17 Outubro 2024
Há uma certa arbitrariedade na conformação de um sistema político, na própria organização do estado que estabelece a possibilidade da anarquia. Para Catherine Malabou, existe uma relação estrutural entre anarquia e filosofia que debate a noção aristotélica sustentada na certeza de que o povo não pode governar-se (inscrita no termo ajé).
A entrevista é de Alejandra Varela, publicada por Clarín-Revista Ñ, 15-10-2024. A tradução é do Cepat.
Jacques Ranciére, um dos autores a quem a filósofa francesa nascida na Argélia dedica um capítulo do seu livro Al ladrón: Anarquismo y filosofía [publicado em espanhol pela editora La Cebra], usou boa parte de sua produção intelectual para demonstrar que política e anarquismo são sinônimos, que a política não tem ajé e que a forma mais legítima de governo surge ao potencializar o acaso, ao buscar que qualquer um possa ocupar esse lugar à frente de um estado.
A autora, que é professora na European Graduate School, Suíça, propõe uma teorização sobre o anarquismo articulada entre uma ética da desobediência, uma dimensão abismal diante da possibilidade do desaparecimento do estado e uma idealização original que pode esconder um certo perigo, caso se ignore que imaginar uma sociedade sem dominação ou autoridade não implica em superar a experiência do poder.
O anarquismo pode ser uma instância da ordem da transgressão, em Georges Bataille, a oportunidade de se afirmar no autogoverno, em Michel Foucault, e a prevalência de um princípio de razão acima de um princípio de autoridade, em Emmanuel Lévinas. Cada autor serve para que Malabou estabeleça um diálogo com um contexto em que o anarquismo foi capturado pelo discurso de extrema direita, o que nos leva a questionar se não estamos assistindo a uma variável libertária que se considera soberana.
A leitura que Jacques Derrida faz dos textos de Sigmund Freud, acerca da conceitualização da pulsão de morte, abre a questão sobre o que acontece com o poder quando se emancipa do estado. O risco da liberação de uma matriz puramente destrutiva surge como um dado ligado à atual configuração do anarcocapitalismo.
A aparição de Giorgio Agamben permite observar a noção de liberdade ligada à potência do não (a impotência). Uma liberdade sem obra, sem ação, que pode resultar absolutamente tanática, sobre a qual o autor italiano convida a conceber uma forma de vida. Malabou se questiona se essa forma de vida não é a aniquilação da própria vida.
A entrevista com a autora discorreu em torno destas ideias, através da troca de e-mails.
Você propõe que “a horizontalidade está em crise, por isso é necessário estudar o anarquismo”. Esta crise nos ajuda a entender esta variante do anarquismo que, hoje, expressa-se como anarcocapitalismo?
A crise da horizontalidade fez com que o capitalismo, em sua guinada ultraliberal, tenha anexado de forma distorcida as ideias anarquistas. Não são apenas ideias liberais clássicas (como as da Escola de Chicago, que defende o não intervencionismo do estado nos assuntos econômicos, a crítica aos impostos e ao papel dos bancos). Não, além disso, o anarcocapitalismo hoje, assim como o ciberanarquismo do qual é inseparável, difunde um novo discurso de (suposta) liberdade, que se baseia na uberização geral da sociedade, no fato de que cada um é livre para se tornar o gerente de si mesmo e de levar sua vida como achar melhor.
É necessário saber decifrar esta mensagem. Na realidade, significa: “Vocês estão abandonados”. Não há uma gestão, nem responsabilidade coletiva da questão social. Ocupem-se de se curar, do estudo de seus filhos, de encontrar um trabalho. O libertarismo clássico, ao contrário do que frequentemente se acredita, baseava-se em uma ideia de comunidade, na maioria das vezes inspirada em pensadores como Robert Nozick. Não é um individualismo desenfreado em matéria de vida privada e social.
Hoje, o anarquismo é assumido por setores liberais desprendido de qualquer ideia de comunidade?
O libertarismo hoje é completamente indiferente à ideia de comunidade. Ou melhor dito, a questão da comunidade é completamente suplantada pela ideia de populismo. Penso que estamos voltando ao que pensadores como Georges Bataille, na Europa, tinham analisado como o coração do fascismo: uma multidão fundida, mas atomizada, que fica no individualismo. Isto foi funcional tanto na América de Donald Trump quanto no Brasil de Jair Bolsonaro. Uma comunhão de individualismos. Este é o paradoxo mortal do fascismo.
A pandemia, especialmente o tempo de quarentena onde prevalecia a vida virtual, foi um elemento que ajudou a fortalecer o anarcocapitalismo e a criar essa ideia de horizontalidade que dialoga com o anarquismo?
O período de confinamento evidentemente permitiu expor a mutação técnico-sociopolítica que se preparava. É preciso ver que o que chamo de crise da horizontalidade começou subterraneamente com a invenção da internet. No coração dos anos 1970, uma utopia parecia realizada: cada cidadão, a partir do seu computador, seria capaz de construir a sociedade do amanhã e participar do interesse geral, sem qualquer coerção. A anarquia seria possível pelo surgimento de uma nova tecnologia. Como disse um pesquisador em informática, cada nó tem a possibilidade de ser criativo e inovador.
No entanto, em 1995, o governo norte-americano decide privatizar a rede de internet. A web é publicitada e se torna objeto de todas as promessas de enriquecimento. Os motores de busca se impõem. Todas as informações remetem à publicidade e se tornam rentáveis. Surgem os primeiros sites de e-commerce como Amazon e eBay. A web abre caminho às plataformas. É dito que não se trata de uma pura passagem da utopia ao pesadelo.
Nos anos 2000, o surgimento da web conversacional, com o nascimento de fóruns, blogs e redes sociais, conjugado ao surgimento do iPhone da Apple, dá a sensação de um empoderamento do cidadão que poderá, em qualquer lugar e hora, participar do debate público. Evidentemente, esta ilusão está desmoronando. O período de confinamento revelou que as plataformas e redes sociais se tornaram indispensáveis, mas só estavam criando grupos que eu chamaria de grupos de miséria. Nenhum projeto alternativo de sociedade surge daí.
Pensava-se que os indivíduos e os estados avaliariam a diminuição de seu consumo, que a ecologia sairia fortalecida deste período. Nada disto aconteceu. Nenhum costume mudou em profundidade. Pelo contrário, o roubo de dados, o affaire da Cambridge Analytica, a fraude das eleições, eis aqui o que verdadeiramente ganhou espaço. É o triunfo do anarcocapitalismo, não do anarquismo revolucionário.
Assistimos a uma ideia de anarquismo que se pensa como soberano?
Sim, uma forma de soberanismo anarquista, nova face do fascismo.
Lévinas sugere que se chega a amar ao senhor quando um sujeito e um povo perdem a consciência de sua opressão. Você questiona a classificação de escravo do modo como é utilizada por Lévinas porque ela não pode ser equiparada a um povo, nem a uma comunidade. Interessa-me pensar este amor ao senhor no contexto atual porque me parece que não está fundado na falta de consciência da opressão, mas na identificação com um líder.
Lévinas tem razão em estigmatizar o grau máximo de opressão como amor ao senhor, amor ao opressor. O que debati em meu livro é o fato de chamar isto de escravidão. A escravidão é uma realidade histórica específica e não pode servir como metáfora para todas as formas de dominação política. Fora isto, compartilho do ponto de vista de Lévinas.
Um exemplo trágico desta situação é, como você diz, a identificação com o senhor, o líder que promove uma ideia de liberdade como a capacidade de governar a si mesmo e só delata, no final, o desinteresse do estado por toda forma de proteção social. É necessário conectar tudo isso com o supremacismo e o direito do branco.
Queria uni-lo com o modo de Derrida pensar a pulsão de morte como um cenário social no qual, uma vez separado o poder da ordem estatal, o que se libera é uma força destrutiva. O que vemos hoje não é a legitimação desta matriz destrutiva?
Sim, mas este discurso é ao mesmo tempo insuficiente. A ideia de que só o estado pode ser uma garantia contra um estado de natureza, entregue à tirania exclusiva do poder puro, interpõe-se no caminho do anarquismo, que não tem nada a ver com esta selvageria, ao menos nos textos fundadores. Então, sou muito prudente neste ponto. O libertarismo ou anarcocapitalismo é em si a expressão de uma pulsão de poder (Freud diz de domínio, Bemächtigungstrieb) que se esconde atrás de uma crítica ao poder (do estado).
É verdade que podemos nos perguntar em que o poder se converte quando não há mais estado. Esta é a grande questão de nosso tempo. Ao menos uma questão antiga que hoje retorna com toda a sua força: quando não há mais estado, ou quando é reduzido a funções puramente administrativas e de controle, o que se obtém? Um estado de guerra de todos contra todos, onde todos os ataques são permitidos, ou uma nova forma de organização, na qual o poder é compartilhado e gerido coletivamente? Encontramos, então, o dualismo entre formas opostas de anarquismo.
Quando analisa Foucault, vemos uma forma de resistência que se funda na individualidade, um recuo do sujeito sob a forma do governo de si. Neste caso, não se trata de uma afirmação do individualismo?
Em meu livro, tentei me opor a essa visão do último Foucault como um suposto pensador de uma forma individualista neoliberal. É verdade que os últimos seminários, aqueles que giram em torno do cuidado de si, marcam uma grande mudança em sua trajetória. Contudo, considero, contra todas as críticas, que o último seminário, A coragem da verdade, é o seu testamento anarquista. A sua análise do cinismo, da posição de Diógenes em particular, põe em cena o que chamo de noção do não governável. O não governável não é o ingovernável, mas, sim, o que permanece irremediavelmente alheio ao governo.
Diógenes manifesta, por seu modo de vida, um poder de transformação política que se baseia na capacidade de mudar a perspectiva (“Mudar o valor da moeda”, dizem os cínicos) na definição do poder como limite à dualidade do mando e a obediência. O poder se torna, então, uma força vital que se organiza em função de uma relação de equilíbrio que se estabelece entre as tensões do corpo e a tranquilidade da alma. Nada a ver com o individualismo narcisista. O cínico não tem espelho.
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“O libertarismo, hoje, é completamente indiferente à ideia de comunidade”. Entrevista com Catherine Malabou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU