"No início, o Papa Bergoglio tinha uma visão problemática e substancialmente negativa da economia. A economia que mata foi sua primeira frase famosa sobre economia. Hoje Francisco reconhece mais a ambivalência da economia e, portanto, a convivência de luz e de sombra, de trigo e de joio, a ponto de falar da economia do 'bom samaritano' que cresce ao lado da 'economia de Judas'. Um olhar mais positivo que inspira todas as suas mensagens aos jovens da Economia de Francisco, um olhar essencial para cada jovem e para todos; não se curam as patologias da economia que mata sem uma ideia boa da economia que faz viver."
O artigo é de Luigino Bruni, professor do Departamento de Jurisprudência, Economia, Política e Línguas Modernas da Universidade Lumsa, de Roma, publicado por Domani, 16-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Este início do século XXI também será lembrado pelo fim da crítica ao capitalismo, que havia caracterizado boa parte do século XX. O capitalismo tornou-se o ambiente em que vivemos e nos movemos, e estamos tão imersos nele que não temos mais a capacidade cultural de olhar para ele para analisá-lo, criticá-lo; endereçar-lhe os questionamentos fundamentais da equidade, da justiça, da verdade. Mesmo as várias formas de empresas responsáveis, ou a própria economia do setor sem fins lucrativos, são muitas vezes concebidas dentro do sistema capitalista e, para este, são funcionais e cada vez mais essenciais.
Nesta pobreza de pensamento crítico, se compreendem o valor e o significado histórico do discurso do Papa Francisco sobre a economia, que continua sendo um dos poucos lugares onde se pode encontrar uma reflexão crítica sobre o capitalismo.
O Papa Bergoglio escreveu a primeira palavra econômica de seu pontificado na noite de 13 de março de 2013, quando escolheu seu nome. Francisco é muitas mensagens juntas, mas é também uma mensagem para a economia.
A primeira escola de economia da Idade Média floresceu dos franciscanos (Pierre de Jean Olivi, Duns Scotus, Ângelo Clareno), e os primeiros bancos populares europeus nasceram dos franciscanos: os Montes pios, centenas de instituições de crédito nascidas entre 1458 (Ascoli) e o Concílio de Trento. Francisco de Assis não é apenas pobreza, é também riqueza, ainda que vista na perspectiva paradoxal e profética do Evangelho. O Papa Francisco imediatamente atribuiu grande importância à economia. Não é por acaso que ele é o primeiro papa que em 2019 lançou um movimento mundial de jovens economistas e empresários, que terá nos dias 22 e 24 de setembro um encontro presencial em Assis muito importante. Vamos relembrar as três etapas essenciais da Economia de Francisco.
Uma nota de esclarecimento. No início, o Papa Bergoglio tinha uma visão problemática e substancialmente negativa da economia. A economia que mata foi sua primeira frase famosa sobre economia. Hoje Francisco reconhece mais a ambivalência da economia e, portanto, a convivência de luz e de sombra, de trigo e de joio, a ponto de falar da economia do "bom samaritano" que cresce ao lado da "economia de Judas" (discurso à Confindustria de 12 de setembro de 2022). Um olhar mais positivo que inspira todas as suas mensagens aos jovens da Economia de Francisco, um olhar essencial para cada jovem e para todos; não se curam as patologias da economia que mata sem uma ideia boa da economia que faz viver.
Após sua eleição, escreveu a Evangelii Gaudium, o primeiro documento teológico de Francisco, uma espécie de mapa de seu pontificado que dizia respeito diretamente à economia. Uma exortação que contém um forte convite para mudar de direção na vida econômica. Uma postura muito dura em relação ao capitalismo atual, e por isso tentou-se enfraquecer seu alcance: "A EG deve ser lida através do olhar daquele professor-bispo-papa que nasceu e cresceu na Argentina" (Michael Novak no Corriere della Sera).
O Papa Francisco lê o capitalismo do século XXI como uma economia da exclusão: “Hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade. Esta economia mata”. É forte, na verdade, a tendência geral de transformar os bens comuns em bens de clube, onde a diferença entre os dois está justamente na exclusão. Os bens comuns - da terra à água - são tais precisamente porque não podem ser excluídos a ninguém, porque são bens de todos. A crescente cultura da privatização, por outro lado, não faz nada além de tirar os bens comuns das pessoas, especialmente dos mais pobres, que deveriam ter pelo menos os bens comuns, já que não conseguem ter muitos bens privados essenciais: a privatização dos bens comuns penaliza cada vez mais os pobres.
Um ponto importante da Evangelii Gaudium é a crítica à ideia fundamental dos efeitos não intencionais do mercado, conhecida de Adam Smith em diante como a teoria da “mão invisível”. A grande tradição clássica do bem comum, a de Aristóteles, Tomás, dos franciscanos até Genovesi ou Toniolo, nunca pensou no bem comum como uma questão principalmente de efeitos positivos não intencionais de ações individuais em busca de seu próprio interesse; em vez disso, associou-o às virtudes privadas e públicas e, portanto, às boas intenções. A ideia do mercado que nasce dessa tradição clássica, da qual Francisco é o intérprete e continuador criativo, é o de uma grande cooperação intencional, um exercício de virtudes sociais, uma questão comunitária e personalista: "A palavra ‘solidariedade’ está um pouco desgastada e às vezes é mal interpretada, mas indica muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade". Por isso, “não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado”.
Uma tese central da Evangelii Gaudium emerge dos primeiros parágrafos do documento: "O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada”. O consumo é o grande protagonista da nossa época. A prevalência do consumo sobre o trabalho não é um fato inédito da nossa civilização, pois é comum a todas as civilizações decadentes. As culturas dos séculos XIX e XX, por exemplo, não foram culturas de consumo, mas culturas do trabalho, da terra e da poupança. O boom dos consumos do pós-guerra de muitos países europeus produziu milagres econômicos e civis porque era um consumo que nascia do trabalho e de seu típico bom esforço.
A época atual, por outro lado, entronizou o consumo como seu novo soberano. O verdadeiro trabalho das pessoas saiu de cena, e a produção de bens e mercadorias está cada vez mais eclipsada, distante, invisível: “Os mecanismos da economia atual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social”. A Evangelii Gaudium, por outro lado, recorda a prioridade do trabalho, um trabalho que é tema dominante destes dez anos de pontificado: “No trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum”.
A história da Europa (especialmente a do sul) nos mostra que, quando nas cidades essas competições posicionais por meio dos bens cresceram além de um "ponto crítico", começava o seu declínio, primeiro produtivo, depois social e político.
O Papa Francisco denuncia este risco: “A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo”.
Finalmente, uma mensagem forte para a economia: o tempo é superior ao espaço. Nosso sistema de desenvolvimento e crescimento está todo voltado para o aqui e agora, e assim corre o risco de se romper o vínculo que une as gerações entre si. Dar prioridade ao tempo significaria, hoje, usar os recursos não renováveis da terra sabendo que os herdamos de nossos pais e que devemos legá-los aos nossos filhos. Colocar o tempo de volta no centro significa então julgar as escolhas de política econômica da perspectiva de uma criança que agora está nascendo em uma aldeia africana ou asiática.
A Laudato si' é a encíclica do Papa Francisco que teve o maior impacto na opinião pública mundial. Em sua essência é um grande discurso concreto de bem comum. Hoje, especialmente no Ocidente, deixamos de ver a questão ética do mundo precisamente porque nos falta a grande categoria do bem comum - e, portanto, também a categoria intimamente relacionada dos bens comuns, relegada às últimas páginas dos manuais de economia, ainda totalmente centrada nos bens privados - a grande ausente da nossa civilização dos consumos e das finanças.
No entanto, a nossa época conheceu e ainda conhece em sua própria carne quais são os males comuns: guerras mundiais, perigo atômico, pandemias, terrorismo globalizado. Aprendemos o que significa ser um corpo também quando as bombas caíam e ainda caem nas casas dos ricos e naquelas dos pobres, quando a massa suicida homicida matava diretores e trabalhadores, quando a peste (e o vírus) atingia Griso, Frei Cristóvão e Dom Rodrigo. Mas da experiência do mal comum não aprendemos a sabedoria do bem comum.
O grande tema que inspira toda a estrutura da encíclica é a relação entre o homem e a terra, lido como uma relação de reciprocidade com igual dignidade, reciprocidade entre seres humanos e reciprocidade entre nós e a terra. Apenas uma é a proteção: proteção do outro homem (Caim: "Acaso sou eu o protetor do meu irmão?"), e proteção da terra. Onde não há proteção, o fratricídio toma o lugar da fraternidade e a terra é manchada de sangue. E é por isso que a "ecologia integral" de que fala a Laudato si' só pode nascer de um "humanismo integral". Alguns comentadores, que se definem amantes do livre mercado - sem explicar o que querem dizer nem com "mercado" nem com "livre" -, escreveram e escrevem que o Papa Francisco é contra o mercado e contra a liberdade econômica e, portanto, antimoderno e talvez marxista. Na realidade, se lermos o texto sem as lentes da ideologia, encontramos coisas muito importantes sobre o mercado e a economia. Francisco nos lembra que o mercado e a empresa são aliados preciosos do bem comum se não se tornarem um todo. O mercado e uma dimensão da boa vida social, essencial hoje a todo bem comum. Mas as palavras das economias não são as únicas nem as primeiras.
Um terceiro lugar onde olhar para entender a economia de Francisco é a Fratelli tutti (2020). A Fratelli tutti confia o fundamento bíblico de seu discurso quase exclusivamente à parábola do Bom Samaritano do Evangelho de Lucas. Uma escolha importante e forte, que logo esclarece que a fraternidade de Francisco é fraternidade universal centrada na vítima.
Francisco opta por olhar o mundo ao lado das vítimas, e a partir daí o ama e julga, desde a primeira viagem que quis fazer a Lampedusa. Mesmo à custa de negligenciar outras dimensões fundadoras da fraternidade, como a reciprocidade. A parábola não fala de irmãos de sangue, nunca menciona a palavra fraternidade para nos revelar a proximidade. “Quem é o meu próximo?” é a pergunta do escriba que gera uma das aberturas mais estupendas de toda a literatura: “Um homem descia de Jerusalém a Jericó...”. A alma desse relato está no contraste entre proximidade e vizinhança: quem se debruça sobre a vítima e se torna seu próximo, o samaritano, é o menos próximo da vítima entre os transeuntes daquela estrada, porque não é judeu e pertence a um povo excomungado. O levita e o sacerdote, aqueles que naquele mundo eram os encarregados do cuidado e da assistência, eram muito mais vizinhos daquela vítima e mesmo assim passam sem atender. Quem cuida do homem meio morto não o faz porque era seu próximo, mas porque decide se tornar próximo. Irmãos se nasce, próximos se decide sê-lo escolhendo isso. Francisco escreve:
“Esta parábola é um ícone iluminador, capaz de manifestar a opção fundamental que precisamos de tomar para reconstruir este mundo que nos está a peito. Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano... Não há distinção entre habitante da Judeia e habitante da Samaria, não há sacerdote nem comerciante; existem simplesmente dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo”.
O próximo, o irmão e a irmã do Evangelho não são o vizinho. Essa é uma dimensão essencial dessa nova e diferente fraternidade. Neste ponto decisivo de Fratelli tutti, o papa encontra um aliado (escondido) no Prêmio Nobel de Economia, o indiano Amartya Sen, um dos pensadores contemporâneos mais influentes e originais.
Depois de recordar a relação que existe entre as três grandes palavras da democracia moderna - liberdade, igualdade, fraternidade -, Francisco entra diretamente em alguns dos grandes temas da doutrina social da Igreja, de seu pontificado e da economia de hoje.
O primeiro diz respeito à relação entre propriedade privada e destinação universal dos bens. A Igreja sempre lembrou que o direito à propriedade privada dos bens é secundário a um princípio mais fundamental, ou seja, que os bens que possuímos são um dom. No decorrer da história do Ocidente, a propriedade privada cresceu muito no horizonte, a ponto de ser declarada “sagrada”, enquanto a destinação universal dos bens foi progressivamente eclipsada nos ordenamentos jurídicos modernos. É importante que o papa, ao colocar no centro o princípio da fraternidade, coloque ao lado dele o princípio da destinação universal dos bens, porque, enquanto a propriedade privada é o princípio cardeal da liberdade individual, a destinação universal é a pedra angular de um humanismo da fraternidade.
Ligado a esse restabelecimento da prioridade na ordem dos princípios sobre os bens, há o discurso que encontramos na encíclica sobre os empresários: "A atividade dos empresários é uma nobre vocação, orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos".
Se os bens têm um destino universal como vocação primitiva e fundamental, então também os bens da empresa, das finanças e aquele bem particular que se chama talento empreendedor têm uma distinção universal que precede seu uso apenas para o bem-estar individual.
Outro tema clássico e novo de Francisco é a distinção entre povo, popular e populismo.
Francisco aqui é muito crítico contra aqueles líderes que usam o povo para seu próprio sucesso em vez de servir ao povo. Tem palavras muito duras, que estão entre as partes mais fortes e vivas do texto, onde não é difícil reconhecer seu gênero literário típico: “O desprezo pelos vulneráveis pode esconder-se em formas populistas que, demagogicamente, se servem deles para os seus fins, ou em formas liberais ao serviço dos interesses econômicos dos poderosos. Em ambos os casos, é palpável a dificuldade de pensar num mundo aberto onde haja lugar para todos, que inclua os mais frágeis e respeite as diferentes culturas”.
Francisco é muito duro com o populismo porque é um grande amante do povo e quer defendê-lo das manipulações ideológicas: “Os grupos populistas fechados deformam a palavra ‘povo’, porque aquilo de que falam não é um verdadeiro povo. De fato, a categoria de ‘povo’ é aberta. Um povo vivo, dinâmico e com futuro é aquele que permanece constantemente aberto a novas sínteses, assumindo em si o que é diferente”.
Essa encíclica também marca o fim da doutrina da "guerra justa", que chegava às vésperas da invasão da Ucrânia.
Há anos aguardava-se uma palavra clara e forte sobre essa parte da doutrina cristã que se chocava demais com as palavras sobre a paz de Francisco e de muitos de seus predecessores. E finalmente chegou: “Hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível ‘guerra justa’. Nunca mais a guerra!” E numa nota acrescenta: “Santo Agostinho, que elaborou uma ideia da ‘guerra justa’ que hoje já não defendemos”. É preciso a força profética de um papa profeta para questionar até mesmo Santo Agostinho.
Termino com as últimas palavras que o Papa Francisco dirigiu à Confindustria, que resume muitas de suas ideias sobre a economia: "O bom samaritano podia ser um mercador: é ele que acode a vítima, cuida dela e depois a confia a outro comerciante, um hoteleiro. Dentro de uma das parábolas mais altas do Evangelho encontramos, portanto, dois mercadores. E esta deve ser uma mensagem maravilhosa para todos vocês. As 'duas moedas' que o samaritano antecipa ao hoteleiro são muito importantes: no Evangelho não há apenas as trinta moedas de Judas. Para nos dizer que dinheiro, o mesmo dinheiro, pode ser usado, ontem e hoje, para trair e vender um amigo ou para salvar uma vítima. Vemos isso todos os dias, quando as moedas de Judas e aquelas do samaritano convivem nos mesmos mercados, nas mesmas bolsas de valores, nas mesmas praças. A economia cresce e se torna humana quando as moedas dos samaritanos se tornam mais numerosas que aquelas de Judas”.