19 Julho 2024
Para o jornalista e sociólogo Ignacio Ramonet, atualmente “as pessoas não votam apenas por ideologia, mas também em função de suas condições de vida ou como imaginam e percebem suas condições de vida”. Em sua avaliação, muitas pessoas votam preocupadas com o seu poder aquisitivo, a sensação de segurança, a questão dos estrangeiros e com o sentimento de “desclassamento”. “Daí a tentação de guinar para a ultradireita, que propõe autoridade e ordem”, avalia.
A entrevista é de Marta Otero Mayán, publicada por La Opinión A Coruña, 11-07-2024. A tradução é do Cepat.
Para quem você torceu na semifinal da Eurocopa?
Foi um dilema. Sou espanhol, mas moro em Paris há 50 anos. Conheço bem a equipe da França, gosto de futebol, mas acho que desde o início desta Eurocopa, a Espanha estava jogando melhor e a França nos decepcionou bastante. Acho que merecia ganhar e me alegro que a Espanha tenha vencido.
Muita sociologia política no futebol das seleções: a capa do L’Equipe com o “Não passarão”, as declarações de Mbappé... Podemos fazer alguma leitura deste torneio para além do futebol?
Sim, é muito importante. Os jogadores franceses, após as Eleições Europeias, fizeram algumas declarações incomuns, em geral, para jogadores de futebol. Não costumam se pronunciar politicamente, e menos ainda no marco de uma competição tão importante como é a Eurocopa. Fizeram declarações importantes dizendo que uma vitória do Reagrupamento Nacional, da ultradireita, não seria boa, que pensavam que os valores republicanos não seriam preservados.
As declarações de Thuram e Mbappé tiveram uma influência importante, no segundo turno, nas periferias das grandes cidades, onde vivem muitas populações migrantes e filhos de migrantes que já são franceses por direito de solo, que é um dos princípios que a ultradireita quer limitar ou anular. Todos esses eleitores foram votar em massa. Isto teve sua parte, não decisiva, mas importante.
Por outro lado, o fato de que na equipe espanhola tenham se destacado dois jogadores como Lamine Yamal e Nico Williams é muito importante, porque mostra que estamos em sociedades cada vez mais heterogêneas, em que a cidadania é o valor principal e não a origem étnica ou nacional dos pais. São elementos que sempre existiram no futebol, mas que as circunstâncias deste momento permitem destacar.
Os jogadores franceses, que às vezes continuam sendo apontados como estrangeiros, conseguem mobilizar o voto nos banlieues, onde há certo desenraizamento com o país, apelando aos valores republicanos. Yamal comemora gols com o CEP de seu bairro em Mataró. Existe uma nova identificação com os símbolos de um país, através do futebol?
Isso é genial. O forte debate na França aconteceu em 98, quando foi campeã mundial com uma equipe que contava, entre outros, com Zinédine Zidane e Thuram, pai do jogador atual, e muitos jogadores cujos pais eram de origem africana ou antilhana. Se a bandeira francesa tem as cores branca, vermelha e azul, dizia-se que eram blanc, beur, black (branca, árabe, negra), pois era uma equipe que tinha filhos de muçulmanos, afro-franceses e filhos de franceses “de raiz”, mas tudo isto constituía a nova nação francesa.
Hoje, é interessante que ninguém mais questiona a sua identidade francesa, apesar de Mbappé ser filho de uma argelina e um marfinense [N. d. T.: na verdade, camaronês]. Ninguém mais sabe disso, Mbappé é visto como um francês a mais, nem a ultradireita questiona a “francesidade” destes jogadores. Houve um grande progresso. Se a extrema-direita espanhola questiona a “espanholidade” de Lamine e Nico, que lhe sirva de lição o que aconteceu na França, onde não há mais discussão.
Disse que essas declarações de Mbappé explicam parte da guinada – e a surpresa – do segundo turno na França, mas não tudo. A união foi o mais determinante?
Essencialmente, o elemento central é o cordão sanitário republicano. É um mecanismo possível na França, mas não na Espanha. Na França, no segundo turno, só passam os dois primeiros, ou todo candidato que tenha obtido mais de 12,5% dos votos. Havia muitos duelos no segundo turno, mas quase uma centena de triangulares, com três candidatos, e até quadrangulares.
Desde que a ultradireita foi criada, há mais de 50 anos, impôs-se a disciplina republicana. Qualquer candidato que fique em terceiro lugar, se é do arco democrático, é convidado a se retirar para que no segundo turno haja um duelo entre o arco democrático, seja qual for o partido, esquerda, direita ou centro, mas democrático, contra a ultradireita. Isto faz com que muitos eleitores, a maioria, apesar de em quem gostariam de votar, possam votar em um candidato de direita, na medida em que faz parte do campo democrático, e não na ultradireita.
Essa disciplina republicana, esse cordão sanitário, foi o que permitiu eliminar centenas de candidatos de ultradireita que tinham chegado em primeiro lugar no primeiro turno, no qual mais de 400 candidatos da ultradireita ficaram em primeiro lugar para as 577 cadeiras da Assembleia Nacional. Em um sistema como o britânico, com um único turno e com maioria simples, em 30 de junho, a ultradireita teria 400 deputados, e ficou com 114.
Quando os partidos querem realizar este cordão sanitário, costuma ser complicado transferir a ideia aos eleitores, que nem sempre estão dispostos a votar com um prendedor no nariz. No entanto, isto aconteceu.
Exatamente. Foi o que aconteceu entre os dois turnos. Você dizia que foi uma surpresa, para mim também, eu estava convencido com as ferramentas que temos: pesquisas, enquetes, analistas. Globalmente, diziam-nos que a disciplina republicana não iria funcionar, porque ninguém é dono de seus eleitores, e o fato de um candidato dizer “eu desisto em favor do candidato democrata” não significa que os seus eleitores vão segui-lo. As pesquisas diziam que o eleitorado não iria acompanhá-lo e que a extrema-direita venceria as eleições, mesmo que não tivesse maioria absoluta.
Eu estava em contato com muita gente, inclusive da Frente Popular, e meia hora antes do resultado ninguém sabia ainda que, efetivamente, a Nova Frente Popular sairia em primeiro, com uma maioria muito relativa. Foi uma grande surpresa, porque isso que você diz funcionou, os eleitores o seguiram.
Por que funcionou?
Indiscutivelmente, existe um sentimento republicano no eleitorado francês. Não esqueçamos que Macron foi eleito duas vezes seguidas graças a este sentimento, porque nunca teve maioria, no entanto, no segundo turno, ao se opor a Marine Le Pen, até a esquerda votou nele para que a extrema-direita não passasse. Também Chirac, em sua última eleição, quando se opôs ao pai de Marine Le Pen, foi eleito com 80% dos votos porque os democratas franceses, inclusive de esquerda, votaram massivamente em Chirac, um homem da direita tradicional, para não ter um presidente de ultradireita.
Outra razão é que no segundo turno se revelou que a extrema-direita apresentava muitos candidatos que foram descobertos como racistas, pró-nazistas, xenófobos, antissemitas, de modo escancarado. Esses casos se multiplicaram e o esforço realizado pela extrema-direita para dissimular o seu caráter radical, racista e xenófobo desapareceu. Cometeram os erros de escolher candidatos que não souberam dissimular o caráter mais execrável da ultradireita.
Em La era del conspiracionismo, aborda, a partir do caso Trump, como os discursos racistas e violentos estão se enraizando entre a população. Na França e na Itália, mascarar suas posições mais extremas está funcionando, mas vemos que o seu eleitorado tem cada vez menos complexos para expressá-las. Qual é a tendência?
As pessoas não votam apenas por ideologia, mas em função de suas condições de vida, ou como imaginam ou percebem as suas condições de vida. As quatro principais razões pelas quais muitas pessoas votam são o poder aquisitivo, seja quem for, trabalhador, operário, servidor ou comerciante; segunda, a percepção de segurança, se há agressões e roubos. Terceira, em relação à estraneidade, que é um elemento muito importante, e quarto, diria que com o seu sentimento de “desclassamento”.
É uma das grandes realidades do mundo de hoje: a classe média está perdendo o seu carácter, está empobrecendo em massa, em quase todos os países desenvolvidos. Nesta queda, ao buscar as razões pelas quais estou empobrecendo, pois os meus filhos não podem viver como eu vivi quando era filho de pobres, surgem estas ideias simples, de que a culpa é do estrangeiro, do capital internacional sem rosto, do neoliberalismo, ou esta ideia de que há cada vez mais insegurança, algo em que os meios de comunicação insistem.
Por outro lado, existe a constatação de que os serviços públicos não funcionam mais. O patrimônio dos pobres são os serviços públicos. Quando você não tem mais nada, vai ao hospital e é atendido, vai à escola e é gratuita. Esses elementos que estão sendo perturbados levam as pessoas a não acreditar mais nesses partidos e a pensar: por que não experimentar algo que nunca testamos antes? Daí a tentação de guinar para a ultradireita, que propõe autoridade e ordem. O discurso da extrema-direita se torna apetitoso para quem vê o mundo desabar sob os seus pés.
Trump foi um dos que soube ler o momento social e ganhar com esse descontentamento. Como alguém sendo o presidente do país mais poderoso do mundo conseguiu virar a mesa difundindo mentiras?
Exatamente. Até há poucos anos, as pessoas recebiam a informação através dos meios de comunicação de grande audiência, como a imprensa escrita, o rádio e a televisão, que eram meios só de ida, sem volta. São meios de comunicação emissores, com receptores passivos. Nem sempre você escreve para o diretor quando lê o jornal, embora tenha a possibilidade.
Há 15 ou 20 anos, com a chegada em massa da internet, e depois com as redes sociais, cada um é um emissor, cada pessoa é um meio de comunicação. A verdade da televisão e a minha verdade como emissor nas redes são equivalentes.
Trump tem 127 milhões de seguidores, coisa que nenhum canal de televisão dos Estados Unidos tem, nem mesmo a soma dos canais. Isto é uma revolução copernicana na comunicação, o que faz com que nenhuma verdade se imponha e que a verdade e a mentira sejam equivalentes, com a diferença de que a verdade é triste e a mentira é espetacular.
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“O discurso da extrema-direita se torna apetitoso para quem vê o mundo desabar sob os seus pés”. Entrevista com Ignacio Ramonet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU