25 Fevereiro 2025
Pânico moral reduz críticas ao imaginário racista a uma questão meramente identitária
O artigo é de Acauam Oliveira, publicado por Jornal Plural, 20-02-2025.
Acauam Oliveira é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada e doutor em Literatura Brasileira pela USP, com estágio pós-doutoral na UERJ. Professor adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE) e do programa de pós-graduação em Letras da UPE. É autor da introdução ao livro Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s.
Em fevereiro do ano passado, grandes agências de comunicação do país noticiaram que a militância identitária havia "cancelado" Franz Kafka. O motivo? A suposta descoberta de que o escritor tcheco era viciado em pornografia.
Todos os veículos repudiaram veementemente o cancelamento, como seria de se esperar de qualquer pessoa com o mínimo de bom senso. O problema é que o tal cancelamento nunca aconteceu. Tudo não passava de uma fake news. O que ocorreu foi a viralização de uma única postagem de uma militante antipornografia, com um número baixíssimo de seguidores, que, por uma conjunção de interesses, acabou extrapolando sua própria bolha.
O pânico moral cuidou do resto. É exatamente esse o problema com o suposto cancelamento de Maria Rita Kehl pela militância identitária: ele nunca aconteceu. O cancelamento, nesse caso, é uma fantasia criada pelos anti-identitários, que projetam a imagem de uma horda de bárbaros “canceladores” para sustentar a ficção de uma jornada prodigiosa em defesa dos princípios fundamentais da nossa democracia, na qual assumem o papel de heróis.
Nesse caso específico, a mobilização da fantasia de cancelamento cumpre uma função precisa: desviar o foco das críticas direcionadas à autora, especialmente por intelectuais negras — como Lívia Natália, professora de Teoria da Literatura na Universidade Federal da Bahia (UFBA). O que se debatia, então, não era a “herança genética” de Maria Rita Kehl, mas o imaginário racista que a autora evoca ao mobilizar o exemplo de uma mulher branca que salva uma criança negra das mãos de um negro espancador.
Por que mobilizar justamente esse exemplo, dentre tantos outros possíveis? Por que, uma vez mais, a imagem do negro violento? E mais: quando, no Brasil, o direito de homens e mulheres brancas acusarem e condenarem um homem negro, com ou sem provas, lhes foi negado?
Quanto a isso, ninguém precisa se preocupar: o fundamento antinegro das instituições de repressão estatal existe justamente para atender a esse desejo, das formas mais perversas possíveis.
Até que a odisseia em defesa da honra da psicanalista ganhasse fôlego, era esse o foco do debate. A tal “herança genética” — uma opinião claramente secundária naquele momento — só ganhou destaque a partir da mobilização da milícia anti-identitária, exatamente como no caso do “cancelamento” kafkiano.
A partir de então o cancelamento — que nunca aconteceu — passa a "existir" enquanto mecanismo de projeção antiidentitário. O não-acontecimento, agora existente, vira manchete em jornais de grande circulação, inflamando o público a ponto de, digamos, definir a próxima convidada do programa Roda Viva.
Uma curiosa espécie de “cancelamento reverso”, em que o cancelado cai de pé e para cima, sem nunca ter saído do lugar. Há que se admirar a sagacidade de uma estratégia que garante que os anti-identitários jamais estejam errados. Pois, mesmo quando seus argumentos são problemáticos e equivocados, eles acertam na elevação moral de sua causa contra o principal problema da esquerda, que não é, digamos, a alta do preço do café, mas sim o uso correto de elu e delu (aviso de ironia aos mais literais).
Curiosamente, nada é mais identitário do que a mobilização desse pânico moral como estratégia anti-identitária para que o debate deixasse de ser sobre o imaginário racista e passasse a ser sobre o cancelamento identitário. Seria esse o tal "lugar de cale-se"?
Uma preocupação elementar dos leitores bem-intencionados, sinceramente preocupados com a prática dos cancelamentos, mas que ao mesmo tempo prezam pela verdade, deveria ser a busca por evidências de que houve, de fato, um movimento coordenado e majoritário para cancelar Maria Rita Kehl.
Veja, estamos falando de cancelamento, uma coisa séria, e não de meia dúzia de opiniões equivocadas expressas por perfis de baixo alcance, sem qualquer efeito material concreto.
Ou nos acostumamos a desconfiar desse tipo de pauta moral, ou não poderemos nos queixar daqueles que vão para frente dos quartéis rezar para pneu.
Afinal, cada um tem a ameaça comunista — ou identitária — que merece. Críticas ao identitarismo são muito bem-vindas. Que tal começarmos por aqueles que juram de pé junto que não são identitários? Afinal, como nos ensina Douglas Barros, “o colonizador europeu é o primeiro identitário da história moderna”.