02 Julho 2020
"No ideário racial da supremacia branca, Cã redimido é Cã embranquecido. Se permanecer negro, continua amaldiçoado. Esta supremacia era considerada verdade científica. O Brasil de então promoveu uma massiva imigração de alemães, italianos, espanhóis, portugueses, poloneses, lituanos, ucranianos e árabes para embranquecer. Deu a imigrantes europeus oportunidades econômicas que não deu a negros brasileiros recém-saídos do cativeiro. O nosso racismo é uma herança ancestral, dos tempos da casa grande e da senzala, que depois se reinventou e se sofisticou com teorias raciais inspiradas no darwinismo. Outros tempos vieram, mas a subalternidade da população negra permaneceu", escreve Luís Corrêa Lima, padre jesuíta e professor da PUC-Rio. Trabalha com pesquisa sobre gênero e diversidade sexual.
A morte do negro norte-americano George Floyd desencadeou uma onda mundial de protestos contra o racismo, que se materializa especialmente na violência policial contra a população negra. Inúmeros depoimentos de racismo vieram à tona, revelando um cotidiano de opressões em comportamentos sociais e modos de proceder naturalizados. Pode-se dizer que isto é a ponta do iceberg de uma realidade fortemente impregnada na sociedade e na história, tão presente no Brasil.
Relatos da Bíblia serviram para compor a cultura escravocrata moderna no Ocidente, justificando a vinda de africanos escravizados. Dentre estes relatos, o mais importante é o da maldição de Cã (Gn 9,18-29). Após o dilúvio universal, Noé tornou-se agricultor, plantou uma vinha, tomou vinho, embriagou-se e ficou nu em sua casa. Um de seus filhos, Cã, viu a nudez do pai e contou a seus irmãos Sem e Jafé. Estes puseram o manto nos ombros e caminharam de costas em direção ao pai. Sem verem a sua nudez, cobriram-no. Ao despertar, Noé ficou sabendo do que Cã tinha feito e amaldiçoou a descendência deste filho, condenando-o a tornar-se escravo de Sem e Jafé. Cã e sua descendência foram associados ao Egito e, por extensão, à África. Assim foi justificada a escravidão negra.
"A Redenção de Cam", de Modesto Brocos, 1895.
No século 19 e no início do século 20, disseminaram-se amplamente teorias raciais que afirmavam a inferioridade das raças não brancas, de origem não europeia. A maldição de Cã foi reconfigurada em A redenção de Cam. Este é o nome de um quadro do pintor espanhol Modesto Brocos, que está no Museu de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Uma mulher negra idosa em pé, diante de sua filha mestiça sentada, exulta ao ver seu neto branco. Ao lado da filha mestiça, está sentado um homem branco, pai do menino. O quadro fez sucesso na Europa, acompanhado da legenda: "o negro se torna branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças". O poeta Olavo Bilac homenageou A redenção de Cam com os versos: "Vede a aurora-criança como sorri e fulgura, no colo da mulata, – aurora filha do dilúculo, neta da noite... Cam está redimido!".
No ideário racial da supremacia branca, Cã redimido é Cã embranquecido. Se permanecer negro, continua amaldiçoado. Esta supremacia era considerada verdade científica. O Brasil de então promoveu uma massiva imigração de alemães, italianos, espanhóis, portugueses, poloneses, lituanos, ucranianos e árabes para embranquecer. Deu a imigrantes europeus oportunidades econômicas que não deu a negros brasileiros recém-saídos do cativeiro. O nosso racismo é uma herança ancestral, dos tempos da casa grande e da senzala, que depois se reinventou e se sofisticou com teorias raciais inspiradas no darwinismo. Outros tempos vieram, mas a subalternidade da população negra permaneceu.
A tradição judaico-cristã também tem um forte potencial igualitário, pois afirma que todos os seres humanos são imagem e semelhança de Deus. Cristo veio para todos e n’Ele não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos formam uma nova realidade. Infelizmente este ideal igualitário convive com fortes discriminações e subalternidades que não mais se justificam, mas têm uma inércia social que custa a se modificar. Oxalá a campanha Black lives matter (vidas negras importam) mantenha vivo o ideal de igualdade, alertando para tantas vidas que importam e estão ameaçadas: de negros, pobres, índios, LGBT e mulheres.
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Racismo e branqueamento no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU