27 Setembro 2024
Nick Srnicek, que recentemente se aprofundou no estudo da economia política do capitalismo digital, acaba de publicar Después del trabajo: una historia del hogar y la lucha por el tiempo libre (Depois do trabalho: uma história do lar e a luta pelo tempo livre), escrito em parceria com Helen Hester, no qual discutem as tendências atuais do futuro do trabalho. Conversamos com ele sobre esse problema tão importante na nossa conjuntura atual.
A entrevista é de Joaquín Moreira Alonso, publicada por Brecha, 20-09-2024. A tradução é do Cepat.
Nos últimos anos tem havido uma preocupação intelectual acerca do trabalho, no quadro de uma perspectiva que poderíamos chamar de pós-trabalhista. Por que você acha que isso está acontecendo e que características possui?
Existem várias razões pelas quais o tema do pós-trabalho ganhou popularidade nos últimos anos. Uma delas é o avanço tecnológico. Fala-se cada vez mais sobre o potencial da automação, da aprendizagem automática, da inteligência artificial [IA] e da robótica para substituir muitos trabalhos, deixando as pessoas com medo de que os robôs lhes tirem os empregos. Há também o aspecto geracional. Para a geração Z, o trabalho já não proporciona identidade ou sentimento de pertença a uma comunidade ou rede de solidariedade. Existe um sentimento generalizado de desconexão entre o trabalho e as gerações mais jovens.
Além disso, há uma transição econômica que faz com que muitas pessoas sejam excluídas do mercado de trabalho, à qual se soma o impacto das mudanças climáticas. Isto levou à reflexão sobre alternativas ao crescimento do produto interno bruto e sobre o interesse no consumo material e a produtividade. Surge assim a consideração do ócio como uma possível alternativa.
Todas essas grandes mudanças estão convergindo para a ideia do pós-trabalho como um futuro viável. Em vez de organizar a sociedade em torno do crescimento, do consumo material e da necessidade constante de nos vendermos em troca de uma renda, visa aumentar a nossa liberdade e explorar novos modos de vida.
Atualmente você está trabalhando mais na questão econômica, mas isso vem de um interesse filosófico pela subjetividade. Você acha que este também é um fator relevante para entender por que isso é um problema agora?
Sim, penso que é. A mudança geracional reflete uma mudança na subjetividade. Nasci na década de 1980 e fui criado para me ver como um pequeno empreendedor. Muitos de nós fomos educados para nos considerarmos meros trabalhadores esforçados.
A longa tradição de utilizar a educação e as instituições ideológicas para formar os indivíduos como bons trabalhadores sob o capitalismo tem sido difundida durante décadas. Contudo, esta forma como se liga às pessoas está mudando significativamente.
Parte disto se deve ao contexto econômico: muitas regiões passaram por longos períodos de crise. E nos países ricos, embora não tenha havido uma crise aberta desde 2008, os salários estagnaram e o trabalho tornou-se mais precário. Para muitos que nasceram nos anos 2000, o trabalho nunca foi visto como uma salvação, mas uma fonte de sofrimento. Esta perspectiva muda drasticamente a relação subjetiva das pessoas com o trabalho, as suas identidades e a forma como se formam. Definitivamente há uma grande mudança na subjetividade.
Quais são os aspectos mais relevantes em que a tecnologia mudou o mundo do trabalho e a nossa relação com o trabalho?
Surgiram recentemente maneiras bastante óbvias pelas quais a tecnologia mudou o trabalho que tem a ver com as plataformas. A Uber é o exemplo típico de como estas levaram um grande número de pessoas a trabalhos muito precários, geralmente mal remunerados e instáveis, sem os benefícios, os direitos e as responsabilidades de um emprego tradicional. Eu diria que houve uma verdadeira transformação do formato contratual padrão de trabalho, que foi dominante, pelo menos nos países ocidentais, durante décadas.
Outra mudança importante é o gerenciamento algorítmico. Agora, as pessoas não são supervisionadas por um chefe que as vigia diretamente, mas por um algoritmo ou aplicativo que as monitora o dia todo. Isso começou com plataformas como a Uber, mas se tornou muito mais comum, principalmente depois da pandemia. O trabalho remoto permitiu que os empregadores monitorizassem muitas das tarefas realizadas num computador de uma forma que não era possível há cinco anos.
Além disso, uma mudança mais sutil provocada pela tecnologia é a degradação do que poderíamos chamar de classes profissionais e gerenciais. A programação e o ensino são bons exemplos. Há 20 anos, esses empregos tinham status elevado, bons rendimentos e eram altamente valorizados, mas agora passam por um processo de degradação. Por exemplo, nas universidades é comum encontrar professores com contratos de curta duração e mais precários. A programação também está sendo afetada, uma vez que a IA generativa pode substituir os programadores ou simplificar as suas tarefas e transformar este trabalho anteriormente técnico e profissional em algo que pode ser feito por mais pessoas.
Estamos vendo como essas profissões estão se degradando e aproximando das condições tradicionais da classe trabalhadora. Está se produzindo uma polarização na estrutura de classes em consequência dessas tecnologias. Embora seja uma mudança sutil, está se tornando mais importante.
Mas a automação sempre existiu. Agora é diferente? Por que se fala tanto sobre o futuro do trabalho? É apenas a tecnologia ou há alguma outra razão pela qual isto está se tornando relevante?
Sim, creio que a tecnologia é um aspecto fundamental em tudo isso. Embora ainda não tenhamos visto muita automação proveniente do aprendizado de máquina, os avanços são bastante significativos. As pessoas tendem a projetar estes avanços para daqui a cinco ou dez anos e a imaginar como diferentes tipos de empregos poderiam ser automatizados, o que desperta preocupações sobre o avanço tecnológico e a possível automatização desses empregos.
Mas o outro lado disto, que Aaron Benanav explica bem, é que a ansiedade em relação à automação não se deve apenas à ameaça potencial de desaparecimento de empregos, mas também à falta de confiança de que a economia seja capaz de gerar novos empregos, como costumava acontecer no passado. Nos países capitalistas avançados, o crescimento econômico tem sido limitado ao longo dos últimos 30, 40 ou 50 anos, e o crescimento da produtividade também suavizou. Embora haja crescimento, não se compara ao de meados do século XX. Portanto, existe o receio de que, se os empregos atuais forem eliminados, não haverá novos empregos disponíveis. É uma combinação de ansiedade econômica latente e a projeção de avanços tecnológicos futuros que leva as pessoas a terem medo da automação que vemos hoje.
Vivemos num contexto que alguns chamam de policrise, ou crise permanente, que coexiste com uma situação de lucros recordes para as empresas e com vulnerabilidade e empobrecimento dos trabalhadores. Como isso entra na discussão?
Se tivermos em conta a queda no crescimento da produtividade e a estagnação econômica, o que resta é um bolo econômico que, a nível global, não está crescendo tanto como antes. Se olharmos para meados do século XX, quando esse bolo crescia bastante, era fácil para as classes ricas dizerem: “Bem, sim, vamos dar alguma coisa às classes trabalhadoras, vamos comprá-las com melhores padrões de vida”. Mas se já não tivermos esse crescimento, a situação econômica torna-se um jogo de soma zero.
Isto ajuda a explicar o conflito de classes cada vez mais evidente. Por um lado, lucros recordes e, por outro, salários estagnados em muitos países capitalistas avançados. Aqui no Reino Unido, os salários reais não crescem há 16 anos, o que é incrível; é preciso retroceder séculos para encontrar uma situação semelhante. Há também países, como a Itália e o Japão, que têm estado na vanguarda desta estagnação econômica, aos quais devemos acrescentar as mudanças demográficas provocadas pelo envelhecimento da população. O conflito de classes intensifica-se porque a maioria não vê qualquer melhoria no seu nível de vida, enquanto um pequeno grupo desfruta de um aumento incrível da sua riqueza.
Outro aspecto fundamental é que este jogo de soma zero também explica a ascensão do nacionalismo econômico. Temos a guinada dos Estados Unidos e da Europa em direção às políticas industriais, enquanto a China as aplica há anos. À medida que esta concorrência entre regiões se torna mais clara, a China trata de abocanhar o máximo possível desse bolo econômico em desaceleração.
A estagnação econômica ajuda a explicar muitos dos fenômenos perversos que estão surgindo, e isto é algo que não será resolvido facilmente. Alguns pensam que poderá haver uma recuperação no crescimento da produtividade, mas não vejo isso. A pergunta é: como a esquerda enfrenta esta realidade? Como podemos enfrentar um mundo que se parece menos com o período dourado do capitalismo do pós-guerra e mais com o capitalismo do século XIX?
Como você acha que a esquerda pode se adaptar a uma era pós-industrial em que quase não existem as grandes fábricas que geram milhares de empregos? Será necessário mudar a nossa visão e reconhecer que vivemos numa sociedade diferente daquela de meados do século XX?
Podemos nos perguntar: qual é a imagem do futuro que aqui imaginamos? É um futuro em que todos continuaremos trabalhando nas fábricas ou, pior, na mineração? Ou é um futuro em que teremos mais ócio e liberdade? Para mim, uma das coisas que a esquerda pode fazer neste momento, e isto se aplica a todo o mundo, é lutar pela liberdade. Penso que durante muito tempo a esquerda deixou a direita neoliberal dominar o significado da liberdade. Eles puderam dizer que liberdade é gastar o dinheiro como você quer ou ter o emprego que você escolher.
Penso que a esquerda precisa realmente argumentar que esta é uma ideia horrível de liberdade, uma ideia extremamente fraca, e depois apresentar a sua própria alternativa. Uma alternativa que esteja focada no ócio, na autonomia e na autodeterminação. Tudo isto é fundamental para um projeto de esquerda orientado para o futuro. Combina muito bem com a visão pós-trabalho do futuro, pensando em como organizamos a nossa sociedade para maximizar a quantidade de tempo livre e a liberdade que as pessoas têm.
Isto requer enormes transformações nas nossas sociedades, mas é um caminho a seguir. É uma forma de começar a abordar problemas cruciais de hoje, como as mudanças climáticas e a desindustrialização prematura.
Diante destas preocupações, os setores da direita e do centro costumam responder com uma pergunta ardilosa, mas recorrente: como isso será pago? Como a esquerda e os movimentos sociais podem responder? Que estratégias podemos considerar para abordar esta questão e oferecer uma resposta eficaz?
A questão do financiamento depende de cada país, mas em todo o mundo há aspectos em que o sistema de bem-estar social e o sistema fiscal são extremamente enviesados a favor dos ricos. É simplesmente a natureza de classe intrínseca do Estado: há sempre formas de os ricos se beneficiarem. Podemos usar isso como um ponto de alavanca para tentar recuperar algumas receitas para o Estado e assim poder financiar diversas iniciativas.
É uma luta de classes, e penso que precisamos torná-la mais explícita. Não se trata da ideia de que somos todos neutros, de que todos queremos o melhor para todos e de que partilhamos os mesmos interesses, ou de “ah, é uma pena que não possamos pagar certas coisas”. É uma questão de classe: algumas pessoas se beneficiam e outras perdem. E precisamos lutar para decidir quem está se beneficiando e quem está perdendo nesta situação.
O que os movimentos sociais e as ações locais podem fazer para recuperar algum ócio e liberdade, visto que muitas vezes não têm o mesmo poder que os governos e os partidos?
Um aspecto é criticar as ideias de desenvolvimento que as grandes empresas de tecnologia começam a promover. Há muito interesse na construção de novos data centers na América Latina, e penso que é importante opor-nos à ideia de que isto representa algum tipo de caminho para o desenvolvimento, em vez de ser simplesmente uma questão de exploração de recursos locais, como a água, a energia e as populações. Os governos podem decidir permitir que a Amazon e o Google construam centros de dados, mas deveriam pelo menos negociar melhores condições.
O outro aspecto é mais positivo: todos podemos promover a discussão sobre o tempo livre. Pode começar com pequenas ações, como exigir um melhor equilíbrio entre a vida pessoal e profissional e garantir que, uma vez terminado o dia de trabalho, o seu tempo de trabalho remunerado realmente termine, sem que os empregadores o contactem após o expediente.
Mas também pode envolver medidas maiores, como mais dias de férias, uma semana de trabalho mais curta ou menos horas de trabalho semanais. Este tipo de mudança já está sendo implementado em muitos países, e acredito que há espaço para uma ação internacional a este respeito, com vários países extrapolando os limites ao mesmo tempo.
Além disso, é essencial promover uma nova narrativa de liberdade, destacando que a ideia neoliberal de liberdade é vazia para a maioria das pessoas. Temos que apresentar uma alternativa que, embora não dê resultados imediatos, lance as bases para grandes mudanças no futuro. Às vezes trata-se de criar as condições para um futuro melhor, em vez de construí-lo imediatamente.
Como podemos compreender a contradição entre o crescimento lento da procura de trabalho e a pressão para aumentar a oferta, através de coisas como os múltiplos empregos ou o aumento da idade da aposentadoria? Isto parece economicamente ineficiente e é promovido em todo o espectro político, incluindo a centro-esquerda.
Penso que parte do problema tem a ver com a crescente estagnação econômica, e é importante que fique claro: estamos num jogo de soma zero. O que está acontecendo é que os trabalhadores estão vendo os seus salários estagnarem ou mesmo diminuírem, e estão sendo forçados a assumir vários empregos para sobreviverem, enquanto a inflação galopante torna ainda mais difícil pagar as coisas.
Toda essa pressão do sistema, que não cresce rapidamente, está sendo transferida para as classes trabalhadoras. Ao tomarmos mais consciência da natureza de soma zero do sistema atual, poderemos compreender melhor as suas contradições. A verdade é que, se um grupo está ganhando, isso acontece à custa de outro, e neste momento são os extremamente ricos que estão ganhando à custa dos demais.
Precisamos, pois, de mais clareza nisso, deixando de lado aquela falsa ingenuidade de que estamos todos juntos nisso e queremos o melhor para todos. Isso não é verdade. Algumas pessoas lutam pelos seus próprios interesses, enquanto outras assistem impotentes ao que lhes está sendo tirado.
No ano passado, você e Helen Hester publicaram Después del trabajo e concentraram grande parte do livro no trabalho de cuidados. Como você acha que o trabalho de cuidados, que muitas vezes não é considerado no mercado de trabalho, está sendo afetado pelas mudanças tecnológicas? E que papel poderia desempenhar numa nova forma de pensar o trabalho?
Falamos muito sobre o trabalho de cuidado, primeiro, porque ele tem sido ignorado em muitas reflexões sobre o futuro do trabalho e do pós-trabalho. Em segundo lugar, porque este é o futuro do trabalho. Se olharmos para as tendências, há um número crescente de trabalhos de cuidado tanto na economia remunerada como fora dela. Contudo, quando se discute o futuro do trabalho, as enfermeiras ou os trabalhadores de cuidados domiciliares raramente são mencionados; em vez disso, falamos de programadores e especialistas em IA. Assim, uma parte fundamental do livro centra-se na forma como o trabalho de cuidados se enquadra nestes discursos, tanto sobre o futuro do trabalho como sobre o fim do trabalho, que é crucialmente importante.
Há também a abordagem clássica das feministas dos anos 1970 sobre a remuneração do trabalho doméstico, onde se tratava de atribuir um valor monetário a esse trabalho não remunerado que era realizado no âmbito doméstico. Se olharmos para as estatísticas atuais, estima-se que este trabalho ascenda a bilhões de dólares. É uma enorme quantidade de dinheiro produzido sem remuneração, geralmente pelas mulheres nas suas casas. Isto desmente a ideia de que vivemos numa sociedade completamente mercantilizada, porque há uma enorme quantidade de trabalho que não é mercantilizada.
Este é um ponto-chave para pensar sobre o crescimento econômico e o futuro do trabalho, porque é onde está e estará a maioria das pessoas. Precisamos pensar sobre como organizamos este setor, como organizamos este grupo de trabalhadores e que tipo de interesses estamos defendendo ao colocar o trabalho de cuidados no centro das nossas prioridades.
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“Uma das coisas que a esquerda pode fazer é lutar pela liberdade”. Entrevista com Nick Srnicek - Instituto Humanitas Unisinos - IHU