"Muitos são levados a sentir apenas necessidades materiais, não a falta de Deus. E nós certamente nos preocupamos com isso, mas quanto realmente nos ocupamos disso? É fácil julgar quem não crê, é cômodo elencar os motivos da secularização, do relativismo e de tantos outros “ismos”, mas no fundo é estéril", afirma o Papa Francisco na homilia da concelebração eucarística com os participantes da Assembleia Plenária do Conselho das Conferências Episcopais Europeias (CCEE), nessa quinta-feira, 23, na Basílica de São Pedro, no Vaticano.
A homilia foi publicada no sítio da Santa Sé, 23-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o papa, "a Palavra de Deus nos leva a refletir sobre nós mesmos: sentimos afeto e compaixão por quem não teve a alegria de encontrar Jesus ou a perdeu? Estamos tranquilos porque, no fundo, não nos falta nada para viver ou estamos inquietos ao ver tantos irmãos e irmãs distantes da alegria de Jesus?"
"Encorajemo-nos, sem nunca ceder ao desânimo e à resignação - anima o Papa - : somos chamados pelo Senhor a uma obra esplêndida, a trabalhar para que a sua casa seja cada vez mais acolhedora, para que cada um possa nela entrar e habitar, para que a Igreja tenha as portas abertas para todos e ninguém tenha a tentação de se concentrar apenas em olhar e mudar as fechaduras. As pequenas coisas requintadas... E nós somos tentados. Não, a mudança vai para outro lado, vem das raízes. A reconstrução vai para outro lado".
Há três verbos que a Palavra de Deus nos oferece hoje e que nos interpelam como cristãos e pastores na Europa: refletir, reconstruir, ver.
Refletir é o que o Senhor convida a fazer acima de tudo por meio do profeta Ageu: “Reflitam bem sobre o comportamento de vocês”. Ele diz isso duas vezes ao povo (Ag 1,5.7). Sobre quais aspectos do próprio comportamento o povo de Deus devia refletir?
Escutemos o que diz o Senhor: “Acaso para vocês é tempo de habitar tranquilamente em casas revestidas de lambris, enquanto esta casa ainda está em ruínas?” (v. 4). O povo, tendo voltado do exílio, havia se preocupado em reorganizar as suas casas. E agora ele se contenta em ficar cômodo e tranquilo em casa, enquanto o templo de Deus está em ruínas, e ninguém o reedifica.
Esse convite a refletir nos interpela: de fato, também hoje na Europa nós, cristãos, temos a tentação de ficar cômodos nas nossas estruturas, nas nossas casas e nas nossas igrejas, nas nossas seguranças dadas pelas tradições, no cumprimento de um certo consenso, enquanto ao redor os templos se esvaziam, e Jesus é cada vez mais esquecido.
Reflitamos: quantas pessoas não têm mais fome e sede de Deus! Não porque sejam más, não, mas porque lhes falta quem desperte nelas o apetite de fé e reacenda aquela sede que há no coração do ser humano: aquela “concriada e perpétua sede” de que fala Dante (Paraíso II,19) e que a ditadura do consumismo, ditadura leve mas sufocante, tenta extinguir.
Muitos são levados a sentir apenas necessidades materiais, não a falta de Deus. E nós certamente nos preocupamos com isso, mas quanto realmente nos ocupamos disso? É fácil julgar quem não crê, é cômodo elencar os motivos da secularização, do relativismo e de tantos outros “ismos”, mas no fundo é estéril.
A Palavra de Deus nos leva a refletir sobre nós mesmos: sentimos afeto e compaixão por quem não teve a alegria de encontrar Jesus ou a perdeu? Estamos tranquilos porque, no fundo, não nos falta nada para viver ou estamos inquietos ao ver tantos irmãos e irmãs distantes da alegria de Jesus?
Sobre outra coisa, o Senhor, por meio do profeta Ageu, pede que o seu povo reflita. Ele diz assim: “Vocês têm se alimentado, mas não se sentem satisfeitos; têm bebido, mas não ficaram embriagados; têm vestido roupa, mas não se aqueceram” (v. 6).
O povo, em suma, tinha o que queria e não era feliz. O que lhe faltava? Jesus no-lo sugere, com palavras que parecem reforçar as de Ageu: “Eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; [...] eu estava nu, e não me vestiram” (Mt 25,42-43). A falta de caridade causa infelicidade, porque só o amor sacia o coração. Só o amor sacia o coração. Fechados no interesse pelas próprias coisas, os habitantes de Jerusalém perderam o sabor da gratuidade.
Esse pode ser também o nosso problema: concentrar-se nas várias posições da Igreja, nos debates, agendas e estratégias, e perder de vista o verdadeiro programa, o do Evangelho: o impulso da caridade, o ardor da gratuidade. A saída dos problemas e dos fechamentos é sempre a do dom gratuito. Não há outro. Reflitamos sobre isso.
E, depois de refletir, há a segunda passagem: reconstruir. “Reconstruam a minha casa”, pede Deus por meio do profeta (Ag 1,8). E o povo reconstrói o templo. Deixa de se contentar com um presente tranquilo e trabalha pelo futuro. E, como havia gente que era contrária a isso, o Livro das Crônicas nos diz que trabalhavam com uma mão nas pedras, para construir, e a outra na espada, para defender esse processo de reconstrução. Não foi fácil reconstruir o templo.
É disso que precisa a construção da casa comum europeia: de deixar as conveniências do imediato para voltar à visão clarividente dos pais fundadores, uma visão – ousaria a dizer – profética e de conjunto, porque eles não buscavam os consensos do momento, mas sonhavam com o futuro de todos.
Assim foram construídos os muros da casa europeia e só assim poderão ser reforçados. Isso também vale para a Igreja, casa de Deus. Para torná-la bela e hospitaleira, é preciso olhar juntos para o futuro, não restaurar o passado.
Infelizmente, está na moda aquele “restauracionismo” do passado que nos mata, mata a todos nós. Certamente, devemos recomeçar a partir dos fundamentos, das raízes – isso, sim, é verdade –, porque a partir daí é que se reconstrói: a partir da tradição viva da Igreja, que nos fundamenta no essencial, no bom anúncio, na proximidade e no testemunho. A partir daí é que se reconstrói, a partir dos fundamentos da Igreja das origens e de sempre, da adoração a Deus e do amor ao próximo, não dos próprios gostos particulares, não dos pactos e negociações que podemos fazer agora, digamos, para defender a Igreja ou defender a cristandade.
Caros irmãos, gostaria de lhes agradecer por esse trabalho nada fácil de reconstrução, que vocês levam em frente com a graça de Deus. Obrigado por esses primeiros 50 anos a serviço da Igreja e da Europa. Encorajemo-nos, sem nunca ceder ao desânimo e à resignação: somos chamados pelo Senhor a uma obra esplêndida, a trabalhar para que a sua casa seja cada vez mais acolhedora, para que cada um possa nela entrar e habitar, para que a Igreja tenha as portas abertas para todos e ninguém tenha a tentação de se concentrar apenas em olhar e mudar as fechaduras. As pequenas coisas requintadas... E nós somos tentados. Não, a mudança vai para outro lado, vem das raízes. A reconstrução vai para outro lado.
O povo de Israel reconstruiu o templo com as suas próprias mãos. Os grandes reconstrutores da fé do continente fizeram o mesmo – pensemos nos Patronos. Puseram em jogo a sua pequenez, confiando em Deus. Eu penso nos Santos, como Martinho, Francisco, Domingos, Pio, que recordamos hoje; em patronos como Bento, Cirilo e Metódio, Brígida, Catarina de Sena, Teresa Benedita da Cruz. Eles começaram a partir de si mesmos, mudando a própria vida acolhendo a graça de Deus. Não se preocuparam com tempos escuros, com as adversidades e com algumas divisões, que sempre existiram. Eles não perderam tempo em criticar e culpabilizar. Viveram o Evangelho, sem se preocuparem com a relevância e a política. Assim, com a força mansa do amor de Deus, encarnaram o seu estilo de proximidade, de compaixão e de ternura – o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura –; e construíram mosteiros, limparam terras, devolveram a alma a pessoas e países: nenhum programa “social” entre aspas, apenas o Evangelho. E com o Evangelho foram em frente.
“Reconstruam a minha casa.” O verbo é conjugado no plural. Toda reconstrução ocorre juntos, sob o signo da unidade. Com os outros. Pode haver visões diferentes, mas a unidade deve ser sempre preservada. Porque, se preservamos a graça do conjunto, o Senhor constrói também lá onde não conseguimos. A graça do conjunto. É o nosso chamado: ser Igreja, um só Corpo entre nós. É a nossa vocação, como Pastores: reunir o rebanho, não o dispersar nem mesmo preservá-lo em belos recintos fechados. Isso é matá-lo. Reconstruir significa fazer-se artesãos de comunhão, tecelões de unidade em todos os níveis: não por estratégia, mas pelo Evangelho.
Se assim reconstruirmos, daremos a possibilidade aos nossos irmãos e irmãs de ver. É o terceiro verbo, com o qual se conclui o Evangelho de hoje, com Herodes que tentava “ver Jesus” (cf. Lc 9,9). Hoje como então fala-se muito de Jesus. Naqueles tempos, se dizia: “João Batista ressuscitou dos mortos. [...] Elias apareceu; [...] um dos antigos profetas ressuscitou” (Lc 9,7-8). Todos eles apreciavam Jesus, mas não compreendiam a sua novidade e o fechavam em esquemas já vistos: João, Elias, os profetas... Jesus, porém, não pode ser encastelado nos esquemas do “já ouvido” ou do “já visto”. Jesus sempre é novidade, sempre. O encontro com Jesus lhe dá estupor, e se no encontro com Jesus você não sente o estupor, você não encontrou Jesus.
Muitos na Europa pensam que a fé é algo de já visto, que pertence ao passado. Por quê? Porque não viram Jesus em ação nas suas vidas. E, muitas vezes, não o viram porque nós, com as nossas vidas, não o mostramos o suficiente. Porque Deus se vê nos rostos e nos gestos de homens e mulheres transformados pela sua presença. E se os cristãos, em vez de irradiarem a alegria contagiante do Evangelho, voltam a propor esquemas religiosos desgastados, intelectualistas e moralistas, as pessoas não veem o Bom Pastor. Não reconhecem Aquele que, apaixonado por cada uma das suas ovelhas, a chama pelo nome e a procura para colocá-la sobre os ombros. Não veem Aquele cuja incrível Paixão pregamos, precisamente porque Ele tem uma única paixão: o ser humano. Esse amor divino, misericordioso e avassalador é a novidade perene do Evangelho. E pede a nós, caros Irmãos, escolhas sábias e audazes, feitas em nome da ternura louca com que Cristo nos salvou. Não nos pede para demonstrar, pede-nos para mostrar a Deus, como fizeram os Santos: não com palavras, mas com a vida. Pede oração e pobreza, pede criatividade e gratuidade.
Ajudemos a Europa de hoje, doente de cansaço – esta é a doença da Europa de hoje – a reencontrar o rosto sempre jovem de Jesus e da sua esposa. Só podemos dar tudo de nós mesmos para que se veja essa beleza imorredoura.