21 Dezembro 2011
Marco Politi, com certeza, tem um ponto de vista. Jornalista e comentarista italiano veterano, sobretudo para o esquerdista La Repubblica, as simpatias de Politi claramente correm para ala progressista da Igreja Católica. Portanto, pode ser tentador ver o seu novo e crítico livro sobre Bento XVI, intitulado Joseph Ratzinger: Crise de um papado, como os previsíveis resmungos de alguém que simplesmente não gosta do que esse papa representa. Embora compreensível, isso seria um erro.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 16-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu conheço Politi há duas décadas, cobrindo os acontecimentos do Vaticano com ele e lendo suas produções. Independentemente da opinião pessoal de cada um a respeito dos seus pontos de vista em geral, ele é um astuto observador, e sempre há algo a aprender com o que ele tem a dizer (uma prova de que Politi é levado a sério no Vaticano é que Gian Maria Vian, editor do L'Osservatore Romano, foi um dos painelistas da apresentação do livro em Roma no dia 16 de novembro – embora Vian tenha dito que participaria como um "advogado do diabo", para argumentar que o livro "não deve ser canonizado").
A principal tese de Politi está expressa na provocadora afirmação de que Bento XVI é um "papa de meio turno".
Segundo Politi, Bento XVI mergulha na direção da Igreja ou na atuação como líder global somente quando as circunstâncias o exigem. Sua paixão, no entanto, está focada em seus estudos teológicos privados e em seus próprios escritos.
"Joseph Ratzinger se revelou um líder frágil", escreve Politi: "Desconfortável na arte de governar, hesitante para enfrentar os problemas internos da Igreja, mais sensível à teologia do que à geopolítica".
O resultado, de acordo com Politi, é uma "brecha na governança".
Bento XVI, aos olhos de Politi, não articulou uma visão clara para enfrentar os grandes desafios da Igreja, como a escassez de padres. Até agora, afirma Politi, as duas reformas mais consequentes sob a vigilância de Bento XVI – normas mais rígidas para os abusos sexuais e gestão mais transparente do dinheiro - foram "impostas pelas circunstâncias."
Talvez mais prejudicial, de acordo com Politi, é que a relevância geopolítica da Igreja Católica acumulada com João Paulo II está em queda livre. Por exemplo, ele afirma que Bento XVI foi pouco incisivo ao falar sobre a Primavera Árabe, sem dúvida a mais significativa mutação da ordem mundial desde o colapso do comunismo.
No Vaticano, relata Politi, há um sentimento de frustração. Ele cita uma autoridade vaticana que diz que, na ausência de reuniões mensais com os chefes de departamentos, "todo mundo está dirigindo a sua própria loja, sem qualquer referência a uma direção comum ou a uma visão compartilhada".
Como resultado, escreve Politi, mesmo depois de seis anos e meio de pontificado de Bento XVI, "um padre, um jornalista ou um historiador da Igreja ainda podem ser abordados durante uma conversa e confrontados com uma pergunta aparentemente bizarra: 'Como é este papa?'".
Na verdade, há muitas coisas abertas ao debate na análise de Politi.
De um lado, ele fornece uma reconstrução especulativa do conclave de abril de 2005, colocando um grande peso em um suposto conluio de conservadores pró-Ratzinger na Cúria Romana, liderados por diversos prelados de língua espanhola. Ele repete uma tese duvidosa que ele já havia apresentado antes, de que as mudanças de regra introduzidas por João Paulo II, que prevê a eleição por uma maioria simples, em vez dos tradicionais dois terços no caso de um impasse prolongado, forçou os opositores a Ratzinger a capitular, porque eles sabiam que uma coligação de 50% mais um podia se manter por vários dias e conquistar o seu escolhido.
Politi conclui que esse lobby pró-Ratzinger não tinha um projeto de longo prazo para o futuro da Igreja, mas, ao contrário, era guiado por um "reflexo do medo" e por uma "necessidade obsessiva de identidade".
Fazendo um levantamento dos quase sete anos do reinado de Bento XVI, Politi acusa o papa de não avançar com o programa de reforma de muitos progressistas, incluindo a descentralização do poder de Roma. Ele também lamenta as decisões de Bento XVI de conceder uma maior permissão para a antiga missa latina e de levantar a excomunhão de quatro bispos tradicionalistas.
É desnecessário dizer que tudo isso irá atrair fortes réplicas de alguns setores.
No entanto, em sua afirmação de uma "brecha na governança", Politi se situa em um terreno razoavelmente objetivo. Dezenas de outros observadores chegaram à mesma conclusão, incluindo os seus colegas italianos Andrea Tornielli e Paolo Rodari no livro de 2010 Attacco a Ratzinger – ambos inclinados a uma simpatia muito maior pela teologia e pela política de Bento XVI.
A brecha de governança, ocasionalmente, irrompe em na forma de um colapso público, como a causa célebre em torno de um bispo negacionista (do Holocausto), ou os explosivos comentários públicos de algumas autoridades vaticanas sobre a crise dos abusos sexuais. Mais rotineiramente, a brecha se registra em uma silenciosa falta de direção e desengajamento das questões do cotidiano. O declínio do interesse midiático pelo Vaticano e pelo papado ao longo dos últimos seis anos reflete essa realidade. Com efeito, o Vaticano se tornou em grande parte uma história íntima católica, em grande contraste com os anos de João Paulo II.
Outro veterano escritor italiano, Luigi Accattoli, recentemente dedicou um post de 2.000 palavras em seu blog para responder ao livro de Politi. Em defesa do papa, Accattoli afirma que Politi ignora a sabedoria da ênfase de Bento XVI na conversão pessoal em vez da reforma estrutural e desvaloriza os passos que ele tem dado para combater o abuso sexual ou para ir ao encontro da cultura secular.
No entanto, quando Politi escreve que o "maior pecado deste pontificado é que, no Vaticano, eles falam muito pouco sobre as escolhas estratégicas que precisam ser feitas", Accattoli acrescenta um amém: "Eu não saberia dizer isso melhor".
A chave está em compreender que Bento XVI se vê como um papa ensinante, e não (pelo menos não principalmente) como um papa governante.
Bento XVI acredita profundamente no poder das ideias, e Politi oferece uma anedota extraordinária que ilustra esse ponto. Pouco depois da eleição de Bento XVI, conta Politi, o porta-voz do Vaticano perguntou ao novo pontífice como ele queria que fosse o seu retrato oficial (foto ao lado). Quando Bento XVI manifestou desinteresse, o porta-voz lembrou o papa que "uma imagem vale mais que mil palavras". Bento XVI ofereceu esta resposta lapidar: "Sim, mas um conceito vale mais que mil imagens".
Como observa Politi, essa convicção atravessa o papado de Bento XVI, até mesmo o seu estilo pessoal. Quando Bento XVI lê seus discursos, ele raramente faz contato visual e raramente varia seu ritmo ou sua entonação – aparentemente convencido de que um bom argumento não requer artifícios.
Pode muito bem ser que, daqui a 200 anos, Bento XVI será lembrado como um dos grandes papas ensinantes. Suas três encíclicas obtiveram críticas positivas, e seus livros sobre Jesus também têm atraído interesse fora da Igreja. Seus discursos em suas viagens estrangeiras geralmente manifestam ser pensados e construtivos, talvez especialmente a partir daquilo que hoje é uma reflexão em quatro volumes sobre fé, razão e democracia, formada por discursos em Regensburg em 2006, no Collège des Bernardins de Paris em 2008, no Westminster Hall em 2010, e no Bundestag da Alemanha neste ano.
Tudo isso, no entanto, tem um preço.
Por escolha e por temperamento, Bento XVI está inclinado a brandir as ferramentas da arte de governar tentando moldar os eventos no aqui-e-agora, seja na Igreja, seja na cena mundial. Essa é uma receita para um papado e um Vaticano um pouco mais retraídos, politicamente menos engajados e menos "relevantes" para os padrões habituais – sem falar ocasionalmente desorganizados e pegos de surpresa por desdobramentos imprevistos.
Dependendo de quem está olhando, essa preferência pela reflexão à realpolitik ou é charme de Bento XVI ou o seu calcanhar de Aquiles. Mas, como diz o ditado, é o que é.
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Politi admirava João Paulo II pela forma como ele era capaz de exercer o "poder suave" do papado para moldar a história do seu tempo, desde o colapso do comunismo até a emergência do mundo em desenvolvimento. Uma das passagens mais perspicazes de Crise de um papado é quando Politi identifica os quatro grandes papéis que o papado desempenha no cenário mundial, bem fora das fronteiras da Igreja.
No fim do reinado de João Paulo II, escreve Politi, o papado foi amplamente entendido por desempenhar estes papéis originais:
"Esse é o legado, para além da coerência do seu próprio credo e do testemunho dos seus próprios valores, do qual a maior ou a menor presença e influência da Igreja Católica na arena planetária depende", escreve Politi.
Certamente pode-se argumentar que Politi desvaloriza as contribuições de Bento XVI nessas frentes. Por exemplo, os quatro discursos papais listados acima ofereceram fortes desafios para os "erros e horrores" da fé separada da razão. A visão de Bento XVI de uma "aliança de civilizações" entre o cristianismo e o Islã lançou as bases para a cooperação em uma ampla gama de frentes, e a Religion Newswriters Association recentemente sugeriu nomear o papa como "Pessoa do Ano" pelos seus esforços para melhorar as relações com o judaísmo .
Também se poderia argumentar que Politi deixou pelo menos um papel-chave fora de sua lista: o papado como porta-voz do direito da sociedade à religião em uma época altamente secular, insistindo que as instituições religiosas e os indivíduos podem ser parceiros construtivos em sociedades seculares, embora ainda permaneçam fiéis a si mesmos. Essa é a essência da visão de Bento XVI do cristianismo como "minoria criativa".
No entanto, Politi provavelmente está certo de que os quatro papéis que ele identificou representam elementos-chave do legado de João Paulo II que, em maior ou menor grau, têm sido atenuados durante o papado ensinante de Bento XVI. Como reanimá-los e quem está melhor equipado para fazer isso: essas são questões que podem muito bem estar entre as questões a ser enfrentadas pelo próximo conclave.
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Como qualquer livro de um bom repórter, Crise de um papado oferece várias pedras preciosas de intuições e factoides ao longo do caminho. O que se segue são duas pepitas do livro de Politi que merecem ser destacadas.
Uma delas diz respeito ao papel das mulheres. Politi observa que, em um encontro com o clero de Roma em 2006, Bento XVI disse: "É justo perguntar se, no serviço ministerial (...), é possível dar mais espaço, dar mais ofícios de responsabilidade às mulheres".
No entanto, cinco anos depois dessas observações, indica Politi, a situação no Vaticano – que é, afinal de contas, o ambiente ministerial sobre o qual um papa tem o controle mais direto – está em grande parte inalterado. Aqui está o que ele relata:
- Há apenas duas mulheres no nível dos "superiores", ou seja, em papéis de tomada de decisões: a irmã salesiana Enrica Rosanna, subsecretária da Congregação para os Religiosos, e Flaminia Giovanelli, subsecretário do Conselho Justiça e Paz, membro leiga dos Focolares.
- Na primeira seção da Secretaria de Estado, que lida com assuntos internos da Igreja, nenhuma mulher detém o papel de "chefe de ofício", e há apenas uma irmã que trabalha no menor nível administrativo. Na segunda seção, responsável pelas relações internacionais, é a mesma coisa – apenas uma mulher no nível administrativo básico.
- Na Congregação para a Doutrina da Fé, não há nenhuma teóloga entre os consultores, e não há nenhuma mulher na comissão responsável pelos casos matrimoniais. Na Comissão Teológica Internacional, que assessora a congregação em questões doutrinais, há duas mulheres entre os 29 membros.
Outra pepita refere-se à falta de padres.
Politi observa que algumas pessoas no Vaticano se sentiram consoladas com um ligeiro aumento no número global de padres de 2004 a 2009. Em todo o mundo, o número de padres aumentou de 405.891 para 410.593 nesse período, mais um adicional de 15.000 seminaristas. Como observa Politi, esse crescimento veio da África e da Ásia. O número de padres na América do Norte diminuiu em 4.000, e a queda na Europa foi de 8.000.
No entanto, como Politi também observa, a população católica total no mundo também cresceu em 15 milhões em apenas um ano, de 2008 a 2009, de modo a desproporção numérica entre padres e povo se expandiu dramaticamente.
Isso aponta para um fato pouco avaliado da vida católica: o rápido crescimento da população católica em uma determinada parte do mundo normalmente piora a escassez de padres, porque a Igreja pode batizar pessoas mais rapidamente do que pode ordená-las.
O paradoxo, como observa Politi, é que a Igreja no Ocidente está se tornando cada vez mais dependente de padres vindos de partes do mundo onde a escassez é realmente muito mais aguda. Ele cita estatísticas de 2003 de que, em quatro regiões italianas (Abruzzo, Molise, Toscana e Umbria), padres estrangeiros representam mais de 10% de todo o clero diocesano. No Lácio – a região que inclui Roma –, 20% de todos os padres envolvidos no ministério pastoral direto vêm do exterior.
Em algum ponto, a questão deverá ser feita: uma situação em que dois terços do povo católico vive no hemisfério Sul, mas dois terços dos padres vivem no hemisfério norte, faz algum sentido? Essa, talvez, seja outra escolha estratégica que o Vaticano, no fim das contas, terá que enfrentar.
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Os perigos de um ''papa de meio turno'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU