07 Setembro 2024
Desigualdade e frustrações deslocaram o eixo da política para o campo dos valores – onde opera uma aliança entre interesses financeiros, preconceitos de gênero e religião. Hipótese: a esquerda pode (e precisa!) disputar este território.
A resenha do livro Anti-Gender Politics In The Populist Moment, de Agnieszka Graff e Elzbieta Korolczuk (Editora Routeledge, Londres, 212 páginas), é de Ladislau Dowbor, publicada por Outras Palavras, 04-09-2024.
A versão em PDF grátis está disponível aqui.
Dowbor é economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S”. Autor e coautor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no seu website.
Estávamos acostumados a tratar questões políticas, econômicas, religiosas e de gênero como espaços diferentes, tanto nas discussões como nas pesquisas, e em particular como áreas separadas nas universidades. Isso fragilizou muito a nossa compreensão das novas dinâmicas que transformam a sociedade a partir da sua própria base.
Lembro que há uns 15 anos atrás, tempos de governo Lula, uma alta autoridade da União Europeia me perguntou do que eu achava da perspectiva de os evangélicos chegarem ao poder no Brasil. Comuniquei de maneira condescendente que não estava no horizonte político. Hoje me arrependo desta minha incompreensão do que estava se passando no país, transformação melhor entendida por um especialista europeu. O que está hoje escancarado, é precisamente que o populismo de direita se enraizou na base da sociedade numa aliança que usa crenças religiosas, preconceitos de gênero, interesses financeiros, sistemas modernos de comunicação comportamental, e os sentimentos de frustração irritada dos mais pobres para gerar uma máquina de poder político, o populismo de direita.
No caso do Brasil, um livro de primeira ordem, de Bruno Paes Manso, A fé e o fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI (2023) analisa precisamente como se formou esta convergência de diversas dimensões do cotidiano da população, aliando religião, política, polícia e criminalidade numa nova “costura” que articula as comunidades, gerando novos sistemas de governança. A religião e a sexualidade, o controle do comportamento íntimo das famílias, passam a desempenhar um papel poderoso. Quando elegemos um político, teoricamente se trata de assegurar que o setor público administre os investimentos necessários na educação, na saúde, nas infraestruturas, na promoção de empregos e semelhante. São os “programas” que se apresentam para as eleições. Em vez disso, as pessoas irão votar no que se apresenta como costumes, como se os políticos devessem tratar de como e para quem rezamos, como organizamos as nossas famílias, como educamos nossos filhos. Deus, Pátria, Família já era o mote da ditadura de Salazar em Portugal, um século atrás. E como funciona. Não busca a racionalidade, busca as emoções.
O livro que queria aqui apresentar foca essas dimensões no plano internacional. Na Europa tão cultural e civilizada, enfrenta-se essa convergência da luta antigênero (leia-se controle da sexualidade das mulheres), da promoção da religiosidade (como se estivéssemos elegendo pastores), do uso das mídias sociais personalizadas (baseadas no uso de informações privadas das pessoas), e de pretensos valores “tradicionais”. Nos Estados Unidos as religiões se transformaram já há tempos em feudos de poder, com impressionante convergência entre valores retrógrados e as mídias mais avançadas, também navegando no mundo de frustrações geradas pela desigualdade e estagnação na base da sociedade. Os mais pobres nas mãos dos que mais reproduzem a pobreza.
Duas polonesas, Agnieszka Graff e Elzbieta Korolczuk realizaram uma pesquisa de impressionante riqueza sobre justamente como se articulam essas diversas dimensões da sociedade, com poderoso impacto político que se enraíza na intimidade de como rezamos, de como nos relacionamos com a família, mas também de como votamos. O populismo político de direita é aqui visto como construção inovadora, que termina se articulando com as forças econômicas das grandes corporações, como no caso das Koch Industries nos Estados Unidos, justificando e assegurando apoio político da base social mais explorada para o sistema tecnologicamente mais avançado e explorador. A análise nos ajuda a entender como se construiu esse paradoxo político, por meio da pretensa superioridade moral, com uso não de propostas de soluções concretas de governança, mas sim de grandes acenos à família, uso da bandeira, conceito de austeridade na política, e de controle comportamental, em particular das mulheres.
(Foto: Reprodução da capa da obra)
As autoras analisam o caso da Polônia, que acaba de sair de sete anos de um governo religioso fundamentalista que desestruturou as políticas públicas, e também os casos de Donald Trump nos Estados Unidos, de Orbán na Hungria, bem como dos movimentos semelhantes na Itália, na França, na Inglaterra e inclusive no Brasil. A força do livro resulta em grande parte da profundidade da análise: as autoras participaram como observadoras das grandes reuniões internacionais dos movimentos de extrema direita populista nos diferentes países e em diferentes épocas, permitindo justamente a compreensão de como o uso das religiões, dos movimentos anti-gender, em particular com a questão do aborto, dos interesses financeiros e dos interesses político-partidários convergiram para a formação do poderoso movimento populista de extrema direita que se tornou tão poderoso no mundo.
Tive uma reunião com uma das autoras, Elzbieta Korolczuk, em Varsóvia, em julho deste ano, ela me deu a versão polonesa do livro, que terminei lendo no avião. Impressionante a riqueza das análises. Ao comunicar-lhe por e-mail o meu entusiasmo, Korolczuk, que é professora na Suécia, me mandou o link da versão original em inglês, disponível gratuitamente online, opção que tantos autores e editores estão começando a adotar: não substitui a venda dos livros impressos, pelo contrário, estimula, como constato com meus próprios livros, todos disponíveis no meu site e nas livrarias. Tempo de nos modernizarmos.
Uso moderno e construtivo das tecnologias mais avançadas, para denunciar, neste caso, o uso dessas tecnologias para nos empurrar para o mais profundo obscurantismo político e comportamental. O problema não está nas tecnologias, e sim no para que são usadas, como é o caso em particular da inteligência artificial. Hoje o poder das plataformas da comunicação, o dinheiro dos gigantes financeiros, e o controle dos nossos comportamentos íntimos geram uma nova ameaça, e se tornaram dominantes. Estamos na era da inteligência artificial manipulando a profundidade das nossas emoções, das nossas dimensões irracionais, buscando nos trancar em regimes obscurantistas.
O ponto de partida das autoras é a própria Polônia, onde o tradicionalismo religioso e o controle das políticas feministas, o “anti-gender” como é qualificado no plano mundial, foram apropriados pelo partido PIS (Prawo i Sprawiedliwosc: Direito e Justiça) para eleger um governo fundamentalista religioso de extrema direita. Quando chegaram ao extremo de proibir e criminalizar o aborto até em casos de estupro e de malformação do feto, houve uma reação impressionante: meio milhão de mulheres desceram às ruas, vestidas de preto, e com cartazes radicais em defesa dos direitos das mulheres. A causa do aborto, tratada com tantos cuidados e prudência em diversos países, aqui foi escancarada, e transformada em movimento político poderoso, contribuindo fortemente, inclusive, para a queda do PIS em 2023. Caiu o governo, mas o enraizamento do discurso populista, a propagação da sua falsa superioridade moral, e a sua articulação com o populismo político continuam muito presentes na sociedade, em particular no meio rural e nas camadas mais pobres.
Segundo as autoras, “As campanhas antigênero se alimentam de sentimentos religiosos e empregam discursos moralizantes, mas sua disseminação só pode ser devidamente compreendida no contexto da ascensão de forças políticas de direita que buscam meios ideológicos e afetivos para ganhar hegemonia” (164). Trata-se de manipulação de sentimentos, no sentido mais direto. “A retórica antigênero funciona porque reorienta a raiva coletiva para longe das questões econômicas estruturais e para as morais. No processo, o antigenerismo confere aos sujeitos a memória de uma vergonha imaginária e a promessa de uma nova dignidade; oferece satisfação moral (nossos inimigos são maus, mas miseráveis), um senso de propósito e uma comunidade” (135). O populismo, segundo as autoras, “se alimenta do ressentimento e do medo, e tende a moralizar os conflitos e necessita de inimigos”.
“Argumentamos que a mobilização anti-gênero desempenhou um papel importante na consolidação da direita populista como um movimento transnacional, que aproveita com sucesso a ansiedade, a vergonha e a raiva causadas pelo neoliberalismo. Em país após país, atores antigênero construíram alianças com populistas de direita: juntos eles atacaram os direitos das mulheres, minorias sexuais e étnicas, promovendo o que os conservadores chamam de 'valores familiares'. Os vários episódios que observamos em diferentes contextos – campanhas contra o aborto e a educação sexual, esforços para impedir a ratificação da Convenção de Istambul e ataques contra a comunidade LGBT – somam-se a um fenômeno transnacional na interseção de cultura, religião e política, que liga diferentes atores e agendas ideológicas muitas vezes díspares” (165).
O sucesso da impressionante mobilização feminina na Polônia foi devido em grande parte ao fato de responder na mesma moeda, nas emoções, na solidariedade, na reversão do medo, indo além do papel que desempenha a argumentação racional. As mulheres desceram às ruas com raiva. “Na Polônia, A luta das mulheres pela liberdade reprodutiva foi promulgada com sucesso como uma revolta popular, uma luta pela democracia e contra a violência do populismo de direita. Também acabou sendo um movimento de esquerda, que prontamente apoiou protestos de pessoas com deficiência exigindo incluir entre os seus objetivos um conjunto de exigências relativas à cuidados, provisões sociais para famílias e justiça social” (162).
As autoras citam o manifesto Feminismo para os 99%: “O que estamos vivendo é uma crise da sociedade como um todo. De forma alguma restrito aos recintos das finanças, é simultaneamente uma crise de economia, ecologia, política e “cuidado”. Uma crise geral de toda uma forma da organização social, é no fundo uma crise do capitalismo – e em particular da forma viciosamente predatória de capitalismo que habitamos hoje: globalizante, financeirizado, neoliberal” (p. 142).
A leitura do livro nos enriquece muito, na medida em que traz informações sobre como a extrema direita, que hoje tanto progride no mundo, utiliza esta articulação da sexualidade, da falsa proteção “das nossas crianças”, da manipulação religiosa, da moralidade familiar, da mídia social, de símbolos poderosos como a pátria, para favorecer a submissão ao mundo corporativo. Permite também, em diversos capítulos, entender como organizações de extrema direita se organizam no mundo para esta articulação, com participação direta, por exemplo, de Steve Bannon, tão importante na eleição do Trump nos Estados Unidos, inclusive com referências ao bolsonarismo.
São desafios políticos no sentido mais amplo, envolvendo muito além dos partidos e das propostas de políticas públicas. Usam as tecnologias mais avançadas de comunicação, e também o enraizamento nas comunidades religiosas, para formar uma máquina de manipulação poderosa. Para mim, a leitura simultânea do livro de Bruno Manso mencionado acima, e da análise dos diversos movimentos no plano internacional, ajuda a entender o deslocamento profundo do que chamamos de política. Trata-se de uma batalha de valores e de civilização. Lembrando mais uma vez que o livro em inglês está disponível gratuitamente online, no link Anti-Gender Politics in the Populist Moment | Agnieszka Graff, Elżbiet (taylorfrancis.com) Eu recomendaria muito que fosse traduzido e publicado online no Brasil.
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Para decifrar o enigma da ultradireita. Artigo de Ladislau Dowbor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU