Por: IHU e Baleia Comunicação | 14 Fevereiro 2025
Na história recente do Brasil o termo “liberdade” se tornou, mais que um bordão e menos que um conceito, um significante vazio. Não porque não representa nada, mas justamente porque ao reduzir sua polissemia a um projeto político e ideológico, transformou-se em algo que no fundo é uma palavra de ordem em favor da extrema-direita. Um autor do pós-Guerra, Isaiah Berlin, nos ajuda a compreender as origens e os sentidos do conceito de liberdade, que passa, ao menos, por duas chaves de leitura importantes: liberdade positiva e liberdade negativa.
“Os efeitos de liberdade negativa são aquelas liberdades individuais conquistadas no decorrer da história, geralmente classificadas como liberdade de alguma coisa. A liberdade positiva é caracterizada em geral como uma liberdade para fazer algo, a liberdade para se realizar, para efetivar o fim desejado. São essas as diferenças entre liberdade negativa e positiva”, explica o professor e pesquisador, Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros, em entrevista por áudios enviados ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Há um pressuposto geral que deve ser observado quando falamos de liberdade, que é, precisamente, uma certa racionalização do indivíduo sobre o que é liberdade. Isso é tudo o contrário do que defende uma moral de manada fanatizada politicamente.
“Para Berlin, na origem dos regimes autoritários está essa ideia de liberdade positiva, que é um ideal do passado, das sociedades fechadas do mundo antigo e que deve ser completamente abandonada em favor da concepção negativa de liberdade. Porque a concepção positiva passa pelo pressuposto de um monismo físico e ontológico. Berlin alega que as finalidades da vida humana são múltiplas e os valores são diversos e nem todos são compatíveis entre si, por isso temos sempre um inevitável conflito entre valores, que são igualmente defensáveis, entre finalidades igualmente válidas”, situa o entrevistado sobre a problemática em torno da aplicação social do conceito de liberdade.
“O que a extrema-direita faz é deformar o sentido da liberdade negativa e tomar essas liberdades individuais – de ir e vir, de expressar a opinião e a crença e de reunião – como sendo liberdades absolutas, liberdades que não conhecem limites. Claramente, a liberdade de ir e vir, por exemplo, em uma crise sanitária como foi a pandemia de coronavírus, essa liberdade de ir e vir, diante da saúde pública, conhece um limite, daí a justificativa para o isolamento social. A liberdade de expressão também tem um limite. Não se pode exprimir opinião pessoal ou a crença se essa opinião, por exemplo, atenta contra a dignidade da pessoa humana, se ela suscita o ódio e a violência contra a determinados grupos. Então, toda a liberdade tem limites”, complementa.
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros (Foto: FFLCH | USP)
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros é professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Possui graduação em Administração (1984) e em Filosofia (1988), Mestrado (1992), Doutorado (1999) e Livre-Docência (2013) em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Desenvolveu pesquisa de pós-doutorado no Royal Holloway College - University of London (2009), no Institute of Historical Research - University of London (2013) e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne (2019). É autor, entre outros, de Liberdade Política (São Paulo: Editora Almedina/Discurso Editorial,2020) e O Conceito de Soberania na Filosofia Moderna (São Paulo: Editora Almedina/Discurso Editorial, 2019).
IHU – O que é, em termos políticos, a “liberdade”? Como o tema passou a ocupar o interesse intelectual no pós-guerra do século XX?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – O conceito de liberdade é polissêmico, ou seja, tem diferentes significados e é utilizado em diferentes domínios da realidade humana. Por exemplo, posso falar da liberdade da vontade, aquilo que tradicionalmente, na história da filosofia, ficou conhecido como o problema do livre arbítrio ou posso tratar do problema da relação liberdade e necessidade. Enfim, posso tratar a liberdade em vários domínios da realidade humana e um desses domínios é no campo político. Então, quando falo em liberdade em termos políticos, eu quero entender como as pessoas são livres vivendo em uma sociedade política.
O tema da liberdade política passou a ocupar um lugar de destaque no debate intelectual do pós-guerra principalmente em razão da tentativa de alguns autores de compreender o fenômeno, até então desconhecido, do totalitarismo. Esses autores se debruçaram sobre o problema do que é ser livre em uma sociedade política.
IHU – Há uma polissemia em torno do sentido do termo “liberdade”. No entanto, quais são as principais compreensões em torno dele?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – Entre os escritos publicados nesse período do pós-guerra, que procuraram compreender o que vem a ser então a liberdade política, destaca-se, sem dúvida, o ensaio de Isaiah Berlin, intitulado Dois conceitos de liberdade, publicado em 1958. Nesse ensaio, Berlin reconhece que o conceito de liberdade tem vários significados, mas ele destaca dois sentidos historicamente atribuídos ao conceito de liberdade: o sentido negativo, que procurava responder à pergunta sobre qual deve ser a área que um agente deve realizar o que é capaz de realizar sem sofrer a interferência sobre outros agentes; e o sentido positivo, que procurava responder à pergunta sobre qual é a fonte de controle da ação do agente.
Ele vincula então o sentido negativo à tradição liberal, em particular aos autores liberais que afirmaram a necessidade de uma esfera de ação individual independente do controle social, livre de qualquer ingerência ou coerção para que os indivíduos pudessem desenvolver plenamente suas faculdades. Já o sentido positivo, ele vincula a autores que postularam a existência de um valor social supremo, ao qual todos os demais valores deveriam estar subordinados, que postularam a existência de um fim último para o qual todos os meios da sociedade deveriam se dirigir. E ele associa esse sentido positivo de liberdade à tradição socialista, comunista, que teria sua origem na Antiguidade e que teria sido retomada na Modernidade por autores como Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant e Friedrich Hegel, e que depois estaria nessa tradição socialista e marxista.
IHU – O que é liberdade positiva e liberdade negativa? Que exemplos nos ajudam a pensar essas diferenças?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – Berlin caracteriza a liberdade no sentido negativo como a ausência de obstáculos externos às possíveis escolhas e ações de um agente. Então, o agente é livre, quanto maior for seu campo de escolhas e de ações que não sofram a interferência de outros agentes, quando ele não é impedido ou coagido por outros agentes. Claramente a perda da liberdade nesse sentido é marcada pela por uma intervenção, interferência deliberada de outros agentes, impedindo ou tornando inelegível a escolha ou a ação.
Já a liberdade no sentido positivo, Berlin exprimiria a determinação do agente em ser senhor de si mesmo, de agir de acordo com seus propósitos sem ser determinado por forças exteriores. Ela é justamente classificada como positiva porque não designa a ausência de algo, como a liberdade negativa, mas a presença de um atributo específico do querer, enfatizando a capacidade do agente de agir conforme sua determinação. Desse modo, nesse sentido, ela requer que o agente tome parte ativa no controle de si mesmo e das suas ações a fim de realizar o que considera necessário para seu próprio bem.
Os efeitos de liberdade negativa são aquelas liberdades individuais conquistadas no decorrer da história, geralmente classificadas como liberdade de alguma coisa. Como a liberdade de ir e vir sem ser coagido, a liberdade de expressar a própria opinião ou crença sem ser impedido, a liberdade de se associar com outros agentes e de se reunir com esses outros agentes sem ser impedido. São sempre caracterizados como liberdades de alguma coisa. A liberdade positiva é caracterizada em geral como uma liberdade para fazer algo, a liberdade para se realizar, para efetivar o fim desejado. São essas as diferenças entre liberdade negativa e positiva.
IHU – Por que a liberdade positiva é associada por Berlin à emergência de regimes totalitários?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – De acordo com Berlin, os dois aspectos mais relevantes que têm sido atribuídos ao ideal de liberdade positiva, são a autoabnegação e a autorrealização. Como a autoabnegação é um ideal frequentemente associado à retirada do indivíduo para uma cidadela interior na qual é possível sua emancipação, é deixada de lado porque ela não é considerada uma expressão da liberdade da vida social, Berlin então se concentra nesse ideal de autorrealização. Esse ideal de autorrealização é sintetizado pela ideia de que compreender o mundo é libertar-se do que é contingente. O seu pressuposto é que ao compreender a necessidade racional de algo, o indivíduo não pode desejar outra coisa, pois seria pura ignorância ou irracionalidade desejar o que não é necessário. O indivíduo é livre se, e somente se, impor a si mesmo ou pelo menos aceitar o que é necessário, isto é, racional. A liberdade então é fruto de um autogoverno racional.
O problema para Berlin está na aplicação deste autogoverno racional do indivíduo à sociedade, ou seja, quando há uma transposição da autodeterminação individual para o campo social. Isso acontece em geral quando uma instituição social, partido político ou igreja arroga ser portadora da razão. Aí, supostamente ao encarnar a razão, essa instituição acaba impondo suas diretrizes sem pedir permissão ou mesmo sem ter consentimento dos seus membros, reprimindo inclusive aqueles que não cumprirem com suas determinações. O grande perigo, para Berlin, é quando essa instituição é o Estado, porque quando as lieis são impostas pela autoridade política, elas acabam sendo promulgadas pelos próprios indivíduos, caso estivessem consultado a própria razão. Portanto, aqueles que não percebem a racionalidade intrínseca das leis do Estado e nem a compreendem, podem ser forçados a obedecer a sua própria razão e a liberdade então se transforma em defesa da autoridade e da opressão.
Para Berlin, na origem dos regimes autoritários está essa ideia de liberdade positiva, que é um ideal do passado, das sociedades fechadas do mundo antigo e que deve ser completamente abandonada em favor da concepção negativa de liberdade. Porque a concepção positiva passa pelo pressuposto de um monismo físico e ontológico. Berlin alega que as finalidades da vida humana são múltiplas e os valores são diversos e nem todos são compatíveis entre si, por isso temos sempre um inevitável conflito entre valores, que são igualmente defensáveis, entre finalidades igualmente válidas. Por isso, para ele, a opção entre os dois sentidos de liberdade é evidente: seria preciso abandonar o sentido positivo, porque ele traz prejuízos à independência individual quando sujeita os indivíduos ao social, e ficar com o sentido negativo, que respeita a diversidade de valores e de fins, que é o único sentido adequado ao pluralismo das sociedades modernas.
IHU – Por que a extrema-direita é tão apegada a repetição de um discurso em favor da “liberdade”?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – Essa é uma questão extremamente interessante e difícil de ser respondida, não tenho uma resposta muito clara e precisa. A minha hipótese – e apostaria nela – é de que a extrema-direita retomou um discurso ideológico muito utilizado no período do pós-Segunda Guerra Mundial que opunha dois campos. Nós sabemos que o pós-Segunda Guerra, no século passado, foi caracterizado por um Guerra Fria, de um lado as chamadas democracias liberais do Ocidente e do outro os regimes socialistas do Leste Europeu.
E, muito autores, incluindo o Isaiah Berlin, entraram nesse debate defendendo as democracias ocidentais com o argumento que só nas democracias ocidentais a liberdade dos indivíduos era respeitada. Nos regimes socialistas do Leste Europeu a liberdade era sacrificada em nome de uma suposta igualdade, uma igualdade que era nivelada por baixo na extrema miséria da população nesses países socialistas. Então, a defesa à liberdade seria a defesa das democracias ocidentais, porque liberdade e igualdade seriam antagônicos: para que eu possa ter liberdade não posso sacrificar essa liberdade em nome de maior igualdade social.
A extrema-direita parece que se apropria desse discurso ideológico e acaba associando governos, supostamente de esquerda, governos que supostamente por serem de esquerda querem implementar o socialismo e depois o comunismo, seguindo o modelo da experiência dos países do Leste Europeu no século passado. A extrema-direita acaba se apresentando como a defensora das liberdades individuais contra esse projeto socialista, comunista dos supostos partidos de esquerda. O que na verdade acontece é uma apropriação de uma concepção de liberdade que veio da tradição liberal, uma apropriação de um conceito de liberdade negativa, mas esta apropriação acontece com uma deformação do que vem a ser a liberdade negativa.
IHU – Em que sentido a liberdade se transformou em uma plataforma ideológica?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – O interessante é que a extrema-direita se apropria dessa concepção negativa de liberdade e muda o seu significado. Na tradição liberal, a liberdade é sempre condicionada, a liberdade, por maior que seja, é sempre limitada. Os autores liberais, seja John Stuart Mill ou o próprio Berlin, reconhecem que não há uma liberdade absoluta. Toda e qualquer liberdade tem o seu limite. E o limite, em geral, é dado pela ordem, pelo bem público, pela segurança pública e assim por diante.
O que a extrema-direita faz é deformar o sentido da liberdade negativa e tomar essas liberdades individuais – de ir e vir, de expressar a opinião e a crença e de reunião – como sendo liberdades absolutas, liberdades que não conhecem limites. Claramente, a liberdade de ir e vir, por exemplo, em uma crise sanitária como foi a pandemia de coronavírus, essa liberdade de ir e vir, diante da saúde pública, conhece um limite, daí a justificativa para o isolamento social. A liberdade de expressão também tem um limite. Não se pode exprimir opinião pessoal ou a crença se essa opinião, por exemplo, atenta contra a dignidade da pessoa humana, se ela suscita o ódio e a violência contra a determinados grupos. Então, toda a liberdade tem limites.
O que a extrema-direita faz é se apresentar como defensora das liberdades individuais, sendo que essas liberdades seriam absolutas. Portanto, a extrema-direita distorce o sentido negativo de liberdade tal como está presente na tradição liberal. É nesse sentido que a liberdade se transforma em uma plataforma ideológica: defende-se a liberdade naquilo que interessa, no caso da extrema-direita, ao seu projeto autoritário. Em nome desse projeto autoritário, que é claramente identificado na extrema-direita, se tem a defesa daquelas liberdades que são convenientes. Defende-se a liberdade de expressão absoluta, porque é conveniente poder diminuir, atacar, suscitar e despertar nas pessoas a violência e o ódio. Assim, defende-se a liberdade plena e absoluta de expressão, de modo que há um uso ideológico do sentido de liberdade por parte da extrema-direita.
IHU – Por outro lado, qual o papel e o conceito de liberdade em regimes autocráticos de esquerda?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – Os regimes autocráticos de esquerda, podemos citar como exemplo na atualidade Cuba e Venezuela, adotam, na terminologia proposta por de Berlin, um conceito de liberdade positiva na medida em que enfatizam que ser livre é se autodeterminar. Daí a ênfase que esses regimes dão à ideia de soberania e autodeterminação dos povos e assim por diante.
O problema, que Berlin já admitia em seu ensaio, é que esses regimes acabam impondo um único fim para todos os membros da comunidade política, determinam quais são os meios para se alcançar esse fim. Esses regimes, em geral por meio de um partido ou uma figura carismática ou outra instituição qualquer, arrogam ser os portadores da razão. Portanto, aqueles que sabem qual é o caminho a ser seguido, qual é a maneira de se alcançar o fim que deve ser alcançado.
Esses regimes autocráticos acabam sufocando as liberdades individuais, que em geral são associadas ao conceito de liberdade negativa. Isso é feito em nome dessa liberdade positiva, que acaba sendo distorcida, porque não são as pessoas que se autodeterminam, mas o regime que estabelece a maneira de se autodeterminar. Então, é preciso restringir uma série de liberdades em nome desse bem maior, desse fim último, superior, ao qual todos devem se dirigir. Esses regimes autocráticos se arrogam com a capacidade de determinar, de saber qual este fim e para onde a sociedade política deve se dirigir
IHU – Como a restauração do pânico moral em torno do fantasma do comunismo está associada ao debate contemporâneo sobre a liberdade?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – Como disse anteriormente, a minha hipótese é que os partidos de extrema-direita e seus porta-vozes retomam este debate ideológico do período pós-Segunda Guerra Mundial, onde há uma oposição entre as democracias ocidentais livres e os regimes socialistas e comunistas do Leste Europeu, que suprimem as liberdades individuais, e atualizam este debate para hoje, fazendo uso desse fantasma que paira – não sei explicar a razão – do comunismo. No sentido de que eles conseguiram fazer que esta ideia de que, se os partidos associados à esquerda assumirem o poder, implementariam regimes comunistas ou socialistas. Quando nós sabemos que nenhum desses partidos associados à esquerda que têm ocupado o poder têm no seu horizonte o estabelecimento de um regime socialista ou comunista.
Mas eles conseguiram difundir essa ideia na sociedade, resgatar este pânico no sentido de que “se esses partidos chegarem ao poder vão instaurar um regime no qual as liberdades serão sufocadas, no qual, em nome da igualdade social, as liberdades serão comprometidas”. E conseguem disseminar essa imagem, fazendo com que de fato muitas pessoas acabem se vinculando a partidos de extrema-direita em razão desse fantasma. De novo, que não sabemos como e porque foi estabelecido. E está muito claro na sociedade brasileira o fantasma do comunismo. Isso influencia o debate contemporâneo sobre liberdade porque, justamente, a extrema-direita acaba assumindo esse papel de defensora da liberdade, contra a suposta intenção dos partidos vinculados à esquerda estabelecerem regimes em que essas liberdades não são respeitadas.
IHU – De que maneira podemos compreender a contradição na qual, historicamente, os únicos agentes de perseguição política e das liberdades individuais no Brasil, os militares e apoiadores da ditadura civil-militar, são hoje os porta-vozes da liberdade?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – Essa pergunta é bastante interessante, porque se formos ver a história do Brasil mais recente, vamos constatar que com o estabelecimento da ditadura civil-militar nos anos 1960 foram, de fato, os movimentos e partidos, em geral associados à esquerda, que foram às ruas defender as liberdades individuais e políticas que foram cerceadas pela ditadura. Com o processo de redemocratização e finalmente o estabelecimento de uma nova Constituição em 1988, essas liberdades individuais e políticas foram consagradas no texto constitucional e dessa maneira asseguradas juridicamente. Quando isso acontece, os partidos e movimentos sociais vinculados à esquerda passam a ter outra bandeira, a bandeira da igualdade social. Porque esses partidos e movimentos sabem que não adianta ter liberdades asseguradas no texto constitucional sem que elas possam ser realmente efetivadas. Ou seja, as liberdades formais estabelecidas no texto, se não têm condições materiais para se estabelecer, ficam somente na letra do texto.
Esses partidos e movimentos começaram a defender a bandeira do combate à fome e da igualdade social. Quando esses partidos, eu estou falando claramente aqui do PT que assume o governo federal por três mandatos consecutivos, procura implementar então essas políticas sociais mais vinculadas ao estabelecimento de uma maior justiça social. Isto é, a bandeira das liberdades individuais e políticas, uma vez assegurada no texto constitucional, fica um pouco deixada de lado.
Quando tem essas liberdades individuais e políticas asseguradas no texto constitucional, garantidas pelo ordenamento jurídico, os governos associados à esquerda procuram implementar políticas sociais, para que essas liberdades não sejam apenas formais, mas que possam de fato se materializar com as condições materiais que são necessárias. A oposição a esses governos de esquerda, em particular aquilo que vai surgindo, essa nova direita, que chamamos de extrema-direita ou direita radical, percebe que essa bandeira da liberdade ficou meio de lado. De forma que eles aproveitam e tomam essa bandeira tentando argumentar e mostrar que essas políticas públicas, que procuram estabelecer uma maior justiça social, colocam em risco as liberdades – eles sempre retomam esse debate ideológico do período após a Segunda guerra. É nesse sentido que esses apoiadores da ditadura civil-militar hoje se tornam porta-vozes da liberdade, claro que distorcendo o sentido de liberdade e não entendo que essa liberdade formal, para que possa se concretizar, necessita das condições materiais necessárias.
Assim, ela arroga ser defensora da liberdade porque essas políticas públicas que têm como objetivo estabelecer maior igualdade, para que se realizem, atentam contra as liberdades. Com isso, opõe liberdade e igualdade, ou seja, não se pode, em nome da igualdade social, abrir mão de determinadas liberdades. Então, eles se tornam porta-vozes da defesa da liberdade.
IHU – Que tipo de distorção semântica faz com que em uma mesma frase caiba a defesa pela liberdade e o repúdio ao aborto, à pluralidade de gênero, a legalização das drogas, etc.?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – A distorção semântica é aquela que já tentei apontar anteriormente. A extrema-direita toma uma concepção claramente identificada na tradição liberal, mas distorce seu sentido. E distorce o sentido tentando retirar tudo aquilo que os autores liberais colocavam como limites à liberdade e passam a defender a necessidade de uma liberdade absoluta, sem limites. É claro que essa liberdade absoluta e sem limite é utilizada de maneira ideológica para alcançar o objetivo claro desses porta-vozes da extrema-direita, que é o estabelecimento de regimes autoritários. Eles querem defender liberdades individuais de ir e vir, de expressão sem qualquer tipo de limite no sentido que se possa expressar a opinião individual mesmo que isso vai ferir a dignidade humana ou mesmo que isso atente contra a dignidade de determinados grupos ou incite o ódio ou a violência, a liberdade de portar armas etc. Eles defendem essa liberdade como se não tivesse limites e, ao mesmo tempo, acabam repudiando determinadas liberdades que associam àquilo que é contrário aos chamados “bons-costumes”.
Os regimes de extrema-direita se anunciam como liberais na economia, no sentido da defesa das liberdades individuais, mas, ao mesmo tempo conservadores nos usos e nos costumes. Então, tudo o que atenta contra esses usos e costumes de uma sociedade cristã mais tradicional, como o caso do aborto, da pluralidade de gênero e da legalização das drogas, acabam sendo atacadas. Porque, para eles, não seriam liberdades, mas libertinagens, atentados contra os valores que eles desejam conservar. É nesse sentido que distorção semântica funciona, que acaba gerando frases completamente contraditórias, onde ao mesmo tempo se defende liberdades individuais e repudia o aborto ou a legalização das drogas.
IHU – Até que ponto o liberalismo e o neoliberalismo transformaram a noção de liberdade em uma coisa anódina e esteio do extremismo político contemporâneo?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – Inicialmente é preciso observar que não existe um liberalismo. Do meu ponto de vista, o liberalismo, assim como outras doutrinas políticas como o comunismo, o socialismo e o republicanismo sempre devem ser ditos no plural: liberalismos. O que quer dizer é que existem várias vertentes dentro do pensamento liberal. Para ficar apenas no exemplo da nossa contemporaneidade, o liberalismo libertário de autores como Robert Nozick, opõe-se ao liberalismo igualitário de autores como John Rawls. Embora Nozick e Rawls sejam autores liberais, os seus programas político e econômico são muito distintos. É importante ter essa dimensão de que existem várias vertentes dentro da tradição liberal.
O que se convencionou a chamar de neoliberalismo é esse movimento de alguns autores depois da Segunda Guerra, que procuram radicalizar o neoliberalismo, em particular no seu aspecto econômico. Nós podemos dizer que, mais do que o liberalismo, o neoliberalismo acaba não transformando propriamente a noção de liberdade, mas acaba acentuando essa ideia das liberdades individuais. O que acontece é justamente o fato de uma extrema-direita que se apropria dessa condição de radicalização das liberdades individuais, distorce seu sentido e passa a defender um tipo de liberdade que não está nem na tradição liberal e nem nos defensores do neoliberalismo. É uma apropriação indevida que a extrema-direita faz do conceito de liberdade.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – É preciso observar que a oposição entre a liberdade negativa, em geral associada à tradição liberal, e liberdade positiva, em geral associada aos regimes socialistas, foi gerada dentro de um contexto da Guerra fria. Portanto, serviu de maneira ideológica para a defesa das chamadas democracias ocidentais, contra os regimes socialistas do Leste Europeu. É possível pensar a liberdade de outra maneira sem recorrer a esses conceitos de liberdade positiva ou negativa e sem me aprender apenas à tradição liberal ou à tradição socialista.
Nas últimas décadas por exemplo, vários historiadores do pensamento político e teóricos políticos têm tratado de uma outra concepção de liberdade, que está presente em outra tradição política, que não a liberal ou a socialista. Esse conceito de liberdade não seria definido pela ausência de interferência, como na tradição liberal, nem seria definido pela autodeterminação da tradição socialista. Esse outro conceito de liberdade, que estaria presente na tradição republicana, se definiria pela ausência de dominação.
O conceito de liberdade republicano teria uma riqueza maior na medida que não basta apenas ter uma ausência de interferência para ser livre, pode não ter a interferência, mas ela pode ter a possibilidade de existir. Basta alguém estar sujeito ou vulnerável a esta possibilidade para que este não seja mais livre. Então, precisa de um conceito mais robusto de liberdade. Da mesma maneira, a autodeterminação necessita que haja essa ausência de dominação. Então, temos essa outra forma de pensar o conceito de liberdade que talvez seja mais rica do que esta dicotomia, esta oposição entre liberdade negativa e liberdade positiva.