08 Novembro 2023
"O importante é que estamos longe dela e podemos permitir-nos, mais uma vez, não entender a dignidade da morte, o misterioso sentido da dor, aquele nó sombrio de símbolos e significados que de forma lúgubre e grandiosa sempre acompanha a guerra".
O artigo é de Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 07-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Folhear um mês de guerra, sem convicção, com o coração pesado: como acontece quando se tem que fazer algo difícil que é obrigatório, mas que se gostaria de adiar e sobretudo não prolongar no tempo. Exatamente. O que é mais longo do que o tempo de guerra? Um mês depois daquele 7 de outubro na fronteira de Gaza é feito de horas, pensamentos, palavras, dores secretas e evidentes, impulsos e desânimos. Se pensar bem, naqueles dias trágicos havia oportunidade para tudo. Não pela paz.
Esses 30 dias de guerra são momentos em que algo se desestrutura e não tem razão aparente de existir. No entanto, quantas guerras estão acontecendo no mundo? Dizem, se forem contadas, dezenas, talvez uma centena, começando por aquela: sim, a Ucrânia, que pensaram que poderiam chamar de guerra com G maiúsculo.
Você repassa um mês de imagens dos desertos da Palestina, onde o céu se expande em brancuras leitosas tão opacas e tênues que parece quase sentir as blasfêmias roucas da artilharia e os foguetes sibilantes, a poeira dos prédios que se desintegram em buracos que parecem ter sido feitos de propósito para abrigar tumbas. E você sente uma espécie de sobressalto contínuo, uma intolerância diante de um estado de coisas e um mal-estar que suscita apreensões palpáveis. Mesmo que você não veja, você sente. Para Gaza imaginar uma palavra como “o fim” tem uma imensidão tão grande, diante da fúria de cada novo dia, que parece demasiado ousada.
Faço uma tentativa, opto por negar o modo habitual de recordar os aniversários, esvazio-o por dentro.
Ou seja, não vou enfileirar e descrever os acontecimentos destes dias: a incursão do Hamas dentro do que antes eram as fronteiras invioláveis do invencível Israel, o massacre da jovem multidão da "rave", o pogrom nos kibutzim de fronteira, lembrança tangível do que foi o sonho inicial de Israel, idealista e comunitário no qual, talvez, também havia espaço para conviver com os palestinos. E depois os bombardeios minuciosos e implacáveis, a operação terrestre, a guerra que molda os homens, combatentes e vítimas. Os fatos, em qualquer caso, estão sempre aí. Esperam. Contam e recontam, abundam com sua tecelagem de tormentos. Pregam-nos numa omissão que nos diz respeito: nesta parte do mundo, olhando para o Oriente Próximo e nessa confusão infinita, tornamo-nos estéreis num jogo de expectativas perenes, de covardias conscientes, de murmúrios de bastidores.
Nada de endireitar o pau que nasceu torto da humanidade com a nossa Justiça. Somos santos sem auréola, ideólogos sem ideias, indecisos, resolutos, mas na hora errada. Chegamos, para Israel e os palestinos, atrasados a todos os compromissos, fingimos tê-los esquecidos. Sempre falamos aos quatro ventos que somos os justos, mas não fizemos nada para realmente provar isso. Agora regozijamo-nos, passado um mês, com os egoístas e deveras hipócritas esforços dos EUA para evitar que o conflito "se expanda", mero verniz sob a qual ruge a velha lengalenga dos "interesses". Nós esperemos que continue a ser uma tranquilizadora guerra "local", do tipo que uma resignação tolerante torna suportável. Com as forças de paz árabes agindo como pacificadores! Alistados entre as pessoas que desmentem os seus acomodantes déspotas e querem o desaparecimento de Israel, como demonstraram as ruas nos últimos dias, de Amã a Túnis. Acrescentaremos a guerra de 2023 às do século passado, e à lista infinita de atentados e represálias, só um pouco maior. Mas o importante é que estamos longe dela e podemos permitir-nos, mais uma vez, não entender a dignidade da morte, o misterioso sentido da dor, aquele nó sombrio de símbolos e significados que de forma lúgubre e grandiosa sempre acompanha a guerra.
Procuro, portanto, conjugar os verbos apenas no futuro, para imaginar o que pode acontecer amanhã e depois, já que todos falam em uma guerra longa, mesmo aqueles que agem num clima de passar a régua, de vamos acabar logo com isso. O avanço da guerra ou a sua estagnação antigamente era medido em quilômetros, os avanços e recuos, ligados ao “front” sempre muito móvel e sempre sangrento. A operação de Tzahal na Faixa de Gaza é, em vez disso, marcada pela atualização de uma unidade de medida misteriosa, evasiva. Todas as manhãs Israel atualiza o número dos “alvos do Hamas” eliminados. O que isso significa é incerto: cada militante da organização jihadista morto ou neutralizado? Ou talvez algo inanimado, um bunker, um centro de comando, um depósito de armas, um túnel, um dos foguetes móveis que ainda tentam desolar também as cidades de Israel? Na última atualização, os alvos atingidos somavam mais de 15 mil, e todas as noites se acrescentam mais à medida que progride o avanço metódico e lento em direção a Gaza. De vez em quando, daquele sombrio anonimato - “eliminados!” - no qual é impossível embrenhar-se como espeleólogos, surge um nome, o chefe da segurança do Hamas, o comandante das brigadas de assalto do Sábado Sangrento, até mesmo um improvável " chefe da força aérea" e um "almirante" terrorista... Eu me pergunto qual será o número final de eliminações, reais ou supostas, que permitirá a Israel proclamar a vingança como consumada e a vitória, ou seja, a eliminação do Hamas?
Sugerem-me que o ponto final será a cifra de 30 mil, ou seja, quantos eram, segundo as estimativas, os possíveis recrutas que formaram o “exército” de Gaza no dia 7 de outubro. Talvez seja isso. Talvez Israel esteja se iludindo. Os perseguidos deveriam tornar-se sábios. Outros números despontam como pedregulhos, muito mais palpáveis e definidos. Um único refém, uma soldada, foi libertada na operação. Nove mil, porém, são vítimas dos bombardeios israelenses, que não creio estejam entre os objetivos de Hamas eliminados. Não apenas alimentam a fúria contra Israel, mas lançam dúvidas e venenos na difícil alquimia do que o Estado judeu pensa de si mesmo, da sua condição humana e do seu destino como povo.
São necessários depois de um mês de guerra, imediatamente! Novos rostos e novos céus, espadas de justiça e muros, mas feitos de vidro. É preciso que se saiba o que é a dor e o espírito de bons profetas.
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O Ocidente fechado sobre si mesmo não quer ver o horror. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU