A extrema-brasileira “condensa três momentos históricos marcantes nos últimos cem anos”: movimentos totalitários dos anos 1930, com participação religiosa e civil; centralidade ideológica do militarismo na organização social, como na década de 1960; e aprofundamento na neoliberalização desde a crise de 2008, diz professor da UFMS
Desde o fim da ditadura militar, não foram poucos os teóricos que problematizaram o desenvolvimento do Brasil e a dependência latino-americana para com os países desenvolvidos, como os Estados Unidos, propondo alternativas à superação deste quadro. Menos de quatro décadas depois, contudo, o que se observa é uma “tentativa de retomada do passado pelas extremas-direitas”, adverte Argus Romero Abreu de Morais na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. As extremas-direitas dos países do Sul Global, pontua o entrevistado, “parecem convergir com os projetos (re)colonizadores dos países do Norte Global, opondo-se justamente a projetos que possam promover a autonomia nacional, regional e a reconfiguração da ordem global a partir dos seus interesses nacionais”.
A manifestação na Av. Paulista no último domingo, 07-09-2025, em que brasileiros carregam a bandeira norte-americana, pode ser um sintoma desse desejo. “Parece haver um espelhamento por inversão que faz com que as elites de alguns países historicamente excluídos estejam de acordo com a sua própria exclusão e inferioridade geopolítica, legitimando a marginalização dos seus países no cenário internacional, desde que se mantenham no poder interno, separando-se do ‘povo’, e que mantenham inalteradas as estruturas advindas do período colonial e escravocrata”, menciona.
Formado em História e mestre e doutor em Linguística, Morais tem analisado os discursos da extrema-direita brasileira que, segundo ele, surgem da aproximação com outros quatro tipos de discursos: político, militarista, fundamentalista e neoliberal. Ou seja, resume ele, distintas culturas conservadoras convergem no discurso político da extrema-direita, cuja retórica apoia-se em ideias que estão disseminadas no cotidiano dos brasileiros. Entre elas, o pesquisador destaca “a compreensão do indivíduo como investimento e como empresa; a propriedade privada como direito sagrado; o acúmulo de riqueza como principal índice de liberdade e de progresso individual, social e espiritual; a família cristã como fiadora dos valores morais; a rigidez hierárquica como princípio da organização social; a reaproximação entre Estado e Religião como garantia de hegemonia política dos grupos dominantes; e o uso da violência como condição necessária para a manutenção da ‘ordem’ e do ‘progresso’.
Na entrevista a seguir, Morais comenta a radicalização política no país, os discursos antidemocráticos e atuação de setores militaristas, fundamentalistas e ultraliberais que estão tentando colocar “em xeque o Estado democrático de direito e a soberania nacional”, além dos desafios para a próxima eleição presidencial.
Argus de Morais (Foto: Reprodução YouTube)
Argus Romero Abreu de Morais é graduado em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e em Letras-Português pela Claretiano. É mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutor em Linguística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com estágio doutoral na Universidade Paris-Est Créteil. É professor visitante na Faculdade de Artes, Letras e Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (FAALC/UFMS).
IHU – Como a extrema-direita foi gestada no Brasil? Quais os principais movimentos e organizações que estão por trás desse fenômeno?
Argus Romero Abreu de Morais – Vou responder às questões de forma pouco comum para o gênero entrevista, propondo algumas digressões históricas e, sempre que possível, diálogos com outras investigações sobre os temas abordados – além de me referir aos meus próprios textos, é claro. Isso deve tornar a entrevista um pouco mais densa, mas penso que ganha em consistência e amplitude de interpretação.
Passando às perguntas, elas são interessantes porque colocam um problema em relação à historicidade do próprio conceito de extrema-direita. De um lado, podemos falar que a sua retórica política se organiza no século XX, de outro, que os seus temas centrais remontam a épocas muito mais antigas. Se tomarmos, por exemplo, o problema da hierarquização do masculino sobre o feminino, ou A dominação masculina, para remeter ao livro do sociólogo Pierre Bourdieu, devemos voltar, pelo menos, à Antiguidade Clássica, se não ao processo de sedentarização. O mesmo se aplica ao controle da sodomia e sua patologização, práticas advindas, respectivamente, do medievo e da modernidade, como discute Michel Foucault no volume 1 de sua História da sexualidade: a vontade de saber. A questão da propriedade privada como direito natural, por sua vez, nos leva a considerar a formação do Estado Moderno e do modo de produção capitalista. Então, por mais que uma fórmula política tão regular em discursos da extrema-direita como “Tradição, Família e Propriedade” possa se organizar e circular a partir da década de 1930 no cenário político nacional, ela nos leva a pensar sobre a formação de estruturas históricas longínquas, presentes tanto nas instituições como na memória coletiva.
Em seu capítulo no livro Direita, volver!, lançado em 2015, o professor de Ciências Políticas da Unicamp Sebastião Velasco e Cruz propõe que a distinção entre o que chamamos de direita e de esquerda decorre da forma como cada campo olha para as desigualdades sociais. A direita, independentemente das diferenças de linguagem e de características dos seus seguidores, tende a considerar que tais desigualdades seriam sagradas, invioláveis, naturais ou inevitáveis, enquanto a esquerda tende a considerar injustificável a existência dessas desigualdades. O discurso político da extrema-direita, portanto, pode ser caracterizado pela tentativa de justificar e aprofundar à última potência essas desigualdades.
Curiosamente, um dos termos mais utilizados recentemente para nomear seus representantes é o de mito, o que nos leva às narrativas centradas na figura do herói e na glorificação da violência trazida pelas epopeias clássicas, como é o caso da Ilíada, de Homero. A associação não contraditória entre o pensamento religioso cristão e a lógica da guerra, algo que temos presenciado, por sua vez, surge com as Cruzadas. No século XII, São Bernardo de Claraval afirma que “os cavaleiros de Cristo, como lutam somente pelos interesses de Cristo, não incorrem em pecado algum, visto que, se matam, matam um inimigo de Cristo e, se morrem, o fazem por Cristo”.
Dito isso, para me ater às perguntas, podemos considerar que a extrema-direita brasileira hoje condensa, pelo menos, três momentos históricos marcantes nos últimos cem anos, quais sejam: a década de 1930, quando surgem os movimentos totalitários europeus e suas variantes no território brasileiro, contando com ampla participação civil e religiosa; a década de 1960, com a tomada do poder político pelos militares e com a centralidade ideológica do militarismo na organização das relações sociais, algo que volta a ecoar com a tentativa de expansão das escolas cívico-militares; e a crise de 2008, quando há o aprofundamento da neoliberalização nas sociedades ocidentais.
Em minhas pesquisas, tenho retomado um raciocínio desenvolvido pelo sociólogo jamaicano Stuart Hall. Em seu livro Da diáspora, o pensador retoma as reflexões do filósofo francês Louis Althusser para definir a ideologia como um sistema dinâmico, em constante movimento, colocando-se contrário a qualquer visão homogênea e estática dos fenômenos políticos. Portanto, qualquer estado da organização ideológica deve ser considerado temporário e decorrente das particularidades de um tempo. Partindo desse pressuposto, algumas perguntas são centrais à investigação que tenho desenvolvido, tais como: quando essas distintas culturas conservadoras se cruzam e adquirem coerência ideológica no Brasil atual? Como esse discurso passou a angariar legitimidade social no contexto recente, conseguindo milhões de novos adeptos? E, por fim, como tal discurso tem conseguido legitimar a violência contra grupos historicamente excluídos? Importante lembrar que o discurso militarista na Câmara dos Deputados não é novidade, setores alinhados a ele estão presentes no Congresso Brasileiro desde o início dos anos 1990, pouco após a promulgação da Constituição Federal de 1988, inclusive comemorando o 31 de março, data do golpe civil-militar de 1964.
Em 2024, publiquei um artigo com o professor Luiz Paulo da Moita Lopes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), buscando demonstrar que 2011 é o ano em que o militarismo e o fundamentalismo religioso passam a se cruzar em discursos na Câmara, motivo pelo qual começamos a associar este período à “virada moral” da extrema-direita brasileira. Pode-se dizer, em vista disso, que esse discurso político passou a ser gestado neste ano, mesmo que ainda sem ampla adesão popular, algo que virá no contexto pós-Junho 2013. Os usos do sagrado nesse discurso têm por objetivo legitimar o que tenho definido como retórica da guerra, responsável por instrumentalizar a violência com fins que seriam moralmente aceitáveis e supostamente universais, como é o caso da proteção da concepção tradicional de família e da resistência aos avanços dos direitos sexuais no país.
A eleição de Dilma Rousseff à Presidência da República representou uma ameaça simbólica aos grupos conservadores, não apenas por ocupar uma função hegemonicamente associada ao poder masculino no país, mas também por ela própria ter combatido a ditadura militar. Afora isso, a professora Elaine de Moraes Santos, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), tem demonstrado em suas pesquisas como o discurso político-midiático corporativo nas eleições de 2010 atribuía a Dilma a ausência da eloquência típica dos discursos de palanque, imputando-lhe um perfil amador e colocando-lhe como um “fantasma de Lula”, seu “cabo eleitoral”. São ataques que sofrerá continuamente ao longo dos seus quase dois governos, de 2011 a 2016, potencializados pela cultura patriarcal no país.
Em 2011, o seu Ministério da Educação, tendo à frente o então ministro Fernando Haddad (PT), sugeriu a proposta do Programa Escola Sem Homofobia. No mesmo ano, seu governo implementou a Comissão da Verdade e houve o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da união estável de casais homoafetivos. Neste contexto também estavam presentes as reações em torno da terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançado entre 2009 e 2010, como ressalta a professora Isabela Kalil, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, ao discutir As origens do bolsonarismo.
A partir de 2011, portanto, pode-se notar a reorganização do discurso político da extrema-direita brasileira atual, fazendo convergir distintas culturas conservadoras, tais como: a compreensão do indivíduo como investimento e como empresa; a propriedade privada como direito sagrado; o acúmulo de riqueza como principal índice de liberdade e de progresso individual, social e espiritual; a família cristã como fiadora dos valores morais; a rigidez hierárquica como princípio da organização social; a reaproximação entre Estado e religião como garantia de hegemonia política dos grupos dominantes; e o uso da violência como condição necessária para a manutenção da “ordem” e do “progresso”.
IHU – Qual é o ideário político da extrema-direita brasileira? Em que aspectos ele se assemelha e se diferencia de outros grupos de extrema-direita internacionais?
Argus Romero Abreu de Morais – Em um texto de 2019, eu propus que a extrema-direita brasileira atual surge da aproximação entre quatro discursos distintos:
(1) o político, responsável por legitimar as falas públicas como projetos de sociedade, mesmo que sejam violentos e, paradoxalmente, antipolíticos;
(2) o militarista, a partir do qual se pode notar o retorno das pautas de intervenção militar na cena pública ou a militarização da sociedade, como podemos ver pelas campanhas para a liberação e expansão do porte de armas na sociedade civil e, a partir de 2015, pelas manifestações nas ruas favoráveis à ruptura com o modelo democrático instituído em 1988, algo que teve seu cume nos eventos de 8 de janeiro de 2023;
(3) o fundamentalista, a partir da percepção de que a política tem que ser dominada pelo viés cristão de revelação da Palavra, assim como o Estado brasileiro deveria deixar de ser laico para se vincular a uma visão cristã, algo condensado, por exemplo, na ideia de que a Bíblia está acima da Constituição Federal;
(4) o neoliberal, a partir do qual o país deveria incorporar totalmente a lógica de mercado nas relações sociais, promovendo uma espécie de competição sem limites entre os grupos mais fragilizados na busca por direitos e renda e uma transferência completa dos serviços públicos para as grandes corporações, restringindo qualquer investimento que pudesse fomentar a diminuição das desigualdades, tais como programas sociais, fortalecimento das empresas estatais, investimentos em saúde e educação públicas, previdência pública etc.
Com relação às proximidades e diferenças com a extrema-direita internacional, cada país está submetido a fatores históricos, sociais, políticos, econômicos e religiosos específicos. Apesar disso, há dois aspectos que ajudam a sistematizar a análise: primeiro, o modo como esses grupos buscam voltar-se para uma idealização do passado pela tradição como forma de resistir às pressões contemporâneas em relação aos direitos humanos e à governança global, mobilizando discursos conspiracionistas, negacionistas e tendencialmente fundamentalistas para se oporem ao que chamam de globalismo, politicamente correto, avanço do comunismo e destruição dos valores nacionais e da família tradicional; segundo, se o neoliberalismo parece ser um componente fundamental no discurso da extrema-direita brasileira e de alguns países latino-americanos, como a Argentina nos últimos anos, a destruição do espaço político na Europa pelo modelo neoliberal após a década de 1960 e a crescente falência representativa e jurídica do Estado em prol do poder financeiro e corporativo seriam duas das principais causas do crescimento de grupos de extrema-direita nacionalistas e antiliberais nesse continente, como apontado pelo filósofo francês Jacques Rancière em O ódio à democracia.
Considerando os recentes acontecimentos, até mesmo os Estados Unidos têm se voltado para o fechamento do comércio multilateral e para a retomada do poder do Estado na economia. Isso demonstra a tentativa de retomada do passado pelas extremas-direitas de ambos os hemisférios, tendo a particularidade de que as dos países do Sul Global parecem convergir com os projetos (re)colonizadores dos países do Norte Global, opondo-se justamente a projetos que possam promover a autonomia nacional, regional e a reconfiguração da ordem global a partir dos seus interesses nacionais. Nesse sentido, parece haver, curiosamente, um espelhamento por inversão que faz com que as elites de alguns países historicamente excluídos estejam de acordo com a sua própria exclusão e inferioridade geopolítica, legitimando a marginalização dos seus países no cenário internacional, desde que se mantenham no poder interno, separando-se do “povo”, e que mantenham inalteradas as estruturas advindas do período colonial e escravocrata. Trata-se daquilo que Moysés Pinto Neto tem chamado de patriotismo paradoxal ou de vassalagem, visto que defende interesses neocoloniais.
IHU – Que discursos estão sendo construídos pela extrema-direita no país? Que projeto de Brasil está sendo gestado a partir desses discursos?
Argus Romero Abreu de Morais – Fundamentalmente, o discurso político da extrema-direita brasileira almeja a destruição da democracia representativa, com o fito de eliminar vozes dissonantes ao seu projeto e, com isso, de aprofundar as estruturas históricas de exclusão, sejam sociais, sejam étnico-raciais, econômicas, religiosas e de gênero. Se podemos falar de um projeto desses grupos à vista do contexto contemporâneo, a partir da recente intervenção dos Estados Unidos em aspectos soberanos do Brasil, penso que seria o de um alinhamento unilateral à perspectiva geopolítica estadunidense e, no plano interno, de aumento das desigualdades. Utilizam-se, para tanto, da linguagem do sagrado, de modo a criar identidades entre grupos socioeconomicamente tão distintos, ou mesmo diametralmente opostos. Como tentei sustentar em um texto intitulado A política como guerra mítica, publicado em 2024, o sagrado tem justamente esse poder, o de produzir coesão social e o de criar efeitos de que as pautas políticas em seu nome estariam acima das disputas ideológicas, uma vez que se alinhariam a projetos divinos, tidos como universais e evidentes.
IHU – A extrema-direita atua e se fortalece nas redes sociais. Que influência ela exerce nos nativos digitais?
Argus Romero Abreu de Morais – Este é um tópico recente e há muitas pesquisas sendo desenvolvidas a respeito. Remeto a dois livros lançados nos últimos anos que contribuem bastante nestas questões: Os engenheiros do caos, de Giuliano da Empoli, e O mundo do avesso, de Letícia Cesarino. A rigor, as redes sociais, como ferramentas técnicas ou tecnológicas, não criam valores, embora potencializem a produção e circulação de informações. Por esses meios, aproxima grupos que estão geograficamente distantes, alinhando pensamentos e gerando pertença grupal, além de garantir o anonimato.
Pode-se afirmar que, através das redes sociais, a perspectiva antissistêmica tem se tornado conservadora, e não progressista, como se costuma inferir. Se não cria valores, pode fomentar emoções negativas, como o medo e o ódio, e discursos conspiracionistas e negacionistas. Pela própria característica das redes, há, ainda, uma tendência ao reforço das próprias visões de mundo, as chamadas “bolhas”, de maneira que o contraste de opiniões, os debates e os diálogos com as diferenças dão espaço a uma hiperidentificação entre os semelhantes.
As redes digitais também têm diminuído a capacidade de se concentrar profundamente sobre análises complexas dos temas sociais, tornando tudo mais fluido, líquido, para utilizar uma expressão do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Um aspecto igualmente importante de ressaltar é que as redes não estão desprovidas de interesses econômicos. O que ficou conhecido como Big Techs são corporações com receitas maiores do que a maior parte dos Estados do mundo, contendo interesses políticos e ideológicos de mesma magnitude. Como demonstra tanto sua resistência à regulamentação jurídica em países como o Brasil quanto sua influência junto ao governo estadunidense para tentar coibir o desenvolvimento de tecnologias digitais que possam contrariar os interesses dessas empresas, como é o caso da recente investigação comercial aberta pelo governo estadunidense a respeito do Pix brasileiro, considerando-o como prática desleal.
Some-se a isso o fato de que as chamadas notícias fraudulentas (fake news), tradução proposta por Eugênio Bucci em seu livro Pode existir democracia sem verdade factual?, não devem ser compreendidas apenas como mentiras contadas por indivíduos nas redes. Ao contrário, a produção e circulação de tais conteúdos possuem intencionalidade criminosa e são fomentadas financeiramente para poderem adquirir maior visibilidade e promover maior impacto.
Além disso, precisam ser endossadas por uma rede de relações que envolve os ambientes online e offline. Essas notícias circulam e são impulsionadas em diferentes espaços da nossa vida cotidiana, podendo ser difundidas em igrejas, empresas, partidos, jornais etc. Trata-se de uma “arquitetura da desinformação”, e não apenas de uma atitude individual, como tentei propor juntamente com o pesquisador Carlos Henrique Bem Gonçalves, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em um texto publicado em 2023, no qual discutimos o papel das notícias fraudulentas e dos insultos verbais como estratégias antipolíticas da extrema-direita brasileira atual. Em síntese, a desinformação funciona como uma máquina do ódio, como bem descreveu em livro homônimo a jornalista e escritora Patrícia Campos Mello.
IHU – Por que uma parcela significativa da sociedade brasileira aderiu à extrema-direita? Trata-se de uma adesão ideológica, baseada na defesa do nacionalismo e de discursos racistas e fundamentalistas ou uma adesão baseada em discursos que exaltam um estilo de vida baseado na riqueza, na prosperidade, no individualismo e no empreendedorismo?
Argus Romero Abreu de Morais – É possível colocar todos os eleitores desse campo político dentro desse espectro ideológico? Particularmente, penso que não. Ainda há muitas pesquisas a serem desenvolvidas e elas podem partir de diferentes ângulos e preocupações. Durante as eleições presidenciais de 2018, o sagrado e a guerra se fundiram na linguagem política do eleitorado da extrema-direita brasileira, tornando-se comum a circulação de imagens com lideranças religiosas e fiéis simulando armas com os dedos das mãos. Com isso, para esses grupos a palavra sagrada passou a legitimar a força, e a força passou a se ancorar na autoridade sagrada. Essa cena mítico-bélica funde palavra e força, tornando-se uma mensagem para o auditório político da extrema-direita.
Em sua coluna escrita na Folha de S.Paulo em 2022, o colunista Juliano Spyer destacou a importância de temas como o da “família” para a disputa eleitoral no Brasil em 2018 e 2022. Ao entrevistar uma tradicional eleitora do Partido dos Trabalhadores, que votou duas vezes em Luiz Inácio Lula da Silva e duas vezes em Dilma Rousseff, Clemira (nome fictício) disse ter votado em Jair Bolsonaro em 2018 e afirmou que votaria nele novamente em 2022. Para o antropólogo e historiador, a posição de Clemira não é homogênea em um grupo composto por aproximadamente 60 milhões de evangélicos, embora possa expressar uma visão relativamente comum. O texto destaca a pesquisa realizada pelo Datafolha que mostrava, na época, como 43% dos evangélicos consideravam Lula (PT) o melhor presidente brasileiro da história, enquanto 19% afirmavam ser Jair Bolsonaro (PL). A matéria apontava ainda para o fato de que 46% dos que se declaravam evangélicos optariam pelo petista naquele pleito, ao passo que 44% tinham a pretensão de reeleger o então presidente. Um aspecto que se sobressai na resposta de Clemira é que ela não atribui a sua preferência à religião, mas à importância da “família” na definição do caráter, termo que repete 11 vezes em sua curta fala.
Vejamos, a seguir, o trecho da sua entrevista:
“Eu prefiro uma pessoa que não defenda as minhas finanças, mas que defenda a minha família. […] Então, hoje, se eu tiver que permanecer sendo pobre, se meu filho não puder mais exercer o direito dele de engenheiro, minha filha, de psicóloga, a outra filha, de pedagoga, eu não me importo. […] Eu prefiro que eles varram rua, vendam picolé, vendam bala nos ônibus, mas tenham a família. Prefiro isso a alguém […] que proporciona algo melhor financeiramente e ver [meus filhos] divorciados, acabados, sem respeito pela família. Minha mãe me criou em uma família pobre, mas eu tenho caráter, e a riqueza nunca me fez falta no caráter… Não é religião, não é questão da minha crença, é a família. Se um dia eu tiver que passar fome, eu passo com a minha família. [...] Eu até gosto do Lula, mas a esquerda não gosta de mim. Se alguém hoje ficar do lado dos ricos e me proporcionar mais pobreza e não me tirar a família, o caráter da minha família, eu sou mais ele do que alguém que diz: ‘Eu quero destruir a família mesmo. Nós estamos aqui para acabar com a família mesmo. Nós estamos aqui para acabar com a família’. Como vou dar voto a esse cara aí?”
Há, nessa resposta, alguns aspectos interessantes. Primeiro, o de que todo eleitorado é fluido e heterogêneo, composto inclusive por eleitores potenciais do campo político oposto. Segundo, a importância do “sentido existencial” para a condição humana, tornando secundários aspectos até mesmo econômicos e jurídicos, como demonstrado no uso de palavras como “direito” e “finanças”. Terceiro, o fato de determinados conceitos serem privilegiados para a organização desse sentido de existência, como é o caso de “família”. Quarto, a lógica da defesa-ataque aos valores e às instituições tidas como sagradas, como se vê nas palavras “defesa” e “acabar”. De acordo com a perspectiva com a qual tenho trabalhado, interessa, em especial, perceber o papel da linguagem mítico-bélica na construção dessa adesão.
Então, se em 2011 parece ter sido gestado o cruzamento entre militarismo e fundamentalismo na composição do discurso político da extrema-direita brasileira, foram necessários outros acontecimentos para que houvesse um fortalecimento desse discurso. Note-se que a Operação Lava Jato, deflagrada no Brasil em 2014 e que culminou com a interrupção do governo de Dilma Rousseff em 2016, mobilizava conceitos fundamentalmente religiosos em sua retórica, como é o caso de pureza. Inspirava-se em uma operação italiana intitulada “Mãos Limpas” e propunha “limpar” o país da “corrupção”, termos que nos remetem ao campo do sagrado, capazes de causar maior impacto emocional e adesão coletiva. A midiatização em cima da operação se utilizava comumente de canos de esgoto, remetendo à sujeira.
No âmbito religioso, fortalece-se o tema da família, supostamente ameaçada pela tentativa de combater a violência de gênero nas escolas e pelo avanço nos direitos dos grupos LGBTQIA+, assim como a oposição essencializante entre o bem e o mal, Deus e o diabo para se referir a grupos políticos. Tudo isso contribuiu para a instauração de um pânico moral em grupos expressivos da sociedade brasileira. Há um livro bastante relevante lançado recentemente pelo professor Lucas Nascimento Silva, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), chamado o Veneno da língua, que discute a linguagem evangélica na política e aponta caminhos para que grupos religiosos possam se inserir na cena política sem reproduzir violências contra as diferenças.
Retomando a questão, aos aspectos religiosos foram se somando interesses militares de encerramento dos debates ou investigações sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar e do capital financeiro em relação a algumas decisões que o governo Dilma Rousseff vinha tomando, como é o caso de diminuir a taxa de lucro dos bancos e de destinar 75% dos royalties do chamado pré-sal para a saúde e a educação pública. No plano político e jurídico, a flexibilização das relações de trabalho foi criando uma dinâmica laboral cada vez mais extenuante e precarizada, consolidando uma linguagem focada no empreendedorismo e na individualização.
No discurso da extrema-direita brasileira, a própria concepção de trabalho é avaliada sob uma perspectiva moral, definindo os grupos entre produtivos/eficientes e improdutivos/ineficientes, sendo reforçada por uma ética neoliberal pautada na competição, em uma suposta guerra de todos contra todos que espelharia a natureza. Nessa perspectiva, é frequente o uso da metáfora “parasita” para grupos marginalizados, como pobres, beneficiários de programas sociais, mulheres, negros, nordestinos, refugiados e, mais recentemente, usuários de drogas. Esse aspecto da produção neoliberal das subjetividades tem sido muito bem trabalhado pelos sociólogos franceses Christian Laval e Pierre Dardot e, no Brasil, pelo professor Daniel Andrade, da Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
Tende-se a achar que quem sofre violências sistêmicas percebe a origem e dinâmica dessas ações de forma clara e inequívoca. Ao contrário disso, não só elas não são transparentes, como estão sendo disputadas por narrativas que buscam dar sentido à existência coletiva. Esse é um debate que o professor Jessé Souza, da Universidade Federal do ABC (UFABC), tem feito com frequência em suas intervenções na mídia. As narrativas simplificadoras tendem a obter maior adesão do que aquelas com maiores complexidades.
IHU – Alguns pesquisadores apontam o ressentimento, a raiva e a frustração como combustível político para a atualidade. Esses sentimentos são capturados pela extrema-direita e aparecem nos seus discursos? Como?
Argus Romero Abreu de Morais – Este é mais um debate que nos remete ao contexto da década de 1930. É comum associar o desenvolvimento das ideologias totalitárias europeias da época ao ressentimento acarretado após a Primeira Guerra Mundial. A psicanalista Maria Rita Kehl escreveu um livro chamado Ressentimento, no qual analisa a relação entre esse sentimento e o desejo de vingança. O fenômeno é importante para pensar, inclusive, o cenário contemporâneo, especialmente quando discursos políticos procuram canalizar as frustrações sociais complexas para o ataque e o ódio a grupos marginalizados.
Pela ótica fundamentalista, o Estado deveria voltar a representar apenas um grupo religioso, o cristão. Pela ótica sexista e homofóbica, deve-se voltar a um mundo no qual o feminino esteja restrito ao lar e que não haja direitos sexuais para os distintos gêneros. Pela ótica neoliberal, o problema não seria a concentração de riquezas e a carga tributária injusta sobre a maior parte da população, mas o fato de o Estado buscar garantir direitos sociais. Pela ótica militarista, a violência urbana deve ser resolvida exclusivamente pelo armamento da população e militarização das relações sociais, desconsiderando toda e qualquer proporcionalidade no uso da força.
Como afirmei antes, o mundo não é evidente; é preciso dar sentidos a ele, e isso ocorre quando podemos esquematizar e narrar os eventos de forma a lhes dar coerência, mesmo que tais esquemas e narrativas possam se pautar em discursos conspiracionistas, negacionistas e pensamentos mágicos.
Outra reflexão que me parece importante é a realizada pela filósofa Hannah Arendt em seu livro Sobre a violência, no qual a pensadora desconstrói a ideia de que os seres humanos são naturalmente violentos. Ao contrário disso, postula que a violência surge quando os indivíduos se sentem vítimas de uma situação de injustiça. A precarização do trabalho, principalmente a partir da crise de 2008, e a fragilização dos direitos trabalhistas têm aumentado as tensões sociais e a percepção de decadência do sistema democrático. Embora restrito à análise do contexto estadunidense e europeu, o livro O povo contra a democracia, de Yascha Mounk, aponta para o fato de que as novas gerações têm sido as primeiras desde a segunda metade do século XX a terem projeções econômicas piores do que as dos seus pais. O professor da Universidade Johns Hopkins ressalta outros aspectos, mas este nos basta para demonstrar que a frustração econômica, além da sensação de decadência moral profunda, contribui para a crise de identidade coletiva que temos visto em distintas sociedades, potencializando angústias e medos. Some-se a isso a pressão gerada sobre os empregos pelo desenvolvimento da Inteligência Artificial.
Outro aspecto que me parece importante para pensar o caso brasileiro é que, de fato, vivemos nas últimas décadas uma crise na segurança pública, o que acaba por desmoralizar as instituições e por gerar traumas coletivos e pessimismos políticos. Em uma análise pertinente da derrota de Fernando Haddad nas eleições de 2018, o capitão reformado Alexandre Félix, membro dos policiais antifascismo, avalia em uma entrevista para Jeniffer Mendonça, da Ponte Jornalismo, que teria sido determinante para o resultado eleitoral o fato de as esquerdas terem se recusado a debater a segurança pública, uma das principais fontes do medo no país. No seu dizer:
“Nós só tivemos uma pessoa que se propôs a fazer isso, que era Marielle Franco [vereadora carioca assassinada em março de 2018] durante o mandato do Marcelo Freixo [deputado estadual do Rio de Janeiro]. Foi a única expressão da esquerda no Brasil que se aproximou do tema da segurança pública, ousou discutir segurança pública e trouxe o policial para o debate”. Ou seja, trata-se de uma temática que interessa às polícias e à própria população.
Se considerarmos os números da violência urbana nos últimos anos, veremos que a narrativa da guerra, central em discursos militaristas, fundamentalistas e mesmo neoliberais, ancora-se em uma factualidade consistente. Uma matéria publicada em 28-10-2016, escrita por Bruno Bocchini na Agência Brasil, destaca o fato de que “o Brasil registrou mais mortes violentas de 2011 a 2015 do que a Síria, país em guerra, em igual período”. Em seguida, complementa: “Foram 278.839 ocorrências de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil, de janeiro de 2011 a dezembro de 2015, frente a 256.124 mortes violentas na Síria, entre março de 2011 a dezembro de 2015, de acordo com o Observatório de Direitos Humanos da Síria”. Então, essa problemática é central para a população e merece a atenção dos governantes progressistas. As operações do Ministério da Justiça agora em 2025 contra o crime organizado no país, investigando agentes públicos e de mercado, demonstra que o atual governo parece ter dado centralidade a essa perspectiva em sua gestão, com o trunfo de voltar suas forças principalmente para os estratos superiores da criminalidade.
IHU – Como analisa os discursos proferidos na última Marcha para Jesus, que reuniu lideranças religiosas e políticas de extrema-direita em apoio ao governo de Israel? O que esse evento representa e como significa no nosso atual contexto político?
Argus Romero Abreu de Morais – O pesquisador de literatura João Cezar de Castro Rocha tem feito ótimas análises a esse respeito, falando do deslocamento da centralidade de Salomão, vinculado à sabedoria na Bíblia, para Davi nesses grupos religiosos, vinculado à lógica da guerra. Esse aspecto interessa diretamente à pesquisa que venho desenvolvendo nos últimos anos a respeito da relação entre retórica política, a experiência do sagrado e a lógica da guerra como forma de legitimar a violência. Quando uma guerra é tida como sagrada ou em nome de valores tidos como sagrados, ela passa a ser vista como um instrumento necessário para se alcançar um fim maior e mais justo. Logo, a violência torna-se legítima e mesmo desejável. A violência em si não é transparente, ela também é significada de acordo com quem a comete e quem a sofre.
É interessante, portanto, avaliar como grupos cristãos conservadores no país, com realidades tão distintas em relação aos seus análogos nos Estados Unidos e em Israel, podem se alinhar em prol da construção de uma identidade imaginária que vincularia, por exemplo, a conquista do território palestino e os crimes de guerra que temos presenciado no conflito a uma finalidade sagrada. Em certa medida, o aspecto religioso endossa suas demandas políticas, promovendo uma retórica da guerra tanto no plano interno quanto no externo. A religião, nesse caso, permite a adesão massiva e a crença de que se trata de interesses acima dos profanos, mundanos, relativos às disputas ideológicas entre os grupos, uma vez que estariam associados à defesa de Deus, à verdade única e incontestável.
Duas estruturas argumentativas são importantes nessa organização lógica do mundo: primeira, a fórmula Nós versus Eles, significada como Deus versus o Diabo, o bem versus o mal; segunda, a inversão dessa fórmula, de modo a justificar as ações violentas. Não se trataria, então, de Nós versus Eles, mas de um Eles versus Nós, do Diabo versus Deus, de modo que o verdadeiro ataque teria sido iniciado pelo outro lado e os argumentos e ações violentas do Nós seriam para a própria proteção, para garantir a sua sobrevivência. Tratar-se-ia, assim, de legítima defesa, de reação aos infiéis, impuros e corruptos.
Nesse viés, se o lado do mal estaria se organizando e tendo vitórias, dentro e fora da política, torna-se importante para as lideranças desses grupos fazerem com que aqueles que se identificam como “cidadãos de bem” também passem a se mobilizar para defender seus interesses. É nesse ponto que a antipolítica se expressa como estratégia política, pois busca disputar o poder social, ao fazer com que o cidadão comum abandone a “passividade” do dia a dia para se engajar em manifestações coletivas, militares, religiosas e econômicas, apoiando-as ou exercendo-as.
Contudo, a diferença em relação ao outro lado é que o “cidadão de bem” possui uma estrutura política e econômica mais robusta. Por mais que se coloquem como excluídos, gerando identidade e mobilização, na verdade tais grupos fazem parte daqueles que “venceram a maior parte das batalhas” nos últimos 500 anos: contra os povos originários, contra as religiões de matriz africana, contra os escravizados, contra os direitos trabalhistas, contra os direitos sexuais etc. Há, então, não apenas uma inversão da acusação e uma transferência de responsabilidade, mas uma falsa simetria.
Não obstante, é importante notar que todo discurso tem falhas, e se pode perceber o crescimento da resistência a essa relação entre o político, o militar, o religioso e o neoliberal para fundamentar violências e autoritarismos. Tomemos o caso da circulação das imagens dos sofrimentos das crianças, mães e pais palestinos, civis de uma forma geral, principalmente nas redes sociais. Elas mostram o potencial dos espaços digitais para também se construir empatia e organizar resistências às arbitrariedades. Pode-se notar ampla repercussão e engajamento em grupos heterogêneos ao redor do globo, envolvendo distintos povos, nações, religiões e grupos sociais, tais como artistas, esportistas, ativistas, torcidas de futebol, personalidades religiosas, espectadores de eventos culturais etc. Ou seja, por mais que haja muita força no âmbito dessa retórica da guerra, de matriz e tradição colonizadora desde os gregos, há, como contraparte, a gestação de um contradiscurso, o qual tem crescido exponencialmente, a ponto de cada vez mais países do chamado Norte Global estarem se manifestando, recentemente, pelo reconhecimento do Estado palestino.
IHU – A falta de projetos alternativos à esquerda favoreceu a expansão da extrema-direita?
Argus Romero Abreu de Morais – Esta é uma questão debatida dentro do próprio espectro progressista desde o primeiro governo Lula (2003 a 2007). Uma das respostas possíveis nesse debate é a de que o PT seria a esquerda possível dentro da sociedade brasileira, considerando os processos de ruptura institucionais que ocorreram ao longo do século XX e levando em conta uma certa tendência do eleitorado brasileiro a se alinhar a uma agenda conservadora quando se trata de pautas tidas como morais. Para um viés mais crítico alinhado à esquerda, não haveria mudanças estruturais profundas e nem uma tentativa de aprofundar a politização e o engajamento dos setores mais populares e da classe média. Para um viés mais crítico alinhado à direita, o projeto do PT seria considerado populista e economicamente inviável. Isto é, para um lado, seria “pouco esquerda”; para o outro, “muito esquerda”.
Concordo com os pontos colocados pelo professor João Cezar em seu livro Guerra cultural e retórica do ódio, incluindo os erros cometidos pelo PT em seus governos. Gostaria de retomar alguns fatores que considero relevantes para o debate em questão. Nas últimas décadas, houve o crescimento vertiginoso das denominações religiosas evangélicas, sobretudo as neopentecostais nas periferias, reorganizando ideologicamente o eleitorado nacional. Algo que tem se expressado na composição do Congresso Nacional com mais clareza a partir de 2014, o mais conservador desde 1964, como avalia Andrea Dip, em seu livro Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Em certo momento do seu texto, a jornalista pontua algo que tenho falado aqui sobre a relação entre o sagrado e a lógica da guerra, ao dizer: “É uma bancada barulhenta, intempestiva, aguerrida, beligerante, e esse barulho cria a impressão de volume, de quantidade de poder, de coesão. [...] As Igrejas têm esse discurso de guerra, de combate” (p. 53).
Andrea destaca, contudo, que é preciso separar o público evangélico da bancada evangélica. Há uma falha nesse espelhamento, na medida em que “a maioria dos evangélicos não concorda com pautas discriminatórias e que o alinhamento dos políticos evangélicos – cortejados por anos pelo PT – ao impeachment de Dilma não foi automático” (p. 14). Em paralelo, o imenso crescimento das tecnologias digitais coloca novos desafios às dinâmicas sociais, laborais e comunicacionais, bem como o aumento do poder econômico e político das corporações vinculadas a essas tecnologias. O retorno do engajamento dos militares na política e o consequente aumento das pautas militaristas na cena pública, sobretudo desde a instauração da Comissão da Verdade, em 18-11-2011, constituem também problemas.
Todos esses aspectos colocam desafios para a esquerda quando chega ao poder, em todos os níveis do Estado, a qual deve trabalhar tanto para se manter no governo como para expandir e consolidar seu projeto político. O recente alinhamento do governo Lula 3 a algumas reformas tidas como estruturais, como é o caso da tributária, pode estar sinalizando que é possível promover transformações mais profundas mesmo em um contexto bastante desfavorável, mas também que isso não pode ser feito sem diálogo com o campo político oposto, dentro e fora do Congresso. A recente vitória dos candidatos de direita no primeiro turno das eleições presidenciais na Bolívia demonstra que o aspecto econômico é fundamental para manter a solidez política de um projeto tido como progressista. Caso contrário, não vence ou é retirado do poder, como vimos com a derrubada do governo de Dilma Rousseff. O que não impede, é claro, que tais grupos possam voltar a se reorganizar, espera-se que a partir das bases, e reconstruir sua força para o futuro. Algo que voltou a ter novo vigor no país a partir das últimas eleições presidenciais em 2022.
IHU – Como romper com a atual polarização política?
Argus Romero Abreu de Morais – O conceito de polarização parece sofrer de uma ambiguidade entre a perspectiva acadêmica e a midiática. A rigor, a polarização faz parte do processo político, é intrínseca a ele. O discurso político é um discurso necessariamente polêmico, polarizado, ou seja, de propostas e contrapropostas, de embates e debates, de tentativa de construir o próprio campo ideológico e de desconstruir o do outro. O argumento da guerra, contudo, coloca limites ao conceito de polêmica. O conceito de polarização pressupõe a simetria de poder de fala entre as partes e o respeito às condições de existência do outro. O que temos visto, portanto, não parece ser da ordem da polarização, que seria o pressuposto básico da democracia, mas a radicalização de um dos polos em direção a discursos antipolíticos e antidemocráticos, calcando-se, inclusive, na apologia da violência e em tentativas golpistas. Remeto novamente à análise do professor João Cezar a esse respeito. A radicalização que temos visto se ancora na ideia de eliminação do outro, retomando a lógica da guerra cultural, em que qualquer dissonância passa a ser vista como ação inimiga. Nesse sentido, não se trataria de dois polos em condições simétricas de poder. De um lado, há a atuação de setores militaristas, fundamentalistas e ultraliberais que colocam em xeque o Estado democrático de direito e a soberania nacional. De outro, um governo legitimamente eleito e que busca retomar as regras do jogo. De um lado, autoritarismo. De outro, polêmica, inerente ao jogo democrático.
Na minha pesquisa, tenho tentado avançar justamente nessas questões. Qual a relação entre a lógica da guerra e a política? Quais os seus limites? Além disso, é importante destacar que mesmo o que se propõe como terceira via, para poder se afirmar no jogo político, terá que polarizar em algum momento com os seus concorrentes, se não no primeiro turno, no segundo, quando os projetos apresentados tendem a se antagonizar de forma mais clara e diametral, embora tenham que reconhecer que a eventual derrota não deve acarretar a ruptura institucional.
Dando continuidade, ressalto que, ao se falar em terceira via, dá-se a entender que sua visão ideológica não pertence ou não se assemelha a nenhum dos polos principais em disputa no momento, o que não parece ser verdadeiro, uma vez que as forças políticas que podem assumir esse terceiro lugar no contexto atual parecem se alinhar mais ao polo da radicalização e da ruptura democrática do que ao polo que venceu essa disputa e tenta promover diálogo e entendimento entre as distintas partes, legitimando as instituições e os anseios da sociedade civil tanto no plano interno quanto no externo. Devo ao professor Luiz Paulo da Moita Lopes um último ponto que gostaria de acrescentar: a lógica da polarização em última análise também não se justifica pelo fato de que, embora haja no país uma extrema-direita forte em ação e com poder político, não haveria uma esquerda radical no mesmo patamar de poder.
Voltando à sua pergunta, acho que o problema não é a polarização, mas o de voltar à polarização que acompanhamos ao longo dos anos 1990 e 2000, quando a alternância política e a legitimação do processo eleitoral e seus resultados alçavam o Brasil ao status de democracia madura. Hoje, um dos lados busca justamente romper com ela. A ruptura da polarização, portanto, pode ser também antidemocrática, assim como o discurso antissistema pode se ancorar em projetos retrógrados. Agora, se ela significar a emergência de novos grupos políticos com força para o embate atual e que possam respeitar a Constituição, incluindo as decisões jurídicas que vierem a ser tomadas no julgamento em andamento no Supremo Tribunal Federal a respeito da trama golpista de janeiro de 2023, isso é positivo para a democracia brasileira. Considerando que, com isso, será criada uma nova polarização, embora com novos atores sociais e políticos assumindo relevância no debate. Logo, mesmo com a emergência de novos atores, a polarização se imporia novamente como sintoma do jogo democrático.
IHU – Que cenários políticos vislumbra para o país nas próximas eleições municipais?
Argus Romero Abreu de Morais – Falar do futuro é sempre mais difícil do que falar do passado. Qualquer mudança no cenário atual pode acarretar caminhos bem diferentes em relação ao futuro próximo. Esse é um debate que costuma ser feito com mais propriedade por cientistas políticos, jornalistas ou analistas de distintas áreas que trabalham para meios midiáticos. Não me encaixo em nenhum desses casos. Dito isso, vou tentar me aventurar considerando parte dos resultados das minhas investigações até o momento e algumas informações atuais que parecem dialogar com elas.
Recentemente, foi veiculado por alguns jornais que João Campos, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), teria alertado o presidente Lula em reunião no Recife sobre a necessidade de o PT compor chapas majoritárias com políticos de centro na disputa para as eleições de 2026, sob pena de fomentar a “polarização” e, com isso, privilegiar o polo oposto.
Segundo o prefeito de Recife, os parlamentares de centro, especialmente no Senado, tendem a ser mais abertos ao debate com as propostas do governo. Dadas as características do presidente Lula, conhecido por ser conciliador e um exímio articulador político, creio que, em 2026 e 2028, tende a prevalecer as alianças com políticos de centro. Possivelmente, isso será mais importante em regiões do país onde o PT ou as esquerdas sofram mais resistência.
Além disso, os discursos das esquerdas devem retomar o tema da “guerra comercial” encampada pelo atual governo dos Estados Unidos para defender os “conceitos sagrados da política” desde a modernidade, como nação, soberania, autonomia e povo, opondo-se aos “traidores da pátria”. Embora defendendo igualmente o diálogo, as organizações multilaterais, o direito internacional e a necessidade de concertação de novos acordos comerciais.
Por fim, há fatores locais que são fundamentais para essas decisões, como a sensação de crise econômica e a ocorrência recente de desastres naturais. Não obstante, temos que esperar para ver como a sociedade brasileira reagirá majoritariamente às interferências atuais dos Estados Unidos, às ações dos setores nacionais mais alinhados ao presidente Donald Trump, ao julgamento das ações golpistas no STF, aos efeitos das políticas do atual governo federal e, no caso das eleições municipais, aos resultados das próprias eleições de 2026, que mostrarão a composição de forças políticas no país. São questões que não podemos antever.
IHU – Alguns especulam que as ações dos EUA em relação ao Brasil visam, além de pressionar a decisão sobre o julgamento do ex-presidente Bolsonaro, influenciar o processo eleitoral de 2026. Está em curso uma clara tentativa de intervenção política americana no Brasil ou tudo isso faz parte do jogo político e ideológico do governo Trump? Como interpreta esses acontecimentos envolvendo Trump, a família Bolsonaro, a extrema-direita e o Estado brasileiro?
Argus Romero Abreu de Morais – A meu ver, não há como negar que existe uma clara tentativa de intervenção política dos Estados Unidos no Brasil e de que essa tentativa de intervenção faz parte do jogo político e ideológico do governo Trump. Também vale enfatizar que esse jogo político e ideológico ultrapassa os projetos da própria extrema-direita brasileira. Na perspectiva do presidente estadunidense, os interesses geopolíticos dos Estados Unidos são mais prementes do que os planos dos seus aliados no Brasil, seja em relação ao Pix, em relação ao Brics, à desdolarização das transações comerciais internacionais ou à reindustrialização do próprio país. O fato de milhares de imigrantes brasileiros estarem sendo afetados por suas políticas migratórias aponta para isso. Parte destes, certamente, alinhados ao seu espectro ideológico. Isto não significa, todavia, que se possa chegar a uma nova “América para os americanos” sem essas alianças políticas e sem o engajamento ideológico com as elites latino-americanas.
Essas interferências têm ocorrido também em outros continentes, envolvendo distintas métricas e realidades político-comerciais. No caso brasileiro, a mobilização dos discursos cristão conservador, militarista e neoliberal tem se mostrado eficiente para produzir esses alinhamentos ideológicos em determinados setores da população e em grupos partidarizados ou economicamente dependentes. Apesar disso, a fratura interna nas próprias elites nacionais demonstra que essa adesão tem limites. Isso mesmo dentro de setores historicamente aliados, em vista do enfraquecimento potencial das condições econômicas de setores muito fortes da economia nacional, de agropecuaristas a industriais, afetados recentemente pelas políticas de sanções tarifárias impostas pelo governo Trump.
Confira os próximos eventos do IHU que discutirão o tema desta entrevista: