05 Outubro 2023
A crise que leva à ruptura de uma família não é um destino inexorável, mas sim o fruto de atitudes e de escolhas que têm uma margem de liberdade. Sem nunca esquecer que suas consequências não dizem respeito apenas a quem as assume, mas recaem sobre os mais fracos.
O comentário é de Giuseppe Savagnone, diretor do Escritório para a Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo, na Itália, em artigo publicado originalmente no sítio da arquidiocese e republicado por Settimana News, 18-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O spot publicitário de uma conhecida rede de supermercados italiana cutucou um vespeiro de polêmicas, no qual muitos viram uma culpabilização dos casais separados e uma defesa ideológica da família tradicional, em contraste com outros que, em vez disso, gostaram dele e o defenderam.
É oportuno, acima de tudo, explicar do que estamos falando. Trata-se de um pequeno curta-metragem, de dois minutos, protagonizado por uma menina. Na primeira cena, dentro de um supermercado, a mãe a procura preocupada e depois a encontra perto da gôndola de frutas. “Você quer um pêssego? Poderia ter me dito”, ela a repreende. Depois voltam para casa, e a mãe, no carro, tenta conversar com a menina, mas que está visivelmente absorta e triste.
Na cena posterior, a campainha toca. Entende-se que o pai veio buscá-la, pois os genitores estão separados. A menina entra no carro, tira o pêssego da mochila e o entrega ao pai com um sorriso: “A mamãe mandou para você”.
Parece que já passou um século desde que os comerciais apresentavam uma imagem idílica da família. A ideia do spot é, antes, representar a família real, que todos temos diante dos olhos, com muitos genitores separados ou divorciados e filhos que vão e voltam entre o pai e a mãe.
Mas é precisamente isso que suscitou discussões acaloradas nas redes sociais digitais e teve até impacto em nível político. Um dos primeiros a apontarem o dedo contra a publicidade foi a conta Aesteticasovietica, que comentou: “Mas é o novo spot ou uma encíclica contra o divórcio?” e acusou o comercial de desencadear um “sentimento de culpa feroz, desumano e julgador” sobre os genitores separados. “A toxicidade dessa narrativa”, segundo a conta, “consiste em considerar como necessariamente dramática uma separação que, pelo contrário, muitas vezes coincide com uma libertação”.
Na mesma linha, outro blog “alternativo” muito seguido, Mammadimerda, afirmou que o vídeo “em um só golpe reforça sentimentos de culpa e estigmatiza o divórcio e os filhos de divorciados”, enquanto já chegou a hora de “separar o conceito de casal do de família, e o de família da parentalidade”.
O psicoterapeuta Alberto Pellai tem opinião contrária: “O pêssego que a menina dá a seu pai, dizendo que foi a mãe quem lhe deu, é uma onda que chega e surpreende a nós, adultos, porque nos mostra que nenhuma criança jamais fica feliz quando dois genitores se separam. E essa é a única verdade da qual devemos nos conscientizar. Esse comercial nos fala disso. E nos fala muito bem. Não estigmatiza, não condena, não culpabiliza; pelo contrário, faz o que todas as crianças precisam quando dois genitores se separam: responsabiliza os adultos. Talvez seja por isso que é tão divisivo e perturbador”.
Vozes isoladas de pessoas que não têm mais nada em que pensar, dirão alguns. Mas não. A discussão sobre o comercial eclodiu nas redes sociais digitais e dividiu a opinião pública, encontrando uma ressonância também em nível político.
Até a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, interveio e definiu o vídeo como “muito belo e comovente”. Depois foi a vez do vice-primeiro-ministro, Matteo Salvini, que o considerou “uma esplêndida mensagem de Amor e Família”.
Por sua vez, porém, os expoentes da esquerda não pouparam críticas: “Parece-me realmente equivocado, neste e em outros casos, envolver o sofrimento das crianças em temas delicados para fins comerciais”, escreveu Pier Luigi Bersani no Twitter.
Por sua vez, o expoente da esquerda italiana Nicola Fratoianni reagiu ao apreço da primeira-ministra: “Presidente Giorgia Meloni, vejo que você comentou o comercial de uma conhecida rede de supermercados, mas não diz sequer uma palavra sobre o carrinho de compras de milhões de italianos, separados ou não. Para eles, até um pêssego corre o risco de se tornar um luxo. A Itália aguarda respostas”.
Diante dessa ressonância inesperada, a rede de supermercados que encomendou a publicidade distanciou-se de toda interpretação ideológica. “Com o filme ‘La Pesca’ – esclareceu um comunicado do grupo – quisemos enfatizar a importância da compra, que não é vista apenas como uma aquisição, mas descrita também como algo que tem um valor mais amplo.”
Talvez seja oportuno dizer desde já que a surpresa e até a irritação de alguns, diante de tantas discussões sobre uma publicidade banal, não levam em conta que, desde sempre, as mensagens comerciais muitas vezes veiculam, sem que os usuários se deem conta, uma forma de ver a vida e a realidade destinadas a influenciá-las.
As imagens, os slogans, mesmo quando parecem dizer respeito apenas a produtos, não são inocentes. São projetados por especialistas a fim de tocar zonas inconscientes da psique humana, influenciando-a muito além do objetivo imediato da compra individual. Por trás de muitas mensagens das quais somos destinatários hoje, desde a mais tenra infância, existe uma “filosofia”.
O fato de que, de vez em quando – mas deveria ocorrer com mais frequência –, tomemos consciência disso e discutamos isso abertamente, talvez dependa do fato de que desta vez se trata de uma provocação que contrasta com a do “politicamente correto” dominante.
Nos nossos spots publicitários, mas também no cinema e nas séries de televisão, o grande protagonista, há já algum tempo, é a pessoa solteira, ligada a um parceiro por uma relação facultativa e não vinculante, em nome de uma liberdade que tem horror aos laços definitivos: “Estamos juntos enquanto estivermos bem juntos”. E assim ficaremos todos felizes e contentes.
Essa imagem tranquilizadora, na realidade, esconde algumas verdades incômodas. Em primeiro lugar, a de que cada escolha que fazemos, mesmo a mais pessoal, recai sempre sobre outra pessoa. Não é verdade, como se costume repetir, que “a liberdade de cada um termina onde começa a dos outros”, como se houvesse uma fronteira dentro da qual cada um pode fazer o que quiser sem ter de responder a ninguém.
Essa imagem espacial é ilusória. A fronteira não existe. Na realidade, um profissional que se deixa levar e não acredita mais em seu trabalho não se atualiza, não se compromete; um pai que negligencia a família porque se deixa monopolizar pela sua profissão; um filho que usa drogas ou, pior, se mata tem um grande impacto com suas escolhas – que são muito pessoais! – sobre aqueles que os cercam. A liberdade também é sempre responsabilidade.
E isso vale sobretudo para as relações familiares. Apresentar o casal ou a coabitação como o encontro entre duas pessoas solteiras que, através da relação, procuram sua própria realização pessoal – salvo quando se muda de parceiro – esconde o fato de que, por meio desse encontro, nasce algo mais do que a mera soma de dois indivíduos, que é a família.
A presença dos filhos e a responsabilidade parental são um sinal evidente dessa irredutibilidade da comunidade familiar às pessoas solteiras que a constituem e às suas preferências mutáveis. Aqui, o vínculo, queiramos ou não, é indissolúvel. Não se pode dizer a um filho que “estamos juntos enquanto estivermos bem juntos”. E talvez seja aí também onde nasce hoje a tendência no nosso país (e precisamente nas regiões mais ricas) de não conseguir mais.
Portanto, na lógica do “politicamente correto”, deve-se esconder também que a escolha de romper um vínculo de casal não diz respeito apenas aos cônjuges ou companheiros, mas também afeta seus filhos, que não podem se defender.
Para esse objetivo, o esforço é de sublinhar que não devemos “considerar como necessariamente dramática uma separação que, em vez disso, muitas vezes coincide com uma libertação”. Como também escreve Gramellini no Corriere della Sera: “Muitos casais se divorciam precisamente para evitar que os filhos cresçam no meio das tensões”. Em suma, é para o bem deles. Esquecendo de acrescentar que é precisamente a “filosofia” da pessoa solteiro, com sua lógica autocentrada, que leva cada vez mais frequentemente à exasperação e à dramatização dessas tensões – desde sempre inevitáveis em uma comunidade como a familiar (mas também em todas as outras verdadeiras comunidades) – e a torná-las decisivas para uma ruptura definitiva.
Na realidade, os teóricos da não violência explicam que os conflitos, se bem geridos, são fisiológicos e podem ser uma oportunidade de crescimento e de aceitação mútua. Somente se degenerarem em violência, física ou psicológica, é que se tornam um motivo para eliminar o outro – física ou moralmente – da própria vida. Mas isso depende muito do modo de abordá-los e vivenciá-los.
A crise que leva à ruptura de uma família não é um destino inexorável, mas sim o fruto de atitudes e de escolhas que têm uma margem de liberdade. Sem nunca esquecer que suas consequências não dizem respeito apenas a quem as assume, mas recaem sobre os mais fracos.
O vídeo publicitário, involuntariamente (foi feito para o mercado), evidencia essa verdade incômoda. O que não se entende é por que ela é “de direita” e, como tal, seja atacada pela “esquerda”.
Sabe-se que tanto o Fratelli d’Italia quanto a Liga sempre ostentaram sua fidelidade ao valor da família (o Forza Italia, dado o exemplo do comportamento sexual de seu fundador, não teve coragem para isso). Mas é significativo que Giorgia Meloni nunca tenha querido se casar, e Salvini seja divorciado, passando de uma companheira a outra. Esse é o modelo? Além disso, de quais famílias estamos falando? Somente as italianas? E aquelas que são deixadas se afogando no Mediterrâneo ou são relegadas a centros de acolhimento desumanos, onde toda intimidade familiar é apagada?
Reciprocamente, é verdadeiramente surpreendente que a alternativa proposta pela esquerda – evidenciada também pelos protestos contra o comercial – seja um individualismo que, em nome da reivindicação indiscriminada dos direitos, ofusca o tema das responsabilidades. Essa é a tradição liberal-radical, não a socialista nem a católica, as duas almas das quais nasceu o Partido Democrático.
Talvez hoje os democráticos, antes de contabilizarem suas preferências nas pesquisas, devam decidir quais devem ser as suas. Talvez repensando seriamente o próprio modo de conceber a liberdade e seu papel em relação às comunidades, acima de tudo a familiar. Para evitar que seja um spot publicitário quem levante o problema.
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O comercial da discórdia. Artigo de Giuseppe Savagnone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU