14 Janeiro 2023
Publicamos a seguir um texto escrito em 1995 pelo então Cardeal Joseph Ratzinger sobre o Cardeal Carlo Maria Martini, então Arcebispo de Milão, por ocasião do seu 15º aniversário de ordenação episcopal. (27.08.2012)
O artigo do cardeal Ratzinger foi retomado de Carlo Maria Martini da 15 anni sulla cattedra di Ambrogio (Edizioni S. Paolo, Milão 1995, pp. 101-103).
O texto foi publicado por Il Sismografo, 05-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Conheci Carlo Maria Martini como especialista em crítica textual do Novo Testamento. Ao lado de Kurt Aland e outros, o atual arcebispo de Milão figura, de fato, entre os editores da 26ª edição do texto de Nestle do Novo Testamento publicado em 1979. Ainda me lembro que Heinrich Greeven, professor do Novo Testamento na Faculdade Evangélica de Bochum e ele mesmo autor de uma sinopse grega do Novo Testamento, expressou-me seu grande espanto pelo fato de um homem tão culto como Martini ter aceitado o ministério de bispo. Era-lhe incompreensível que um especialista daquele calibre, exímio conhecedor de línguas e manuscritos bíblicos, pudesse dedicar-se à tarefa de pastor, com as exigências tão novas que a função comportava, perdendo-se assim para o mundo científico, que também não podia contar com muitos outros especialistas altamente qualificados nesse difícil setor. Ele não conseguia entender como tal especialização pudesse abrir um caminho para o anúncio e, portanto, para a atividade pastoral.
Por outro lado, se penso em alguns de nossos exegetas da primeira metade deste século, posso compreender plenamente o sentido dessas reflexões. Não raramente, de fato, houve uma redução da exegese à crítica textual e à filologia, que quase não deixava espaço para a mensagem autêntica da Bíblia. O problema da linguagem, certamente importante, fez com que a questão do sentido passasse para o segundo plano. A palavra da Bíblia, vinda do passado, ficava assim prisioneira do passado. Sua atualidade não era posta em discussão: fazer perguntas sobre isso era considerado não científico.
Dois anos mais tarde, por ocasião da Páscoa de 1981, quando caiu em minhas mãos a tradução alemã do livro de Martini "Vida de Moisés-Vida de Jesus. Existência Pascoal”, tive oportunidade de entender como, ao contrário, de posições daquele tipo, no caso de Martini a exegese e o cuidado pastoral estivessem unidos. Naquele pequeno livro encontrei aquela capacidade de tornar atual a palavra bíblica, que sempre tinha auspiciado. Os aspectos mais propriamente especializados da exegese eram deixados de lado, mas não se podia deixar de reconhecer que eram bem familiares ao autor.
Vida de Moisés-Vida de Jesus. Existência Pascoal (Foto: Divulgação)
No entanto, a competência do especialista era subtraída daquele seu isolamento o que, não raras vezes, faz com que a Escritura não consiga remontar o declive dos séculos.
Nos últimos tempos, quando essa deficiência foi percebida, muitas vezes foram tentadas atualizações arbitrárias e desprovidas de fundamento adequado. Percebe-se, assim, apenas a voz do estudioso; a Bíblia acaba ilustrando apenas suas opiniões, ao invés de oferecer algo próprio e novo, que não vem de nós mesmos. Em suas leituras da história de Moisés, Martini incorpora as interpretações dos Padres e dos rabinos. Essa história de recepção reflete interpretações aplicadas do texto que, sem dúvida, nem sempre se sustentam do ponto de vista histórico-crítico; elas, porém, são capazes de revelar algo daquele dinamismo espiritual que se esconde na história.
Assim se abre a mensagem interior da figura de Moisés: o guia de Israel durante o êxodo fala conosco; no seu itinerário e nos seus destinos refletem-se as grandes questões da existência crente. A tipologia Moisés-Cristo perde todo caráter artificial; correspondências e analogias internas tornam-se manifestas. O contexto vital cristão e judaico, a partir do qual Martini apreende aquela figura, vem simultaneamente a se colocar como contexto mediado de modo fortemente pessoal: as tentações e os sofrimentos, o caminho e as desorientações desse grande testemunho de Deus se revelam como experiências originárias de homem, que têm a ver com a nossa luta pessoal pela fé e que nos mostram o caminho que da "vida inautêntica" leva à alegria: Moisés torna-se assim, de modo muito pessoal, o guia para o êxodo do inautêntico ao autêntico.
Por isso fiquei feliz por finalmente poder conhecer pessoalmente o autor dessas meditações sobre a Sagrada Escritura, que haviam se tornado para mim companheiras no meu caminho espiritual pessoal. Não me lembro exatamente quando nos encontramos pela primeira vez. Em todo caso, depois de me tornar prefeito da Congregação para a Fé, considerei indispensável que Martini se tornasse membro deste dicastério. Assim, para participar das reuniões dos cardeais dessa congregação, que se realizavam às quartas-feiras, ele vem de Milão, sempre que se discute um tema importante.
Ninguém ficará surpreso se eu disser que nem sempre tivemos a mesma opinião. Por temperamento e por formação somos, sem dúvida, muito diferentes um do outro. Minhas primeiras experiências religiosas remontam ao período em que Romano Guardini considerava, com razão, a "distinção cristã", a Unterscheidung des Christlichen (como o título de uma de suas obras de 1935) uma prioridade absoluta. Nos anos da reconstrução, logo após a guerra, essa tarefa podia parecer menos necessária. Exigia-se então a colaboração de todos; a fé cristã deveria antes de tudo demonstrar sua capacidade de oferecer fundamentos sólidos para um novo estilo de vida em um mundo que havia mudado; tinha também que demonstrar a sua capacidade de oferecer um contributo para um caminho rumo ao futuro para uma sociedade em que o pluralismo se tornou um fato irreversível.
No entanto, depois que, a partir de 1968, surgiu o perigo de fundir a escatologia com a utopia, reduzindo assim a fé a uma práxis de transformação do mundo, considerava-se novamente necessária a busca do traço distintivo do cristianismo (Unterscheidung des Christlichen), não para fechá-lo entre os muros do gueto, mas para salvaguardar o seu dinamismo, que ultrapassa o tempo para chegar à eternidade. Essa foi a experiência que vivi nos anos 1970 dentro das universidades alemãs, onde me encontrava com colegas de todas as faculdades, mesmo com aqueles que não eram católicos ou talvez nem mesmo cristãos crentes.
Parece-me que as experiências de Martini na formação dos jovens sacerdotes de todos os continentes fossem de outra natureza: aqui se tornavam mais possíveis diversas formas de mediação, sínteses mais amplas; tratava-se de sondar as possibilidades ainda inexploradas da realidade católica.
Em todo caso, essas duas posições não são de forma alguma excludentes; pelo contrário, se complementam e integram mutuamente. Por isso sempre considerei um enriquecimento e uma ajuda os votos do Cardeal Martini, mesmo onde eu não podia compartilhá-los sem reservas: são necessárias posições e acentos diversos que nos permitam, a partir de diferentes aspectos, abordar a complexa tarefa da Igreja neste tempo e tentar, de alguma forma, a realizar.
Ambos nos tornamos plenamente conscientes de que, embora partindo de pontos de partida diferentes, queremos a mesma coisa, quando, há cerca de três anos, falei num curso para bispos recém-ordenados, a convite do Cardeal Martini, então presidente da conferência dos bispos europeus. Eu tinha que dizer algo sobre como um bispo possa se manter atualizado do ponto de vista teológico e manter sua própria capacidade de juízo, mesmo diante da sobrecarga dos empenhos práticos que pesam sobre ele e apesar do fato de que o ambiente teológico seja hoje caracterizado por transformações rápidas e por um pluralismo que podem gerar confusão. Também tentava mostrar que o bispo certamente não pode ser um "técnico" da teologia, um especialista em todos sua problemáticas complexas, visto que, em todo caso, nem é mesmo isso o que realmente importa, mas algo totalmente diferente: que ele saiba distinguir entre fé e falta de fé. Sua tarefa não é julgar as teorias teológicas. No entanto, ele deve possuir o "sentido da fé" e saber reconhecer onde a teologia fala a partir da fé e onde ela se afasta da fé. Isso implica que, em primeiro lugar, ele próprio seja um homem de fé e "aprenda" a fé cada vez mais profundamente.
Por outro lado, a ajuda essencial para tudo isso é a "lectio divina": uma aproximação sempre nova e sempre a aprofundar com toda a Sagrada Escritura, lida no contexto da fé e da oração, que se alimenta da liturgia da Igreja. Com essa ênfase colocada na "lectio divina" como coração da formação sacerdotal (e episcopal), encontrei-me plenamente com o Arcebispo de Milão, que é para os seus sacerdotes e para a sua diocese um incansável mestre da "lectio divina" e que, com seus livros, consegue introduzir a todos nela de uma maneira sempre nova.
Por essa orientação espiritual eu gostaria hoje de expressar meus agradecimentos e, ao mesmo tempo, o desejo de que ele continue a nos indicar o caminho de uma abordagem crente à palavra de Deus na Bíblia.
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Ratzinger: assim conheci Martini... “Um incansável Mestre da ‘Lectio Divina’” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU