05 Janeiro 2023
"Sim, o papa considerado conservador tratava com respeito e atenção as mulheres, quase único na cúria, revelando com suas escolhas ser capaz de iniciar transformações revolucionárias", escreve a historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma La Sapienza, em artigo publicado por La Stampa, 02-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Tive a sorte de me encontrar com Joseph Ratzinger, antes e depois de seu pontificado. A primeira vez foi em 2000: tínhamos que apresentar juntos um livro sobre o Jubileu e fomos os únicos a chegar na hora. Os outros começaram a chegar aos poucos, meia hora atrasados. Admirei a calma e a humildade com que o cardeal, que era o convidado mais importante, ficou esperando e, sobretudo, a forma como me tratou, demonstrando sincera curiosidade pelo que eu fazia, sem o menor vestígio do paternalismo com que geralmente o clero – sobretudo de altos nível - trate as mulheres.
A sua atitude era de um professor que falava com uma colega ainda que menos famosa do que ele, atitude que sempre encontrei quando voltei a revê-lo, mesmo quando havia se tornado Papa e fui pedir seu consenso para uma revista do Osservatore Romano destinada às mulheres e escrita por mulheres. Ele prontamente aceitou dizendo que estava curioso para ver o que escreveríamos. A última vez que o encontrei, Ratzinger já era Papa Emérito, debilitado mas extremamente lúcido, como sempre atento a observar o interlocutor com seu olhar profundo e doce. Ele me perguntou se nosso suplemento mensal passava por dificuldades, se tinha inimigos. Com um pouco de constrangimento, eu lhe respondi que sim: “Então significa que vocês estão fazendo um bom trabalho”, ele respondeu.
Sim, o papa considerado conservador tratava com respeito e atenção as mulheres, quase único na cúria, revelando com suas escolhas ser capaz de iniciar transformações revolucionárias.
De fato, foi certamente quem lutou com mais coragem e lealdade contra os abusos: a sua primeira intervenção como Papa foi para retirar as proteções de silêncio conivente que escondiam as culpas do fundador dos Legionários de Cristo e obriga-lo a renunciar. As novas regras que estabeleceu para punir os abusos quando era prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé visavam uma justa severidade, capaz de garantir um processo justo também para o culpado e, sobretudo, um tratamento igualitário para todos. Cláusula infelizmente pouco aplicada, como demonstra o caso Rupnik.
Um detalhe permanece em minha lembrança: na severa carta que o Papa escreveu ao clero irlandês, culpado de abusos e silêncios, ele definiu - único entre os bispos católicos - suas culpas como "abusos contra menores", enquanto a expressão usada por todos é sempre “abuso de menores”. Ele estava bem ciente de que mesmo aquela pequena diferença lexical era determinante.
Outra decisão decididamente revolucionária foi a proclamação de Hildegard de Bingen como doutora da igreja. Hildegard não era nem mesmo santa – de fato foi canonizada em 2012 a seu pedido justamente para declará-la doutora da Igreja – mas era uma personagem inquietante, que viveu na Idade Média, pouco apreciada na tradição católica, e que voltou aos holofotes apenas graças às feministas e aos ambientalistas: umas, retomando as suas composições musicais, os outros, suas receitas e remédios de base natural. Aquela do papa foi uma decisão inconformista, que trouxe de volta ao palco uma mística e uma intelectual de valor, uma médica, uma compositora e, sobretudo, a primeira mulher a pregar nas catedrais da Alemanha. Uma mulher excepcional, mas incômoda, da qual ele não tinha medo.
Mas, acima de tudo, sua decisão de renunciar foi certamente corajosa e inovadora: ainda não sabemos exatamente por que o fez, certamente ao lado das condições de saúde havia também o desconforto de se ver cercado por colaboradores pouco dignos. De fato, Ratzinger foi certamente mais capaz de julgar pensamentos e obras do que a natureza humana daqueles que o cercavam.
Talvez sua mente sempre tenha voado alto demais, sempre sabendo ler com precisão o papel do cristianismo no mundo atual e a difícil condição da Igreja.
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Bento XVI. Sua revolução silenciosa foi a primeira a valorizar as mulheres. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU