01 Julho 2024
O conceituado economista sérvio-americano Branko Milanović bebe nas fontes de algumas das figuras mais relevantes da história da economia e do pensamento econômico, como Adam Smith, Karl Marx, David Ricardo, Vilfredo Pareto e outros, para acompanhar a evolução das ideias sobre a desigualdade ao longo dos últimos dois séculos.
É disso que trata o seu livro Miradas sobre la Desigualdad: de la Revolución Francesa al final de la Guerra Fría, eleito pelos principais meios de comunicação especializados do mundo como um dos melhores de 2023 e que acaba de ser publicado em espanhol.
Em conversa com Pulso/La Tercera, por teleconferência, o acadêmico da Universidade da Cidade de Nova York, que concentra sua carreira na pesquisa sobre a desigualdade, analisa as razões deste tema ter se tornado crucial no mundo, incluindo os países desenvolvidos. Além disso, avalia o futuro desta variável, especialmente em meio a uma maior fragmentação política em todas as partes.
A entrevista é de Rodrigo Cárdenas, publicada por La Tercera, 30-06-2024. A tradução é do Cepat.
Por que considera que o tema da desigualdade e desigualdade de renda ganhou tanta relevância nos últimos tempos, nas últimas décadas?
Tornou-se mais relevante até certo ponto, porque antes simplesmente não era assim. Em meu livro, explico por que era muito pouco estudado, tanto nos países socialistas quanto nos países capitalistas, ou seja, essencialmente nos Estados Unidos, que era então o país mais importante para a produção do conhecimento econômico.
Como você provavelmente deve ter notado, destaco a América Latina, porque a América Latina estava em uma situação diferente por dois motivos. Primeiro, era impossível ignorar a questão da desigualdade de renda porque era muito alta, sendo assim, simplesmente era impossível não a estudar. E havia muitos economistas na América Latina que a estudavam, começando, por exemplo, pelo trabalho empírico que a CEPAL encomendou, no início, em 1950.
Depois, na América Latina, também surgiram os estruturalistas, e também houve a participação muito importante da teoria dos sistemas mundiais. Houve a segunda vantagem de ter, digamos assim, experimentado e observado que a distribuição de renda em um determinado país também pode depender de qual é a sua posição na divisão mundial do trabalho.
Então, estas são as duas “vantagens” que a América Latina teve e, pela mesma razão, trato a América Latina de forma diferente do Ocidente, ou seja, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, e do Leste, ou seja, a União Soviética e seus aliados.
Nessas potências, a política não permitia estudar a desigualdade?
Para a União Soviética era muito difícil estudá-la, simplesmente porque a classe capitalista desapareceu, não existe tal classe e, em segundo lugar, havia pressões, fortes pressões para não estudá-la devido à sensibilidade política do tema.
Do lado ocidental, no entanto, também havia pressões políticas devido ao argumento de que se a União Soviética, com a qual os Estados Unidos competiam, não tinha classes, é claro, também afirmavam que não tinham classes e a estrutura de classes nos Estados Unidos sempre foi mais fraca do que na Europa.
Além disso, houve bastante prosperidade, ao menos nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial...
Do final da Segunda Guerra Mundial até 1980, houve um aumento significativo da renda da classe média nos países ricos, a criação do Estado de bem-estar, a criação inclusive da autodeterminação, da codeterminação nas empresas alemãs, o que significa que os trabalhadores tinham um papel no processo de produção. E há o famoso acordo de Detroit entre os sindicatos dos Estados Unidos, o United Auto Workers e o governo.
Havia se estabelecido um sistema muito cooperativo, no qual os frutos do crescimento eram compartilhados de forma relativamente equitativa (...). Depois, a partir dos anos 1980, isso mudou. Por um lado, demonstrou-se que a União Soviética era economicamente ineficiente e, por outro, Reagan e Thatcher já estavam mudando o sistema, o que levou a um aumento significativo da desigualdade.
Mas, voltando à pergunta: o que mudou mais recentemente que a desigualdade se tornou um tema central?
Em primeiro lugar, a crise financeira mundial (subprime) revelou, particularmente nos Estados Unidos, que na realidade a classe média não tinha os aumentos substanciais de renda que acreditava ou ao menos um aumento razoável da renda, uma vez que simplesmente eram capazes de contrair empréstimos frente a ingressos já estagnados.
Sendo assim, quando a crise financeira chegou, o 1% com mais recursos percebeu que tinha se saído muito bem. No entanto, os estratos médios tinham suas casas embargadas. Tinham de pagar as dívidas, que nos cartões de crédito eram mais de 100% do PIB.
Então, de repente, revelou-se que a taxa de crescimento da classe média era muito menor do que parecia. E, por outro lado, percebeu-se que o 1% mais rico não foi punido de modo algum pela crise. Isto levou ao aumento do interesse sobre como chegamos a tal ponto e ao tema da desigualdade.
A globalização também desempenhou um papel? Considerando que muitos empregos e fábricas se deslocaram de países desenvolvidos para outros mais pobres...
Sim, penso que desempenhou um papel muito interessante na estrutura de classes, porque, especialmente em relação às pessoas que têm capital nos Estados Unidos, levou as empresas e os capitalistas a utilizarem mão de obra muito mais barata na China, o que, claro, foi muito bom para este país, porque essas pessoas conseguiram postos de trabalho.
Também transferiram tecnologia para a China e essencialmente demitiram ou ao menos utilizaram bem menos trabalhadores estadunidenses. Além disso, a abertura dos Estados Unidos possibilitou que a China continuasse exportando produtos relativamente baratos, o que por sua vez fez com que os salários dos trabalhadores estadunidenses que competiam com estes bens baixassem.
E há bons estudos que demonstram que mesmo que em seu primeiro choque com a China você perca o emprego e depois consiga outro, nesse segundo trabalho não receberá o salário que tinha em seu primeiro. Portanto, o impacto da China sobre a mão de obra estadunidense foi muito significativo e aumentou a desigualdade de renda nos Estados Unidos.
Embora nos Estados Unidos teve esse efeito, em países como o Chile a globalização ajudou a aumentar a renda...
Podemos dizer que a globalização teve um efeito desigual, porque os países diferem na forma como se vinculam à globalização. Em alguns casos, como nos Estados Unidos, vincularam-se de tal forma que exportavam capital e também se desfaziam de parte da mão de obra e a substituíam por mão de obra mais barata.
No caso da China, aumentou enormemente o PIB per capita, mas também aumentou a desigualdade, porque a China começou com uma desigualdade muito baixa, mas depois conseguiu entrar na globalização em condições diferentes e se beneficiou porque a globalização significou mais empregos para determinados trabalhadores e mais exportações de certos tipos de bens.
O Chile, por exemplo, continuou exportando o cobre que exportava antes, é claro, mas aumentou a produção de muitos outros bens, como o vinho, por exemplo, que passou a ser muito mais exportado com a globalização.
No livro, você destaca que a França, na época da Revolução Francesa, tinha uma desigualdade parecida com a que se vê, hoje, em países como o Brasil e a Colômbia. O problema da América Latina não está, então, relacionado à etapa em que estamos em nosso processo de desenvolvimento?
É uma boa pergunta. Penso que, na verdade, as pessoas argumentam que existem elementos estruturais na desigualdade latino-americana. Até onde conheço a literatura, há dois elementos estruturais que são mencionados. Um, o elemento estrutural devido ao colonialismo espanhol que em muitos países criou sociedades de dois níveis entre os indígenas e os que são espanhóis ou meio-espanhóis etc. Isto, é claro, não se aplica a todas as sociedades, porque algumas delas têm, de fato, bem poucos indígenas, mas pode se aplicar a sociedades como as do Peru, Bolívia e Paraguai.
Contudo, há outra explicação estrutural sobre a qual li e que tem a ver com a forma como a América Latina se incorporou à primeira globalização, com a região entrando como produtora agrícola. Consequentemente, essa globalização levou a uma especialização na produção de bens que se viram favorecidos pela existência de grandes proprietários de terras e isso também contribuiu para a desigualdade.
Em um mundo tão fragmentado e em que assistimos a uma maior polarização política dentro dos países, há margem para continuar pensando em combater a desigualdade?
É uma pergunta complicada, porque a polarização e a alta desigualdade tornam a necessidade de lutar contra a desigualdade mais urgente. Se o poder político reflete a desigualdade econômica, ou seja, se os ricos controlam o processo político, é evidente que as medidas redistributivas serão mais difíceis de ser aplicadas.
No entanto, não sou totalmente pessimista. A ação política e social pode mudar as coisas, assim como no passado. Contudo, o requisito prévio para a mudança é saber qual é a situação atual e este é um dos papéis dos economistas.
No mesmo sentido, qual é o futuro da desigualdade? Considera que continuará aumentando globalmente ou, ao menos em algumas regiões, começará a diminuir?
A desigualdade global, definida como a desigualdade de renda entre todos os cidadãos do mundo, vem diminuindo desde meados dos anos 1980. Isto foi alcançado graças às altas taxas de crescimento da China, Índia, Vietnã e do resto da Ásia. Contudo, para que a desigualdade global continue diminuindo no século XXI, dependerá cada vez mais do crescimento dos grandes países africanos com taxas significativamente acima da média mundial.
Até agora, a experiência tem sido decepcionante. A África está cada vez mais pobre em comparação ao resto do mundo e como também é o único continente com um forte crescimento demográfico nas próximas décadas, grande parte do que acontecer com a desigualdade global dependerá do crescimento de grandes países africanos como Nigéria, Etiópia, Egito, Sudão e Congo.
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“A polarização e a alta desigualdade tornam a luta contra a desigualdade mais urgente”. Entrevista com Branko Milanović - Instituto Humanitas Unisinos - IHU