04 Janeiro 2023
"[Bento XVI] oferecia ao mundo secular não "toda a oferta" do cristianismo, mas seu núcleo humanístico. Fazia isso com a paixão teológica, de quem soube extrair da doutrina cristã os valores que podiam ser partilhados pela razão pública, mas também com a competência filosófica de quem havia absorvido a lição de Habermas e também de Rawls, o filósofo estadunidense que estava explicitamente no centro daquele discurso", escreve o filósofo, jornalista e escritor italiano Giancarlo Bosetti, diretor da revista de cultura política Reset, cofundada com Norberto Bobbio, dentre outros, em artigo publicado por La Repubblica, 03-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ratzinger partilhou com Habermas a perspectiva “pós-secular”, ou seja, a ideia de que para as sociedades contemporâneas seria necessário abandonar a narrativa clássica da modernidade como secularização, desencanto, abandono da religião às margens da sociedade ou seu confinamento à esfera privada.
Ambos viam positivamente a possibilidade do diálogo entre razão pública e fé de ambas as partes pudesse tirar proveitos ou, mais ainda, pudessem ser ativados processos de "aprendizado mútuo". E ambos pronunciaram essas palavras - que desde então entraram em circulação - durante um encontro ocorrido em Munique em janeiro de 2004 na Academia Católica da Baviera, um ano e poucos meses antes de o cardeal se tornar Papa. Os discursos que proferiram (reunidos em Razão e Fé em Diálogo, livros da Reset-Marsilio, 2004) tiveram importantes e originais pontos de convergência.
Habermas abriu o encontro com a célebre questão posta pelo jurista alemão Ernst-Wolfgang Böckenförde: o Estado liberal e secularizado alimenta-se de premissas normativas que ele sozinho não pode garantir (porque se pregasse alguma forma de ética não seria mais liberal). Portanto, é possível que a religião ainda possa fornecer reservas de moralidade. Esse suporte suplementar ao progresso civil e jurídico já havia sido codificado por John Rawls na obra de sua maturidade, Liberalismo Político, quando percebeu que não poderia excluir da história e da teoria da justiça a experiência das mobilizações religiosas que haviam permitido a afirmação dos direitos civis.
Ratzinger, por sua vez, acolheu a ideia de uma limitação recíproca entre razão e fé, que no caso da última refreasse os impulsos fundamentalistas, e no caso da primeira oferecesse referências morais úteis para prevenir alastramentos dos resultados incontroláveis da ciência e tecnologia. Ele, ferrenho inimigo do relativismo, que mais tarde estigmatizaria na homilia de abertura do conclave, que o elegeria pontífice em abril de 2005, abriu-se aqui, diante de Habermas, para uma perspectiva intercultural, que reconhecia como tanto o cristianismo como a racionalidade ocidental não poderiam pretender representar uma universalidade absoluta, e como eles fossem o produto de um contexto histórico específico. Razão pela qual era necessário dialogar com outros contextos, muçulmanos, budistas, hindu, todos atravessados por tendências desviantes e radicais, mas também por contratendências abertas à racionalidade e à tolerância.
Por esse aspecto, o legado de Ratzinger é indubitavelmente contraditório. Foi ele, prefeito da fé, quem concluiu o processo no Santo Ofício do teólogo pluralista belga Jacques Dupuis, com uma notificação denunciando os perigos do diálogo entre as religiões, porque o diálogo corre o risco de colocar em segundo plano o anúncio evangélico, a única verdade da fé admissível e autossuficiente. Foi ele quem conseguiu que João Paulo II assinasse o documento "Dominus Iesus" de 2000, que parecia retroceder vistosamente em relação às conquistas do Concílio Vaticano II.
Mas também é verdade que ainda foi ele quem escreveu essas páginas do encontro de Munique, assim como aquele discurso nunca proferido na Universidade Sapienza de Roma, em 2007, no qual delineava corajosamente a sua mensagem como chefe da Igreja Católica como portador de uma contribuição de "humanismo" à vida coletiva. Oferecia ao mundo secular não "toda a oferta" do cristianismo, mas seu núcleo humanístico. Fazia isso com a paixão teológica, de quem soube extrair da doutrina cristã os valores que podiam ser partilhados pela razão pública, mas também com a competência filosófica de quem havia absorvido a lição de Habermas e também de Rawls, o filósofo estadunidense que estava explicitamente no centro daquele discurso.
Havia uma distinção clara entre doutrinas abrangentes, próprias de todas as religiões, por exemplo, toda a doutrina e a dogmática cristã, com tantos elementos "excedentes" que escapam da área razoável de uma partilha com outras fés e culturas seculares, e núcleos de humanismo que se podem sustentar em comum: a zona de sobreposição (de “overlapping”, como a chamava Rawls). É paradoxal que o discurso de Bento XVI mais próximo da filosofia liberal tenha sido alvo de uma campanha de boicote, em nome da liberdade da ciência, que certamente teria merecido uma causa melhor.
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Habermas, Ratzinger e a filosofia liberal. Artigo de Giancarlo Bosetti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU