"Traficantes evangélicos" não glorificam nem Jesus e nem Israel: toda glória é ao dinheiro. Artigo de Christina Vital da Cunha

Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

06 Setembro 2025

"A criminalidade é, acima de tudo, uma questão econômica. Se nos anos 1990 a prioridade era ostentar a fartura obtida com o tráfico, 'curtir a vida' na favela, atualmente o foco está na acumulação e na expansão das redes de influência, inclusive com empresários e políticos, para 'esquentar' os lucros ilícitos."

O artigo é de Christina Vital da Cunha, professora do PPG em Sociologia e coordenadora do Laboratório de Estudos em Política Arte e Religião (LePar) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autora de Oração de traficante: uma etnografia e editora da revista Religião & Sociedade.

Eis o artigo.

Durante minhas pesquisas em favelas e periferias venho registrando em textos e imagens a evolução simbólica da relação entre traficantes e religiões. Nos anos 1990, observei a predominância do catolicismo popular e de imagens de entidades da umbanda. Nos anos 2000 era comum ver a frase “Jesus é o dono do lugar” pintada em muros e fixada em outdoors. Em 2015, ela deu lugar à frase “Deus é o dono do lugar” em várias favelas dada uma exacerbada valorização do Antigo Testamento e das imagens se referindo a Israel. Já em 2025, o discurso revela uma valorização extrema do indivíduo e da posse: “Gus é o dono do lugar”. Nunca havia registrado pixação assim em todos esses anos de pesquisa, embora o conhecimento sobre quem é o chefe fosse conhecido de todos nos locais.

Pixação em muro com várias referências ao TCP. Nesta lê-se: Eu sou o dono do lugar. Local: Teresópolis. Foto: Christina Vital, Junho de 2025.

Se antes os traficantes compartilhavam espaço simbólico com figuras religiosas e imagens católicas ou de religiões afro-brasileiras — posteriormente destruídas durante operações policiais —, hoje a supremacia do dinheiro e do domínio pessoal sobrepuja até mesmo o discurso pentecostal de outrora.

A criminalidade no Rio de Janeiro se expande e renova através de símbolos e performances. Desde 2017 são muitas Estrelas de Davi pintadas em muros de favelas e bandeiras de Israel, se revelando no interior do estado em razão da expansão das facções que vem sendo amplamente noticiada.

Referências à Estrela de Davi com o 3 no meio, remetendo ao TCP. Local: Teresópolis. Foto: Christina Vital, Junho de 2025.

O caso mais emblemático é o do chamado Complexo de Israel, na Zona Norte da cidade, dominado pela facção Terceiro Comando Puro (TCP), sob a liderança do traficante conhecido como Peixão.

Muro em frente à rampa de acesso à estação de trem em Parada de Lucas. Foto de Christina Vital da Cunha, 2022.

Esse complexo abrange as favelas de Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas, Pica-Pau e o conjunto habitacional Cidade Alta. Segundo alguns moradores, Peixão promoveu uma verdadeira transformação na região.

Relatam que há “ordem nas ruas”: a coleta de lixo é regular, brigas são reprimidas e o trânsito de bicicletas é seguro. Em datas comemorativas como o Dia das Mães, Natal ou Páscoa, distribuem-se brinquedos, presentes e chocolates de marcas conhecidas. Foi construído até um espaço de lazer infantil chamado “fazendinha”, onde já ocorreram colônias de férias.

No entanto, há também um lado sombrio. Alguns moradores falam sobre a vigilância constante, a “neurose” com celulares e a punição severa por comportamentos considerados inadequados. Relatam dificuldades no acesso a serviços públicos, já que até a poda de árvores pode ser impedida, pois a presença da prefeitura nas comunidades é limitada. Um ponto de forte crítica é a opressão religiosa: práticas de matriz africana têm sido reprimidas, com casos de expulsão de casas e terreiros de umbanda e candomblé das favelas e áreas próximas.

A dominação territorial da facção se sustenta também por meio da simbologia religiosa. Grafites de leões, bandeiras de Israel, salmos, trechos de música gospel e passagens do Antigo Testamento compõem a estética do poder nas comunidades.

Não se trata apenas de uma estratégia de legitimação: trata-se da construção de uma identidade faccional. Entre os membros do TCP, a sigla chega a ser reinterpretada como “Todo Correto Prevalece”, reforçando a valorização da ordem e da disciplina, explicitando uma “cultura pentecostal” influenciando a linguagem e as imagens projetadas por criminosos.

Pixação TCP – Todo Certo Prevalece. Pintado em preto sobre inscrição em branco de outro poder criminoso local. Local: Teresópolis. Foto: Christina Vital, Junho de 2025.

Vale destacar: essa apropriação da linguagem religiosa não reflete um movimento de conversão, necessariamente. O uso de símbolos cristãos pelos traficantes está atrelado a uma lógica de poder.

A criminalidade é, acima de tudo, uma questão econômica. Se nos anos 1990 a prioridade era ostentar a fartura obtida com o tráfico, “curtir a vida” na favela, atualmente o foco está na acumulação e na expansão das redes de influência, inclusive com empresários e políticos, para “esquentar” os lucros ilícitos.

Sendo assim, diria que a expansão do chamado CPX Israel e de outras áreas sob domínio do TCP não tem como base o ímpeto conversionista e territorialista atribuído ao cristianismo como alguns pesquisadores chegaram a afirmar. O que está em jogo é o controle econômico e a reconfiguração do poder nas margens da cidade. Não é possível que pairem dúvidas: aos criminosos (assim como aos ultracapitalistas) o fim é o dinheiro, a aure sacra fame. O universo simbólico que vai compondo suas éticas e estéticas servem à análise sociológica e antropológica, certamente, mas a animação das suas atividades nada tem a ver com religiões ou o tem residualmente. O centro de suas ações e estratégias tem a ver com dinheiro, território, poder.

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