11 Fevereiro 2021
A variante sul-africana, a miragem das vacinas, a perspectiva de sair da pandemia só em 2024. É ilusório pensar em sair dessa situação abandonando um continente.
A reportagem é de Giulia Belardelli, publicada por L’Huffington Post, 10-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em mais de um ano, a pandemia da Covid-19 desmentiu uma longa série de previsões. Entre elas, a hipótese de que o vírus teria de alguma forma poupado o continente africano, por ser menos urbanizado e demograficamente mais jovem.
Hoje, quando os dados fotografam – e apenas parcialmente – um aumento dos contágios em muitos países africanos, e quando o mundo está em alerta pela chamada “variante sul-africana”, está claro que se tratou – mais uma vez – de uma ilusão.
O coronavírus, depois de se espalhar pela África, corre o risco de ficar lá por muito tempo, até se tornar endêmico e cada vez mais sujeito a mutações. As vacinas, acumuladas pelos países mais ricos, são uma miragem: de acordo com um estudo da Economist Intelligence Unit, a região pode ter que esperar até 2024 para alcançar a imunidade de rebanho.
E isso significa condenar o continente mais jovem do mundo a uma forma implacável de Long Covid, onde um número cada vez maior de contágios e vítimas também se traduz em oportunidades perdidas para gerações inteiras. Menos escola, menos trabalho, menos turismo, menos investimentos, menos oportunidades.
Nas últimas semanas, ficou mais forte o grito de ajuda que vem do continente, começando por Cyril Ramaphosa, presidente do Congresso Nacional Africano, da República da África do Sul e da União Africana. Na segunda-feira, o líder sul-africano teve um encontro virtual com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “A União Europeia tem fortes laços de solidariedade e comerciais com a África. Continuaremos trabalhando juntos para fortalecer a estrutura Covax para um acesso justo às vacinas para todos. A África não pode ser deixada para trás em termos de apoio sanitário e estabilidade econômica”, tuitou Ramaphosa logo depois da reunião.
Do norte da África à África subsaariana, o coronavírus está avançando implacavelmente também no continente africano. No dia 8 de fevereiro de 2021, todos os 54 Estados africanos registraram um total de 3.634.276 contágios e mais de 88.993 mortes. Entre os países mais afetados, África do Sul (1.463.016 casos e 44.946 mortes), Marrocos (473.047 casos e cerca de 8.309 mortes), Tunísia (212.679 casos e 6.893 mortes), Egito (167.525 casos e 9.407 mortes) e Etiópia (139.408 casos e 2.116 mortes) (dados: Johns Hopkins Coronavirus Resource Center).
Na lista das 10 nações com maior aumento diário de novos casos positivos, mais da metade se encontra na África, onde a taxa de mortalidade pandêmica subiu para 2,5%, superando a média global de 2,2%. Como mostra o mapa realizado pela OMS (veja abaixo), trata-se das áreas marrons mais escuras, ou seja, aquelas em que o número de novos casos semanais aumentou mais de 50%. Trata-se da Somália, Botswana, Sudão do Sul, República Democrática do Congo, Gabão e Camarões.
Mapa do aumento percentual de casos semanais no mundo, atualizado em 09-02-2021 (Imagem: OMS)
Entre os países que mais sofrem estão também Malawi e Nigéria, onde a crescente demanda por oxigênio está levando ao esgotamento dos estoques.
A questão é que, apesar de todas as boas intenções, a máquina das vacinas, tal como está, não será capaz durante anos de garantir imunização para toda a população mundial. Com o resultado de exasperar desigualdades e ilusões: as populações pobres condenadas a se tornar cada vez mais pobres, os países ricos, a se tornar cada vez mais velhos e fechados em si mesmos.
O mundo das ONGs está mais ativo do que nunca ao exigir um maior empenho dos governos, instituições e cidadãos para que a África não seja deixada para trás, alertando para os riscos coletivos de mais uma subestimação do problema.
Para alcançar o objetivo de vacinar pelo menos 60% da população, a África precisará de cerca de 1,5 bilhão de doses da vacina que, segundo as estimativas atuais, poderiam custar entre 8 bilhões e 16 bilhões de dólares, com custos adicionais de 20-30%, para o programa de distribuição das vacinas. No dia 3 de fevereiro, apenas quatro dos 54 países africanos haviam começado a vacinação em massa: Egito, Marrocos, Guiné e Seychelles.
Diante dos atrasos da Covax e da urgência de conter uma segunda onda muito mais virulenta do que a primeira, a União Africana está desbloqueando fundos, e alguns países estão negociando diretamente com laboratórios estrangeiros.
A China e a Rússia se demonstraram mais uma vez particularmente atentas às necessidades do continente. Ainda em junho, o presidente chinês, Xi Jinping, havia expressado a sua “generosidade” na cúpula China-África, prometendo aos países africanos que eles se beneficiariam com condições vantajosas durante a distribuição massiva de vacinas chinesas.
A maioria dos países do Magrebe já encomendou vários milhões de doses de Moscou e Pequim. A vacina Oxford-AstraZeneca, produzida no laboratório indiano Serum Institute, é um dos pilares do programa Covax. A sua eficácia limitada contra a variante sul-africana é um balde de água fria não apenas para a África do Sul – que suspendeu o programa à espera de mais estudos – mas também para toda a região onde a variante 501.V2 corre o risco de se tornar predominante.
Na África do Sul, “as altas taxas de mortalidade e contagiosidade da variante 501.V2” são de grande preocupação para Boniface Hlabano, chefe dos programas da African Medical and Research Foundation (Amref) no país.
“Os cemitérios estão se esgotando em toda a África do Sul. A escassez de caixões, os atrasos nos enterros e a falta de espaços mortuários são realidades difíceis de aceitar para quem perde um ente querido.”
A Médicos Sem Fronteiras (MSF) lançou um apelo sobre a imediata urgência das vacinas na África meridional, onde a nova e mais contagiosa variante já está devastando Moçambique, Eswatini e Malawi. “Estamos indignados com a injusta distribuição das vacinas contra a Covid-19 no mundo”, afirma Stella Egidi, médica-chefe da MSF.
“Enquanto em muitos países ricos as vacinações começaram há cerca de dois meses, países como Eswatini, Malawi e Moçambique, em extrema dificuldade, não receberam uma única dose para proteger as pessoas em maior risco, nem mesmo para o pessoal de saúde na linha de frente.”
Githinji Gitahi, CEO global da Amref Health Africa, convida a abrir os olhos para o fato de que “esta pandemia pode se tornar endêmica e permanecer conosco por muito tempo”.
“Hoje estamos observando o vírus se espalhar para as áreas rurais, e isso significa que ele vai ficar conosco por muito tempo.” De acordo com Gitahi, são necessários “uma solidariedade e um senso de responsabilidade globais para garantir que nenhum país seja deixado para trás. Porque, lembremos disto, ninguém está a salvo se todos não estiverem a salvo”.
Ainda mais porque – avisa ele – esta “não será a última pandemia, mas apenas uma das que nos aguardam, sobretudo levando em consideração o grande problema que teremos de enfrentar, aquele grande elefante branco, que são as mudanças climáticas”.
De acordo com o número 1 da ONG, é necessário desenvolver programas de distribuição das vacinas mais eficazes. “A Amref, como ONG internacional africana ativa em 35 países africanos, está no centro da conversa sobre as políticas e sobre o quadro normativo necessários para garantir que a vacina anti-Covid esteja disponível para todos e para permitir que se saiba exatamente quais pessoas precisam delas primeiro, definindo as prioridades e apoiando os governos. Obviamente – continua Gitahi – disponibilizamos os nossos recursos, como os Flying Doctors (médicos voadores) para transportar as vacinas para todos os países, ou os agentes comunitários de saúde, por meio dos quais conseguimos solicitar a demanda e superar as incertezas sobre a distribuição das vacinas nas comunidades, garantindo que aqueles que precisam da vacina possam ter acesso a ela. Mas não podemos fazer tudo isso sozinhos.”
A população tem medo, mas também é testada por sentimentos de confusão e esgotamento, diz Boniface Hlabano. Muitas pessoas são enganadas pela desinformação e por teorias anticientíficas. Um caso extremo é o da Tanzânia, cujo presidente rotulou as vacinas como perigosas e desnecessárias, exortando seu próprio povo a confiar em Deus e a usar remédios alternativos, como inalar vapor.
“Existem opiniões contrastantes em relação à vacina anti-Covid, que vão do entusiasmo ao medo causado por mitos crescentes e ideias equivocadas que alguns propagam”, explica Hlabano. “Circulam teorias ultrajantes sobre vírus e vacinas, como a tese que vincula a rede 5G à epidemia, ou aquela que defende que os brancos já estão vacinados, e que as vacinas que chegam à África têm como objetivo esterilizar ou até matar os negros para reduzir a sua população e assim permitir a recolonização de África. Infelizmente, a ignorância é a coisa mais perigosa que pode haver durante uma crise.”
As razões para um apoio urgente para a gestão da pandemia na África são humanitárias e econômicas, ao mesmo tempo, como evidencia por uma recente análise da The Economist sobre o vírus como “pedágio para o crescimento”.
A pandemia – escreve a revista – corre o risco de minar o precário progresso da África subsaariana, destruindo o otimismo da população mais jovem do mundo. Já parece claro que o vírus deixará cicatrizes mais duradouras na África do que em outros lugares. É provável que o maior dano não venha do impacto imediato da pandemia, mas sim dos seus efeitos persistentes na economia, nas famílias e na sociedade.
O Fundo Monetário Internacional prevê que neste ano a África será a região de crescimento mais lento. Desde o início da crise – reconstrói a The Economist – 46 governos africanos introduziram subsídios de assistência social, mas isso não evitou que 32 milhões de pessoas caíssem em condições de extrema pobreza. Para evitar crises da dívida, muitos governos estão se preparando para cortar os gastos com infraestrutura, e isso vai obstaculizar ainda mais o crescimento.
“Embora grande parte do resto do mundo voltará a trabalhar, viajar, se divertir, a África poderá descobrir que a Covid-19, de fato, é endêmica. Os viajantes e os turistas que ajudam a gerar quase 9% do PIB ficarão longe dela. Fechamentos e toques de recolher sufocarão mercados e bares”, é a obscura previsão dos autores.
O aspecto mais preocupante diz respeito ao impacto dos prolongados fechamentos das escolas, conforme já apontado pela Save The Children. As salas de aula na região subsaariana foram total ou parcialmente fechadas há 23 semanas, acima da média global.
Como a metade dos africanos não tem eletricidade, sem falar de computadores e wi-fi, a aprendizagem remota é uma utopia. Muitas crianças, especialmente meninas, nunca mais voltarão aos seus livros. Muitas se tornarão crianças trabalhadoras ou esposas. Em uma área costeira do Quênia, por exemplo, apenas 388 das 946 alunas que engravidaram durante o fechamento da escola no ano passado retomaram os estudos.
De acordo com a The Economist, é necessária uma via dupla de intervenções para mitigar as calamidades do vírus na África: a primeira no front das vacinas, potencializando a Covax; a segundo no front dos empréstimos facilitados, garantindo aos tesouros africanos canais de acesso privilegiado ao crédito e apoiando as propostas do Banco Africano de Desenvolvimento e de outros sujeitos para cortejar mais capitais privados.
“Os gritos de ajuda da África, sob a forma de vacinas ou empréstimos, correm o risco de se perder no tumulto de uma crise verdadeiramente global”, conclui a análise.
“Mas a fragilidade das economias e das sociedades africanas é um motivo para agir rapidamente. É do interesse de todos ajudar. Enquanto o vírus se espalhar em algum lugar, ele pode sofrer mutação e se espalhar por toda parte.” Deveríamos ter aprendido pelo menos isso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
África está desarmada contra a Covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU