31 Agosto 2022
"Do trabalho de mais de 22 anos passados na esteira de Ambrósio, emerge com clareza a convicção de Martini: a Igreja não propõe modelos políticos e sociais, mas algumas modalidades essenciais e um espírito capaz de animar a convivência a partir de dentro. O serviço às pessoas e instituições é prestado por uma Igreja que é sal da terra, fermento na massa, luz no castiçal, casa na rocha, cidade na montanha, voz de alegria nas praças e canto de alegria nas casas".
O artigo é de Marco Garzonio, jornalista, publicado por Vita Pastorale, agosto-setembro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Martini e Milão: uma história exemplar, um sinal dos tempos. Mérito do cardeal, de estilo único, pessoal, livre para partir o pão da Bíblia todos os dias a serviço do sentido da história, numa atitude de não julgamento em relação às pessoas. Mérito da cidade, do seu genius loci, a um ethos popular do qual Milão é portadora em nível civil e espiritual desde Ambrósio. Os começos não foram fáceis. No final da década de 1970, Milão era uma cidade ferida, retraída, desajeitada, desconfiada, entre crise econômica, fragilidade institucional, violência terrorista. Ser precursora de fenômenos nacionais a tornava especialmente vigiada e exposta a tensões civis, culturais e midiáticas.
Martini não demorou muito para se sintonizar. Ele percebeu o déficit de alma na atitude dedicada ao fazer, no pragmatismo que marcava o próprio clero. Logo que chegou, pediu à cidade e aos fiéis algo a mais, uma disposição psicológica: escutar a si mesmos, o coração, a interioridade. A primeira carta pastoral (setembro de 1980), A dimensão contemplativa da vida, foi o seu "manifesto". A segunda, No princípio o Verbo, lançou as bases da "novidade" Martini.
O cardeal tomou a cidade pela mão, segurando na outra a Bíblia, a Palavra que ajuda a erguer o olhar, a redimir as preocupações, a dar perspectivas e esperança a todos: aos crentes, para se tornarem testemunhas coerentes no "dizer" e no "fazer" daquele Cristo morto e ressuscitado cujo nome carregavam; aos não crentes, com os quais se sentia unido pela humanidade comum. Também havia algo a aprender com eles. Para isso, ele instituiu a Cátedra dos não-crentes. "Atravessar a cidade" foi a cifra do episcopado martiniano desde o primeiro dia, 10 de fevereiro de 1980, quando o arcebispo escolheu entrar na diocese caminhando do Castelo até o Duomo. Tornou-se a maneira do pastor andar na frente de seu rebanho.
A confiança de homens e mulheres, fiéis e não, amadureceu no progressivo sentir o arcebispo como um deles. Depois foi a gravidade dos acontecimentos que fez crescer a relação entre Martini e Milão. Foram as "três pragas" para Milão, como ele mesmo chamava os males de Milão: a violência do terrorismo; a dimensão existencial da solidão na metrópole, mas também fruto da crise econômica; a corrupção. Nesta última, Martini percebeu a doença desagregadora em tempos insuspeitos. Em 1984 ele advertiu: "Os partidos estão roubando o futuro dos jovens".
Tangentopoli foi a oportunidade para revelar consensos em torno do Pastor, mas também aversão. Ele convidava a não dar nada como garantido, a se questionar, a pensar com a própria cabeça, a acertar as contas com a própria consciência, a viver em plenitude a liberdade interior. O cardeal, após o escândalo, invocou uma catarse, uma nova consciência, para o "renascimento batismal". Em vez disso, prevaleceu o instinto de preservação de um poder indestrutível, a defesa de interesses constituídos, a escolha de não prejudicar privilégios e ganhos de posição. E onde parecia perfilar-se uma mudança, tudo se desvaneceu e logo foi desmentido em perfeito estilo “Gattopardo”: tudo deve mudar para que nada mude. Houve transformismos, novos assentamentos, desintegrações e recomposições de alianças.
Em poucos meses o pastor Martini sofreu uma derrota e o profeta Martini ganhou cada vez mais consistência. Com dor Martini teve que reconhecer que seus avisos, tipo "é preciso coragem para mudar", "golpes de gênio, criatividade", praticar "a educação das consciências", foram seguidos por reações negativas. A Liga, que inesperadamente havia se tornando a paladina dos valores católicos tradicionais, chegou a pedir que o cardeal fosse afastado. O conflito com a CL explodiu: em virtude da diáspora dos católicos provocada pelo fim da DC, expoentes ligados ao Movimento se aliaram à centro-direita. Mas Martini seguiu o caminho que havia traçado: "Que venha uma sociedade civil que não se resigne à deriva de suas instituições públicas e à casualidade de seus ritmos vitais, que depois sempre significam o triunfo dos prepotentes e dos mais espertos". O ponto culminante da parábola de Martini ocorreu em Jerusalém, onde o cardeal havia se retirado. Disse aos peregrinos que vieram comemorar o seu 80º aniversário no Monte das Oliveiras: "O importante é que aprendam a pensar, a se inquietar".
Uma expressão cara a Martini diz que à Sexta-feira Santa da razão, quando as referências morais que guiam as consciências parecem falhar, deveria seguir o Sábado Santo: o tempo da espera, o tempo em que nos preparamos para a volta de Jesus Cristo ressuscitado. Ele havia gravado aquele crucifixo em seu coração. Em seu nome viveu sua relação com Milão, a cidade "abençoada e amaldiçoada". Do trabalho de mais de 22 anos passados na esteira de Ambrósio, emerge com clareza a convicção de Martini: a Igreja não propõe modelos políticos e sociais, mas algumas modalidades essenciais e um espírito capaz de animar a convivência a partir de dentro. O serviço às pessoas e instituições é prestado por uma Igreja que é sal da terra, fermento na massa, luz no castiçal, casa na rocha, cidade na montanha, voz de alegria nas praças e canto de alegria nas casas.
Avançamos se pensarmos grande, nos perguntarmos o que é realmente justo e imbuído de valores.
Objetivo: trabalhar por uma sociedade adulta e amigável. Segundo Martini, em todo empenho público é preciso o apoio de um sonho, de um ideal, de um projeto, de uma utopia sobre a qual medir o presente e graduar as intervenções possíveis sem se deixar sufocar pelas pequenas urgências cotidianas. O sonho de Martini ele mesmo o explicitou: uma Igreja livre, aberta, acolhedora, dinâmica, presente na história, forte nas tribulações, próxima das dores das pessoas, promotora da justiça, atenta aos pobres e aos estrangeiros, não preocupada em ser minoria, mas confiante na eficácia do Sermão da Montanha para a recuperação social e política do tempo, no próprio país, na Europa, entre os cristãos.
A polis da qual Milão é paradigma preserva a semeadura de Martini. A confiança tem fundamentos, a mudança é possível: na sociedade, na política, na Igreja universal, onde o Papa Francisco buscou algumas das pedras angulares da pastoral de Martini: Igreja sinodal, escuta da Palavra, misericórdia...
Martini amava Agostino, que foi batizado em Milão por Ambrósio, apropriando-se destas suas palavras: “E vós dizeis: estes são tempos difíceis, tempos duros, tempos de desventuras. Viveis bem e, com a boa vida, mudais os tempos: mudai os tempos e não tereis do que reclamar”.
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A “novidade” Martini em Milão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU