02 Setembro 2022
“Que imagem do Cardeal Martini trago no meu coração? Certamente a austeridade e o sorriso do pastor ciente de suas grandes responsabilidades, ao mesmo tempo tímido e muito humano. Era um homem capaz, como grande sucessor de Santo Ambrósio, de transitar entre a terra e o céu. Acima de tudo, era um homem simples e verdadeiro, capaz de rir e sorrir, com um coração terno porque apaixonado por Deus. Ainda me lembro dele como um homem tímido que superava a si mesmo para dar espaço a todos os outros”. É o retrato que aflora da mente do arcebispo de Chieti-Vasto, Bruno Forte, ao recordar, dez anos depois de sua morte, o arcebispo emérito de Milão, o cardeal Carlo Maria Martini. De fato, foi há dez anos, em 31 de agosto, uma sexta-feira, quando na residência dos jesuítas, o Aloisianum em Gallarate, que morria após uma longa doença o cardeal jesuíta que liderou a arquidiocese de Milão durante 22 anos e três meses (1980-2002). Os mesmos, gostava de repetir, de Santo Ambrósio.
A entrevista é de Filippo Rizzi, publicada por Avvenire, 31-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O senhor pregou os últimos Exercícios Espirituais a João Paulo II em 2004, como aconteceu, quase em "paralelo", ao jovem Padre Martini, muitos anos antes em 1978 com Paulo VI (também naquele caso os últimos Exercícios ao Papa Montini em fevereiro daquele ano): é um detalhe singular para vossas duas biografias. Quase uma passagem de bastão entre um biblista e um teólogo por formação. Poucas pessoas sabem que o senhor foi um de seus principais colaboradores, desde o início dos anos 1980, na redação de suas Cartas Pastorais. O senhor gostaria de nos explicar o significado dessa amizade e dessa colaboração.
Tudo começou com uma carta que recebi com surpresa do arcebispo de Milão, recém-nomeado para aquela sé, na qual ele me dizia que seu precioso colaborador Monsenhor Renato Corti (futuro bispo de Novara e cardeal) havia sugerido que ele lesse meu livro Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história, leitura que o fascinara e que lhe inspirou o desejo de me conhecer e trocar comigo algumas ideias sobre a teologia e a Igreja daqueles anos. Na primeira ocasião, fui visitá-lo em Milão e fiquei impressionado com sua acolhida, a simplicidade de seu estilo de vida e a franqueza com que fazia perguntas e observações. Ele me perguntou se eu estava disposto a compartilhar algum tempo com ele de vez em quando para preparar suas Cartas para a diocese. Um confronto fora do ambiente diocesano, acrescentou, o ajudaria a manter um horizonte amplo e a se fazer perguntas que nem sempre vinham da rotina de sua vida de pastor. Fiquei surpreso e aceitei com confiança...
Dez anos após a morte do cardeal, o senhor disse muitas vezes que, para entendê-lo em profundidade, é preciso partir em primeiro lugar de seu DNA de jesuíta, dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, da importância que tinha para ele a palavra discernimento ou, como diria Iñigo, de "reverência".
Certa vez, fui eu quem perguntou ao cardeal qual elemento da espiritualidade inaciana o havia inspirado mais. Sem hesitar, ele respondeu: a atitude de reverência. Esse é um termo que se encontra no "Princípio e Fundamento" dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola: "O homem é criado para louvar, reverenciar (hacer reverencia) e servir a Deus nosso Senhor" (n. 23). A palavra reverência poderia ser traduzida como "respeito", e certamente foi assim que Martini a vivia: respeito diante do Deus a ser adorado e amado, respeito diante de cada uma de suas criaturas, mesmo as menores.
Às vezes esse profundo respeito pelo outro era confundido com timidez, mas na realidade expressava a envergadura espiritual de um gigante da fé e da caridade, que não hesitava em se fazer pequeno diante do outro para acolher o dom que em cada um vem a oferecer o próprio Senhor da vida e da história.
Entre os diálogos mais animados que teve com Martini estava aquele em torno de uma de suas grandes intuições: a cátedra dos não crentes. Por que aquela intuição, em sua opinião, foi e talvez ainda seja tão profícua e genial?
Estávamos em Nápoles, convidados de uma comunidade de religiosas em Posillipo, trabalhando em uma das Cartas pastorais. Passeávamos no terraço, contemplando o esplêndido golfo à nossa frente e discutíamos a importância do diálogo com todos, na escuta de todos. Foi então que o cardeal me disse: “Seria importante entender o que um não crente pensa de Deus”. E me veio espontaneamente responder: "Colocar um não crente na cátedra para entender as razões e estimular a nossa fé com seus questionamentos?". "Sim", foi a resposta. “Seria preciso uma 'cátedra do não crente'...”.
Martini foi definido por seu colega, em certo sentido "professor" como ele e hoje Papa Emérito Bento XVI, um "mestre de lectio divina". Francisco, seu coirmão jesuíta, descreveu-o como um "pai para toda a Igreja". Em sua opinião, que herança espiritual entrega à Igreja essa grande figura de biblista?
Não hesitaria em sinalizar três grandes legados do Cardeal Martini para toda a Igreja: em primeiro lugar, o amor à Palavra de Deus e a centralidade a ser dada a ela com o exercício da lectio divina, pessoal e comunitária; depois a promoção e o cuidado da comunhão eclesial, baseada no respeito, na escuta e no diálogo com todos; e, por fim, a simpatia e atenção a todas as expressões da experiência humana, mesmo aquelas aparentemente mais distantes da fé, na certeza de que o "coração inquieto" de que fala Santo Agostinho nos une a todos.
Para muitos, o cardeal era visto como um mestre da fé e um homem muito atento a "escutar as razões do outro". O senhor disse muitas vezes que para entrar nas chaves hermenêuticas do léxico martiniano é preciso passar por dois teólogos jesuítas muito caros a ele: Karl Rahner e Bernard Lonergan. Pode nos explicar por quê?
De Karl Rahner Martini apreciava o diálogo sincero com a modernidade e a capacidade de exercê-lo recorrendo também a estruturas clássicas de pensamento, como a ideia de potentia oboedentialis, uma predisposição à escuta reverente do Absoluto de Deus que existe em cada coração. Lonergan o fascinava pelo método que propunha ao pensamento, resumido na tríplice passagem: "compreender o texto, julgar a exatidão da própria inteligência do texto, exprimir o que se julga ser a inteligência correta dele" (Il metodo in teologia, Brescia 1975, 173). Em outras palavras, tratava-se de aplicar o discernimento a cada situação, na tríplice etapa de "ver, julgar, agir".
Sonhava morrer em Jerusalém e ser sepultado junto ao túmulo de um jesuíta e professor de Sagrada Escritura, que ele apreciava muito, Donatien Mollat. Como Martini viveu essa renúncia de não encerrar sua existência na Terra Santa?
Por um lado, suas condições de saúde não lhe permitiram permanecer em Jerusalém: ele precisava de tratamento e médicos que o conheciam e que estavam na Itália. Por outro lado, Martini sempre foi dócil aos sinais de Deus e os obedeceu com fé simples e total...
Em 30 de agosto de 2012, na véspera de sua morte que aconteceu no dia seguinte, o senhor se encontrou com Martini no Aloisianum em Gallarate. Com ele, segundo os testemunhos de seu secretário, padre Damiano Modena, que fez com o senhor o doutorado sobre o pensamento do jesuíta biblista de Turim e que justamente o senhor apresentou ao cardeal, rezou seu último Pai Nosso. Que lembranças aquela despedida em particular com seu amigo deixou no senhor?
Escrevi-lhe uma carta para agradecer por tudo e a li para ele. Depois peguei sua mão e pedi que rezássemos juntos o Pai Nosso: ele acenou com a cabeça. Começou a mover os lábios enquanto eu apertava sua mão... Este foi o último Pai Nosso de sua vida, no ato de se entregar totalmente a Deus e Nele. Para mim foi uma grande graça ter rezado o Pai Nosso com ele naqueles últimos momentos de sua vida: foi como um penhor da comunhão orante que continua a existir entre nós e com a qual o Cardeal Martini certamente acompanha a Igreja de Milão e toda a Igreja.
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O legado de Martini? Palavra, comunhão, homem. Entrevista com Bruno Forte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU