compraram o purgatório, graças a doações com as quais tinham confiança de poder guiar seu próprio destino.
Dando vida a uma forma diferente de economia onde até mesmo podem conviver a usura e a filantropia, o amor pelo dinheiro e o amor pela arte. Uma humanidade lázara e genial cimentada pela ambiguidade e pelo compromisso, num continuum de perfectibilidade, até mesmo moral, que se torna o verdadeiro motor do progresso, inclusive econômico.
"Mestiçagem" é palavra recorrente no livro de Bruni. E não é uma questão de raças, mas de ideias e de crenças. De contaminações entre fundos culturais pagãos e instâncias cristãs: entre os cultos daqueles que estão ligados à terra e seus frutos e aqueles que buscam a dignidade do trabalho e da cultura juntas (o ora et labora, como sinal ético profundo de reconhecimento da dignidade do trabalho que se liberta da servidão da gleba ou da escravidão).
Há os camponeses, aqueles das "orações do último feixe de trigo" entre superstição e fé, entre sobrenatural e doutrina; os mercadores e banqueiros em sua difícil relação comercial, com os franciscanos empenhados em liberar a ideia de lucro mas não a de renda; há os monges, estudiosos e primeira enzima cultural para o nascimento de uma classe burguesa de artes e ofícios. Bruni é lapidário: sem o monasticismo a economia nunca teria nascido mesmo que, é claro, a economia não nasceu apenas graças aos monges.
O autor leva-nos às aldeias laboriosas - a começar pela sua Ascoli Piceno, onde nasceu o mais antigo Montepio da Itália - onde todos esses autores interagem numa mistura pouco explorada que cria verdadeiras condições para a futura Renascença.
E com isso o autor quer demonstrar que a economia não é apenas troca de bens e atribuição de um preço aos objetos, ganho ou perda, nem a redução à mera lógica binária incentivo-desincentivo. É esperança, paixão, sonho (shakespeariano?) e, acima de tudo, desejo. Mais espírito do que matéria. Algo que impõe à economia reconhecer que tem que acertar as contas com algo que subestimou por tempo demais: a religião.
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O capitalismo? Nasceu graças a São Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU