05 Setembro 2025
"O apelo constante de Putin aos valores tradicionais e à fé ortodoxa, a Deus como o garante da Santa Mãe Rússia, que abençoa suas fronteiras e os tanques, santificando a aniquilação da Ucrânia nazistas e corrompida pelo Ocidente, mostra a religião não tanto como antídoto ao ódio e à violência, mas como seu terrificante amplificador", escreve Massimo Recalcati, em artigo publicado por la Repubblica, 03-09-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
O declínio das religiões é considerado uma característica significativa do nosso tempo. O cientificismo, por um lado, e a afirmação incontestada de uma concepção hedonista da vida, por outro, teriam relegado a religião a uma forma de superstição obscurantista. No entanto, no nosso tempo não podemos deixar de constatar como a religião, precisamente em seus aspectos mais fundamentalistas, tenha retornado com força à cena. No centro, certamente não está a dimensão espiritual da religiosidade, mas o nexo pré-iluminista que havia vinculado firmemente a religião ao poder.
O que retorna não é um Deus que sacode e questiona as consciências, mas seu reverso monstruoso: um Deus reduzido a um instrumento ideológico do poder. Esse é o denominador comum que une figuras políticas tão distantes entre si quanto Donald Trump, Vladimir Putin, os líderes do Hamas, Benjamin Netanyahu e seus ministros, que apoiam o inaceitável massacre em Gaza e a colonização selvagem de terras palestinas. O que fica evidente é o recurso a Deus como o sustentáculo inabalável da política, da loucura da guerra ou da própria afirmação pessoal.
Trata-se de um uso perverso da religião que historicamente não é absolutamente novo. É por isso que o luterano Dietrich Bonhoeffer lembrava criticamente que Jesus não veio nos pedir para abraçar uma nova religião, mas a vida.
O apelo constante de Putin aos valores tradicionais e à fé ortodoxa, a Deus como o garante da Santa Mãe Rússia, que abençoa suas fronteiras e os tanques, santificando a aniquilação da Ucrânia nazista e corrompida pelo Ocidente, mostra a religião não tanto como antídoto ao ódio e à violência, mas como seu terrificante amplificador. Trump mobiliza outra Igreja: não aquela institucional, mas a dos patriotas, dos eleitos, dos verdadeiros estadunidenses. Seu Make America Great Again tem o caráter de um mantra religioso, um chamado a uma era de ouro perdida a ser reconquistada.
A Sua fé é performática; seu Deus é aquele que narcisicamente o reconhece como ele mesmo divino, numa espécie de delírio megalomaníaco a dois. A reação à cultura liberal se dá, também nesse caso, por meio de uma defesa orgulhosa dos princípios fundamentais da tradição, que encontram seu fundamento último em Deus. Essas são formas de religião, como diria Kierkegaard, antiespirituais: Putin não invoca Deus para se elevar espiritualmente, mas para cavar um fosso entre a "civilização russa" e o "Ocidente decadente".
A sua, como a de Trump, é uma religião de pureza étnica e cultural, uma arma identitária que exige a vitória sobre os inimigos. No Oriente Médio, a dinâmica é ainda mais trágica. Os líderes do Hamas e Netanyahu jogam o mesmo jogo sobre os corpos dilacerados de seus respectivos povos. De um lado, um Islã delirante reduzido a uma ideologia da violência e da morte, onde o martírio terrorista é invocado como a única forma de vida digna de ser vivida contra o opressor: em seus discursos, os líderes do Hamas, mais que legitimar o direito do povo palestino à resistência, tecem louvores à destruição do Estado de Israel.
De outro lado, um sionismo transformado em nacionalismo messiânico que transfigura a Terra Prometida em uma fortaleza a ser defendida por meio de uma expansão sangrenta e ilegítima, justificada por direito divino. Em ambos os casos, a invocação de Deus responde à finalidade perversa de exercer a violência da destruição sem remorso, uma vez que é realizada em nome do Bem. A fé religiosa aqui não pacifica, não une, mas divide e mata. Nesse esquema, não há espaço para a dúvida, para a pergunta, para a palavra.
Estamos diante da arquitetura fanática de uma identidade sem alteridade, do Uno-todo que exclui o encontro com o Dois. O fundamentalismo religioso fornece a moldura sagrada e inviolável para esse esquema. Deus não é mais aquele que preserva o mandamento "não matarás", mas sim aquele que, num curto-circuito perverso, legitima matar em seu nome. Não é por acaso que a Bíblia nunca acusa o ateu, mas apenas o idólatra, pois sabe bem aonde pode levar a pretensão religiosa de ser donos exclusivos da verdade. Quando Jesus, ao final da terrível noite do Getsêmani, é agredido e preso pelos soldados e um de seus discípulos tenta defendê-lo erguendo a espada, ele intervém, interrompendo a luta, como se dissesse, com grande clarividência, cabe dizer, "nenhuma guerra religiosa em meu nome!"
Trump subverte as normas democráticas, Putin persegue o dissenso interno fortalecendo seu poder pessoal, Netanyahu solapa a Suprema Corte e desencadeia uma guerra imunda contra um povo indefeso, o Hamas impõe, sempre em nome de Deus, sua lei pela violência, principalmente contra o povo palestino. Nessa estranha conjuntura histórica, a religião não é mais, como Marx acreditava há seu tempo, "o ópio dos povos", que, ao alimentar a crença ilusória em um mundo para além do mundo, enfraquece as instâncias críticas de mudança, mas se torna um combustível mortal que desencadeia um ódio perpétuo.
Não serve para pacificar, mas para excitar, para mobilizar as massas não para um ideal de justiça e paz, mas para o gozo de sentir-se do lado certo da história, o deleite da destruição do inimigo humilhado e aniquilado. É um beco sem saída. Em vez disso, seria necessário um esforço coletivo extremo. O Cardeal Martini já advertia isso há seu tempo: "Se cada povo olhar apenas para a sua própria dor, então sempre prevalecerá a razão do ressentimento, da retaliação e da vingança."
Leia mais
- O ódio em nome de Deus é o mais feroz. Artigo de Enzo Bianchi
- Religião, violência e loucura
- Religião em tempos de terrorismo: a violência está nos genes da religião?
- Fundamentalismo religioso e violência anti-LGBT: procurando entender o fenômeno. Artigo de Eduardo Ribeiro Mundim
- Racismo, preconceito e Islã: explicar não é justificar. Entrevista com Tahar Ben Jelloun
- ''É uma aberração matar em nome de Deus. Mas as religiões não devem ser insultadas.'' Entrevista com o Papa Francisco no voo para as Filipinas
- “Matar em nome de Deus é um grande sacrilégio”, denuncia Francisco