24 Março 2023
"Saddam foi enforcado, os medíocres e perigosos ideólogos da simplicidade maniqueísta do império estadunidense estão aposentados ou mortos. Mas daquela mentira surgiu a desordem em que vivemos, o califado totalitário no Iraque e a guerra na Ucrânia", escreve Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 20-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
As guerras são quase sempre a falta de um porquê, não têm nenhum significado, são apenas confusão e medo. Vinte anos atrás (às 23h30, horário de Washington, 5h30, horário de Bagdá), iniciou a invasão do Iraque pelos estadunidenses e ingleses. O porquê era simplesmente, desoladamente, uma gigantesca deliberada e planejada mentira. Quem nos enganou não foi Saddam, o ditador, apenas o último dos canalhas psicopatas do século XX. Dele com as mãos e os sonhos sujos de sangue o que mais poderíamos esperar? Estávamos atentos, nutríamos desconfiança contra ele. Quem nos enganou foi uma democracia, aliás a Democracia, e nos dirigimos para a pior das catástrofes, a catástrofe moral.
Em relação aos EUA nos sentíamos confiantes, inermes, mesmo com um olfato apurado não sentíamos cheiro de enxofre. Uma propaganda venenosa nos corrompeu. Desde então, entramos em uma época de liquidação, de dissolução. Aquela guerra destruiu muito, homens, sentimentos, valores, não fomos capazes de reconstruir quase nada. E depois de vinte anos estamos novamente em guerra. Incapaz de distinguir agora verdades e mentiras.
Apenas alguns minutos haviam se passado do término do ultimato: o presidente Bush havia dado bem poucas horas para Saddam Hussein deixar o Iraque. Em perfeito horário, os aviões estadunidenses começaram a atingir Bagdá para mostrar a Saddam, de cara, que ele não era mais invulnerável. Assistimos à CNN: aqui está outra das cidades que se desmembram diante de nós, em seus matadouros. Algumas horas depois, mísseis iraquianos atingiram ao acaso o território do Kuwait. Os soldados estadunidenses colocaram apressadamente as máscaras contra o gás e os trajes de guerra química. Isso mesmo. A angústia pelas letais armas químicas do Rais... Precaução inútil. Nenhum dos comandantes havia explicado a eles que a existência daquelas armas fazia parte da Grande Mentira.
O ditador apareceu nas telas das emissoras de TV iraquianas: arrogante, violento como de costume. Para prometer “a vitória” e “a glória”, protestando contra “os diabólicos invasores” e “os sionistas”.
A operação se chamava "Liberdade para o Iraque". Bush em um discurso à nação disse: “Aos soldados estadunidenses que vão lutar por nós, desejo boa sorte e que Deus os proteja".
Vinte anos depois a que serve recordar aquela guerra: os rápidos avanços para Basra, Bagdá, Tikrit, as colunas dos soldados de Saddam em fuga calcinados pelas bombas de fósforo, a estátua de ditadora derrubada ao chão com o rosto para o céu, meia dúzia de vândalos iraquianos se aproximando, incertos, para cuspir no símbolo do ditador e angariar as graças dos fuzileiros navais, todos os outros a observar de longe? Ficam em silêncio. Um sintoma. Um sinal. O que deve ser lembrado, escrupulosamente, mentira após mentira, sem esquecer nada, é como eles nos enganaram. Bush e seus desengonçados apóstolos da Nova Ordem Mundial. O que era? Um violento, imoral e hipócrita imperialismo do caos, feito de invasões ilegais, intimidação diplomática, saques econômicos, mentiras humanitárias.
Pensemos no tempo que antecedeu aquele 30 de março: as torres desabando, os três aviões transformados em mísseis Cruise pelo gênio terrorista e suicida de Bin Laden, o patriotismo estadunidense que vibra, em todas as cidades as bandeiras tremulando incessantemente nas janelas de todos os carros, nos rádios a obsessiva canção de Tom Keith, o hino de fuzileiros navais que chutam o traseiro dos malvados de todo o mundo: "... Porque é assim que somos /é assim que os americanos são...". E ainda: no New York Times, a bíblia cotidiana dos 'liberais', as reportagens mentirosas de Judith Miller sobre as armas de destruição de massa das tropas iraquianas “prontos para uso em 45 minutos!” caramba! Está provado... também Blair o jura, o prestativo mordomo inglês. Thomas Friedman, à base de editoriais, garantia que até mesmo a paz "impossível" no Oriente Médio teria chegado como efeito colateral, milagroso, no final daquela guerra.
Ah! Se tivéssemos ouvido o 11 de setembro, as torres ainda fumavam a morte, Rumsfeld no Pentágono já anunciava que era necessário atacar não só o Afeganistão, mas também o Iraque: “O que resulta dos atentados às torres gêmeas deve permitir-nos atingir além de Bin Laden também Saddam. Vão com tudo, recolham tudo. Indicações que se liguem aos ataques, mas também a outras coisas erradas”.
E sim, eles realmente se esforçaram ao máximo. Cheney, o vice-presidente, para garantir que houvesse no Níger as provas da compra de urânio por Saddam para construir a bomba atômica. Confirmava, veja o acaso, Rasmussen premiê dinamarquês: eles têm bombas atômicas em Bagdá. Paciente aguardou a retribuição em 2009: secretário-geral da OTAN. Isso leva a pensar em outra pessoa... foi o esquema perfeito, descarado, selvagem, de como mesmo em uma democracia se pode inventar uma guerra ainda com mais eficácia do que nas tiranias. Ao secretário de Estado Colin Powell coube a apresentação final, numa sessão do Conselho de Segurança. Anunciou que comunicaria o que os EUA sabiam sobre as armas de destruição em massa e sobre a participação do Iraque em atividades terroristas. Então brandiu na frente das câmeras um tubo de ensaio cheio de um pozinho branco.
A sessão era presidida pelo ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Joscha Fischer. Ele sabia o que aquela prova era uma mentira descarada. Porque a fonte estadunidense tinha apenas um nome: o Dr. Eng. Rafid al Janabi, um iraquiano que havia feito revelações sensacionais aos serviços alemães para conseguir refúgio na Alemanha: que no Iraque havia tropas prontas para usar as armas químicas escondidas das inspeções da ONU. Os serviços facilmente verificaram que ele era um mentiroso, inclusive um mentiroso medíocre. Berlim havia avisado os estadunidenses. Mas "Cuverball", seu codinome, era a principal fonte das revelações de Powell. Ele aguardou até 2005 para que o secretário de Estado dissesse que aquela apresentação "ainda o afligia".
Nem todos se deixaram enganar. Chirac se recusou a participar, recortando para si um lugar de honra na História. As ruas se encheram de manifestantes contra a guerra estadunidense. E foi, infelizmente, a última vez. Em 24 de março, os Oscars foram entregues e ganhou, com metafísica indiferença à tristeza dos tempos, uma comédia chamada "Chicago". Muitas estrelas se vestiram austeramente de preto, alguns até exibiram o broche com a pomba da paz. O diretor Michael Moore acusou Bush de contar mentiras: "Tenha vergonha!", ele gritou.
Em 1º de maio, no convés do porta-aviões Lincoln Bush proclamou a vitória. Um ano depois muitos dos soldados que haviam "vencido" estavam de volta ao Iraque: caíam nas emboscadas, eram bombardeados, feridos, mutilados, mortos, como se nada tivesse acontecido. Enquanto isso, em Washington, anunciavam que em um ano o país estaria reconstruído. A mentira no final prende como uma corda cada vez mais apertada. Não pode ser parada.
Saddam foi enforcado, os medíocres e perigosos ideólogos da simplicidade maniqueísta do império estadunidense estão aposentados ou mortos. Mas daquela mentira surgiu a desordem em que vivemos, o califado totalitário no Iraque e a guerra na Ucrânia.
Depois de 2003 não é mais possível dar um limite cronológico às guerras, fixar um início com a sua proclamação e um fim com a vitória e submissão do derrotado. A guerra no Iraque havia começado no governo de Bush pai, suspensa com o embargo de Clinton e retomada no governo de Bush filho e ainda não acabou. Se antes a paz era o objetivo da guerra, a mentira nos fez descobrir que a guerra se tornou o objetivo da paz. Infectados pela constatação de que mentiras e propaganda também são democráticas, agora já é impossível dizer: não podemos imaginar que...
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A grande mentira. Vinte anos atrás os EUA no Iraque sem um porquê. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU