Parafraseando uma conhecida declaração de H.U. von Balthasar sobre K. Rahner (“Existem muitos K. Rahners"), apresento um importante texto com o qual R. Saccenti propõe uma releitura da compreensão da história que caracterizou o pensamento de J. Ratzinger, nas diversas fases de sua obra. Precisamente no dia das exéquias do bispo emérito de Roma, parece-me uma forma muito apropriada de prestar homenagem a um homem de pensamento, não renunciando a pensar nas suas teorias até ao fim.
Agradeço ao prof. Saccenti, que ensina História da Filosofia Medieval na Universidade de Bérgamo e assim nos ajuda a desatar um dos nós mais intrincados da teologia de J. Ratzinger.
Andrea Grillo introduz o artigo publicado no blog Come se non, 05-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O artigo é de Riccardo Saccenti, filósofo e medievalista italiano, pesquisador do King’s College, de Londres, e da Fundação para as Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha.
A morte de Bento XVI trouxe consigo um debate sobre a figura de Joseph Ratzinger e seu legado teológico e magistral, que não pode ser esgotado na mera contingência do desaparecimento terreno do pontífice emérito. E não só porque o seu pensamento é hoje o ponto de referência para aquela parte dos católicos, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, que olham com preocupação e temor para uma realidade julgada agnóstica, senão "a-cristã".
Como teólogo, como perito conciliar, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e como Bispo de Roma, Ratzinger articulou reflexões e ideias, decisões e escolhas que exprimiram uma forma de conceber a natureza do cristianismo e da Igreja e de compreensão da relação do Povo de Deus com o mundo que moldaram os sentimentos de não poucos crentes e ao mesmo tempo suscitaram profundas interrogações e controvérsias ligadas aos desdobramentos essenciais que dizem respeito à vida cristã nesta passagem histórica.
Entre os juízos sobre Bento XVI que estão tomando forma nos últimos dias, alguns quiseram destacar uma questão teologicamente central, cujas repercussões são mensuráveis no terreno de seu magistério: o modo de olhar para a história. A teologia de Ratzinger é julgada a esse respeito com modalidades que às vezes parecem opostas.
Por um lado, evidencia-se uma rigidez na relação entre a traditio e sua tradução histórica, que confina toda releitura do depósito da fé ao critério de uma estrita "continuidade" [1]. Por outro lado, ao contrário, reivindica-se o caráter “histórico” da teologia de Ratzinger, porque ela é profundamente marcada pela noção de “história da salvação” [2]. As duas posições, mais do que antitéticas, apreendem dois elementos que coexistem na biografia intelectual do teólogo: a prioridade dada ao cristianismo como fidelidade ao evento que é Cristo, julgado como único e unívoco não só no conteúdo, mas também em suas implicações teológicas e eclesiais; a ideia de que a história temporal da Igreja se desenrola numa progressiva reabsorção e purificação do humano no âmbito da fé.
Tentar se medir com o modo como Ratzinger olhou para a história e com o peso que esse conceito assumiu na sua reflexão teológica exige, pois, analisar essas duas leituras, situando-as, no entanto – numa espécie de saudável tautologia metodológica – dentro da exigência de historicizar o próprio pensamento do teólogo. Porque entre os escritos sobre Agostinho e Boaventura do jovem Ratzinger dos anos 1950 e a trilogia dedicada a Jesus de Nazaré, existe uma distância que não é apenas cronológica.
De fato, existem muitos Ratzingers, que emergem do confronto de seu pensamento com contingências que questionam diferentes nós conceituais e alimentam um repensamento constante dos fundamentos da visão teológica. Há certamente um dado de continuidade, sobretudo no que diz respeito à reflexão sobre a “história” e seu valor em chave cristã e é dado pela sensibilidade agostiniana e bonaventuriana que acompanha Ratzinger. E, no entanto, esse elemento não permanece igual ao longo de sua parábola intelectual, mas assume diferentes consistências nas estações de uma vida que com o passar das décadas julga de modo cada vez mais problemático a relação entre o cristianismo e o mundo contemporâneo.
Certamente é verdade que Agostinho e Boaventura representam os dois pontos de referência na elaboração da visão de história de Ratzinger. E, no entanto, se trata não do conjunto da produção teológica desses autores, mas de alguns textos específicos, o De civitate Dei do bispo de Hipona e as Collationes in Hexaemeron do doutor e geral dos Frades Menores, textos que Ratzinger aborda ao longo dos anos de estudos universitários, de doutorado e da tese de habilitação e nos quais apreende uma referência a uma clara alteridade entre Deus e história que vê em Cristo o centro e a medida pela qual se mede a relação com o mundo [3].
Em relação a orientação de uma neoescolástica específica, dominante nos ambientes da teologia romana dos anos 1950, emerge a ideia de que a construção teológica se desenvolve na temporalidade da relação entre Cristo e a cultura humana e se articule como uma aceitação progressiva do valor salvífico do primeiro pela segunda.
Aqui amadurece a ideia de que a historia salutis se determine como uma espécie de absorção na fé daquilo que qualifica a humanidade como tal, numa dinâmica que é também purificação e sublimação do humano. Quase como se aquilo que a Igreja acredita fosse um crivo capaz de "isolar" o que há de mais autenticamente humano, assumindo um valor que ultrapassa o próprio perímetro de todos os batizados. A história, neste sentido, é expressão desse caminho e das tensões que marcam uma relação entre Igreja e ser humano na qual a primeira é chamada a dar testemunho radical e contínuo do conteúdo das suas crenças, enquanto o segundo pode reconhecer em Cristo o paradigma de sua completude.
O ensinamento da Igreja, que ao longo do tempo repropõe a perpetuidade do depositum fidei, no Ratzinger dos anos do Concílio tem diante de si o problema de discutir as formas pelas quais dar corpo à transmissão da fé. Daí a adesão do especialista do Cardeal Frings àquelas instâncias que insistiam na ideia de que o sujeito investido por essa tarefa não fosse apenas a hierarquia, mas sim a totalidade do Povo de Deus. Nesse sentido, o trabalho de Ratzinger sobre o texto da Lumen gentium representa a conclusão de uma evolução contínua da tradução em forma institucional da autoconsciência eclesial. A Pastor aeternus, com a qual o Concílio Vaticano I estabelecia os traços do primado petrino na época contemporânea, não devia, portanto, ser superada, mas integrada, equilibrando-a, com a noção eclesiológica de colegialidade e com a noção de "Povo de Deus" ao lado daquela de "Corpo Místico".
Com a mudança do pano de fundo histórico e a crise que atravessa formas e conteúdos da cultura europeia a partir dos anos 1970, a relação entre a Igreja e o mundo assume um valor diferente para Ratzinger. O questionamento dos paradigmas conceituais e dos sistemas de crenças e das suas traduções no plano institucional assume um valor problemático, porque coloca o problema de um exercício da razão que não se põe o problema do seu cumprimento no perímetro da fé, mas sim apenas no plano da humanidade.
Em contato com o que está tomando forma na Europa e na América do Norte, a distinção entre a cidade do homem e a cidade de Deus não é mais funcional para a salvação da primeira na segunda, mas leva a interpretar a relação entre os dois planos como uma ruptura de fato intransponível e causada por um desejo de excluir a fé da esfera do "razoável". Com a grade “histórica” elaborada na década de 1950, a cultura contemporânea parece para Ratzinger como estruturalmente marcada por esse limite, que se traduz não apenas na arreligiosidade, mas também afeta a dimensão antropológica, porque chega a amputar uma parte essencial e estrutural da humanidade: o reconhecimento da Verdade que tem uma sua objetividade no absoluto do divino que se revelou no Cristo/Evento.
Aquela de Ratzinger é uma visão da história da salvação que certamente coloca uma séria hipoteca sobre a orientação metafísica de matriz neoescolástica. Se o cristianismo é a revelação de um Deus que se torna ponto terminal no qual a totalidade do humano é chamada a recompreender, a estrutura ontológica da realidade assume um valor secundário em relação às etapas temporais de um processo de cristianização que é entendido como sinônimo de humanização. E, no entanto, nessa história pontuada por etapas específicas, as diversas passagens assumem o valor de junções essenciais e irreversíveis, que orientam o percurso da evangelização confiado à Igreja.
Essa abordagem, que encontra clara explicitação no ensaio talvez mais articulado e belo de Ratzinger, Introdução ao cristianismo, assume que o encontro entre a fé cristã e a cultura greco-romana seja um dado não ocasional ou uma mera contingência histórica, mas um elemento estrutural e estruturante da consciência teológica do cristianismo [4].
Nesse texto, Ratzinger recupera a atitude dialética em relação à razão filosófica que encontra na tradição de seu Agostinho e de seu Boaventura, destacando o risco que os filósofos têm: “sim aprenderam a medir o mundo, mas desaprenderam a medir a si mesmos” [5]. E, no entanto, adotando a linha segundo a qual: “As respostas inderrogáveis 'aos problemas relativos ao conteúdo da fé' só poderão ser encontradas fixando o olhar na configuração concreta da fé cristã, que nos preparamos para analisar de agora em diante a partir do chamado símbolo apostólico” [6], Ratzinger identifica numa tradução teológica amadurecida pela utilização e reformulação da argumentação da filosofia de matriz grega a única e autêntica hipostatização dos conteúdos da fé.
E nisso emerge como o nó metafísico, que para Ratzinger representa um problema na medida em que arrisca reduzir a dialética entre fé e história, entre Palavra e Evento, retorna como um fato que está no próprio cerne da formulação teológica da fé cristã. Porque as verdades acreditadas pela fé que o Símbolo articula traçam uma ordem metafísica precisa, que desde a dinâmica trinitária se reflete para determinar as relações entre Criador e criatura até delinear o paradigma relacional que é a medida da existência.
Afinal, o dualismo entre história e metafísica é também um fato estrutural nos dois modelos recorrentes na leitura teológica da história de Ratzinger, ou seja, em Agostinho e Boaventura. E é um elemento irredutível e talvez não componível porque se atém ao reconhecimento da distância que separa e ao mesmo tempo une Deus e mundo e que é, precisamente, o eixo de sustentação de uma metafísica que dialoga com a temporalidade da revelação e da fé crida.
Nesse sentido, portanto, a teologia de Ratzinger reinterpreta e traduz na teologia da segunda metade do século XX e das primeiras décadas do século XXI uma tradição antiga no pensamento cristão, preocupada em evidenciar uma alteridade, a de Deus em relação ao mundo que, no entanto, se explicita numa orientação precisa e unívoca em nível histórico, que é aquela do cristianismo e de um certo cristianismo, entendido como fidelidade a uma traditio que é continuidade. Desta linha de argumentação fica excluído o nó da relação conflituosa entre cristianismo e cultura greco-romana e a constatação de que a tradução da fé, que se concretiza nos Padres da Igreja, não só não é unívoca e contínua, mas nem mesmo é a única possível.
Aquele que é o cristianismo do I-V séculos não parece então como expressão de uma inculturação, certamente crucial no acontecimento histórico da fé, mas não absolutizável no terreno das formas e sobretudo da inteligência recíproca do crer e do pensar, que o cristianismo é capaz de produzir na relação com o humano. Daí a dificuldade que a leitura histórica de Ratzinger tem em olhar para o amadurecimento de outras culturas teológicas que não a europeia e a mediterrânea, porque filhas do encontro com “razões” diversas que não a do logos.
A América Latina, assim como as várias regiões da Ásia e os confins de fratura e encontro ecumênicos, não representa apenas os lugares da geografia de um cristianismo que deve mensurar-se com o mundo global. São a expressão da capacidade da fé e do Evangelho de dialogar com o humano e com as tantas formas da sua "razoabilidade", num esclarecimento recíproco que encarna talvez no sentido mais íntimo e profundo o adágio que Gregório Magno referia à inteligência da Bíblia e segundo a qual: “scriptura crescit cum legente”.
A reflexão sobre a história que perpassa o pensamento teológico de Ratzinger expressa, portanto, uma compreensão específica do que é o cristianismo: um estado que é o último da natureza humana, no qual a ruptura entre fé e razão é sanada graças à uma fé que é estruturalmente "razoabilidade" e, portanto, é limite do pensar porque é sua regra.
Tal visão da história evidencia o valor do itinerário histórico do cristianismo, entendendo este último como uma trajetória linear, onde os momentos de crise não são curvas fechadas, mas passagens necessárias para retornar à dinâmica de poder falar do caráter absoluto do cristianismo como verdade acreditada não apenas sobre Deus, mas também sobre o homem.
Assim, a história, tal como Ratzinger a entende, torna-se o lugar onde a Igreja e os cristãos operam uma escolha “seletiva”, ao olhar para uma traditio feita de continuidade temporal e doutrinal marcada pelo critério da fé “reta” (orthodoxa), ou seja, daquela que se apresenta como "razoável". No entanto, isso exclui da relação com a traditio um espaço mais extenso, tanto no sentido sincrônico quanto no diacrônico, que é o do pensamento teológico múltiplo que o cristianismo produziu, das tantas fés "retas" que são possíveis diante das diferentes formas de razoabilidade do humano.
Tal constatação permite apreender um traço peculiar da biografia intelectual de Ratzinger, ou seja, sua natureza fortemente "europeia". Nisso se percebe um elemento de verdade nos juízos que veem em sua teologia a expressão de uma tentativa de restaurar a centralidade, ao menos cultural, à Europa e ao que para Ratzinger é a sua tradição cultural e espiritual, indissociavelmente fundida com o cristianismo.
Certamente é verdade que estamos diante de uma tentativa de redefinir, em um mundo que não é mais europeu, o papel religioso e intelectual do cristianismo no Velho Continente. E, no entanto, a imagem da assembleia do Vaticano II, dos milhares de bispos reunidos na basílica de São Pedro, é também o ícone de uma Igreja que amadurece de modo irreversível, na segunda metade do século XX, a consciência generalizada de ter uma natureza “planetária”, isto é, de ser uma totalidade na qual habitam traduções diferentes da fé e sua traditio, chamadas à mesma responsabilidade diante do Evangelho e do mandato de proclamar o querigma.
Para uma Igreja que entrou nessa dimensão, a história unívoca da fé, concebida por Ratzinger, exige ser integrada, talvez transcendida, em uma concepção que apreenda plenamente seu valor como lugar teológico e espaço no qual se dão os sinais dos tempos. O dualismo entre Palavra e Evento, entre Palavra e história, que para a sensibilidade de Ratzinger é um elemento arriscado, que se torna também uma deriva para a fratura interna de uma traditio entendida como continuidade absoluta e coerente, é antes uma polaridade irredutível, que produz inteligência recíproca num crescimento em profundidade e qualidade da fé que é, no seu irredutível pluralismo, processo de humanização.
O valor da reflexão teológica de Ratzinger permanece central para compreender as orientações culturais e magistrais da Igreja nos últimos quarenta anos. E tanto mais quanto se consegue apreender criticamente as suas características, as instâncias e sobretudo os seus limites.
A orientação fortemente marcada pela centralidade do Evento/Cristo como ponto em que o cristianismo se revela na sua absolutez como salvação do humano, responde a exigências centrais na reflexão teológica e filosófica dos anos 1950 e 1960 e produz uma interpretação do mandato conciliar – a atualização indicada por João XXIII no discurso de abertura de 11 de outubro de 1962 – que requer completar o caminho da Igreja com a colegialidade e a noção do Povo de Deus (Lumen gentium), ou com o reconhecimento da unicidade da fonte da Revelação mediada pela traditio e scriptura (Dei verbum).
Nas décadas seguintes, porém, esse mesmo esquema determina uma leitura que de crítica se torna pessimista da contemporaneidade, identificando um hiato entre a fé e a humanidade, entre o cristianismo e a razão que, no entanto, responde a uma espécie de translação do “caso europeu” em escala planetária. É essa problematicidade que emerge do pensamento teológico de Ratzinger que o torna um ponto de confronto imprescindível, tanto para seus continuadores quanto para seus críticos.
[1] Cf. Ratzinger, entre tradição e modernidade. Entrevista com Andrea Grillo, por P. Mele, disponível aqui.
[2] Cf. M. Borghesi, La salvezza è una storia. La teologia di Joseph Ratzinger, disponível aqui.
[3] Cf. J. Ratzinger, Popolo e casa di Dio in Sant’Agostino, Jaca Book, Milano 1971; Idem, San Bonaventura: la teologia della storia, Porziuncola, Assisi, 2008.
[4] Cf. J. Ratzinger: Introdução ao cristianismo, Herder, 1970.
[5] Idem, ibidem, p. 39.
[6] Ibidem, p. 49.