15 Outubro 2013
A relação entre Francisco de Assis e o lobo pode ser lida como um dos tantos exemplos de "encontro com o Outro".
A opinião é do historiador italiano Franco Cardini, professor do Istituto Italiano di Scienze Umane (Sum). O artigo foi publicado no jornal Avvenire, dos bispos italianos, 10-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Sem dúvida, é deliciosa e comovente aquela "fábula" narrada no capítulo XXI dos Fioretti. Todos a conhecemos mais ou menos, desde a nossa infância: e aos menos jovens entre nós – e eu, infelizmente, estou entre eles... – ela foi contada quase sempre para além de interesses ou de ensinamentos religiosos: como se fosse uma fábula de Perrault, ou dos irmãos Grimm, ou de Andersen.
Os estudiosos de Francisco repetidamente se colocaram o problema do significado desse episódio: raramente prestando-lhe fé como fato "realmente acontecido", mais frequentemente indagando sobre ele como resultado de um "gênero literário", pondo-o em relação com os muitos episódios de encontros entre os santos e os animais (ou as feras) propostos como modelos hagiográficos, às vezes insistindo no seu caráter alegórico ou ético-parenético e, mais recentemente – sob a influência de leituras antropológicas – destacando que a relação entre Francisco e o lobo poderia ser lida como um dos tantos exemplos de "encontro com o Outro".
Em tempos mais recentes ainda, alguns chamaram em causa a etologia, argumentando que, à luz das teses de Lorenz ou de Eibl-Eibesfeldt, a "fábula" do colóquio e da amizade entre homem e lobo, aliás, não é tão inverossímil.
Agora, quem volta ao assunto é um conhecido estudioso de coisas franciscanas, Felice Accrocca, que recapitula toda a questão crítico-textual do episódio em Frate Lupo. Storia e leggenda di un delizioso fioretto francescano [Irmão Lobo. História e lenda de um delicioso fioretto franciscano] (Assis: Porziuncola, 45 páginas): um pequeno livro denso de doutrina, que traça com magistral segurança a história dos encontros entre o Pobre de Assis e as fontes – não apenas franciscanas – precedentes aos Fioretti, mas que também valoriza algumas intensas vozes contemporâneas, como as do padre Primo Mazzolari e do frei Carlo Carretto.
Se Accrocca se atém às fontes, outra estudiosa de coisas franciscanas, Chiara Frugoni, desta vez nos surpreende e, eu acrescentaria, quase nos comove. Ela é notoriamente célebre por ter valorizado extraordinariamente o papel das fontes icônicas, promovendo uma leitura filológica delas não menos rigorosa do que as escritas. Mas, no plano das representações pictóricas da época (e ao contrário das modernas), o episódio do lobo não é dos mais felizes. Chiara, então, recorreu a dois instrumentos "não rituais" em termos histórico-filológicos: à ajuda de um esplêndido pintor e cenógrafo de hoje, Felice Feltracco. E ao seu talento de narradora, e de narradora para jovens, já experimentado justamente a propósito de Francisco (além de dois deliciosos escritos de caráter autobiográfico).
Daí nasceu uma fábula: San Francesco e il lupo. Un’altra storia [São Francisco e o lobo. Uma outra história] (Ed. Feltrinelli, 31 páginas). Inesquecíveis cenas de bosques, de noites, de neve, de olhos selvagens que espiam no escuro: e esse é Feltracco. E uma Frugoni ainda mais sóbria do que de costume, seca, quase telegráfica, mas leve e encantada: poderia ser Afanasjesv, ou talvez Chatwin, ou talvez Kipling, ou, melhor ainda, Jack London. Um velho lobo que perdeu o domínio sobre a alcateia e se reduziu a um predador solitário, que ataca alguns apriscos e algumas vezes também o Grande Inimigo, o homem: um pobre frei chamado pelos aterrorizados habitantes de um burgo perdido porque esses lugares estão infestados por um lobo feroz, e ele "sabe falar com as feras". E os companheiros o abandonam, e ele sozinho e amedrontado acaba adormecendo cansado sobre a neve de um descampado de inverno.
A fera vigia, o persegue, está quase em cima dele: mas o cheiro que ele sente o desorienta. Aquele ali, sem dúvida, é um homem: magrinho talvez, mas, sem dúvida, um exemplar daquela maldita raça assassina. E agora, por sua vez, será presa, ele, filho de caçadores impiedosos... Mas não. Aquele não é o cheiro de carne e de sangue. Pode ser um homem sim, mas é outra coisa. O velho lobo, também ele cansado, se estende ao lado do fradinho e o aquece com o seu quente corpo peludo. Desde então, o seguirá sempre, dócil e fiel.
Não lhe dá a pata, como no Fioretto XXI. Mas lhe dá todo o seu amor, todo o seu coração selvagem de fera antiga. Porque sentiu o seu odor único e mágico. O odor de um homem bom.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A ''fábula'' do lobo amansado pelo Poverello. Artigo de Franco Cardini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU